Único provedor da casa, André* se sentiu obrigado a deixar sua esposa e duas filhas na cidade em que viviam, no interior do Maranhão, e aceitar um emprego plantando cana-de-açúcar a mais de 2.500 km dali. Ele ouviu do encarregado pelas contratações que trabalharia por três meses em fazendas em Minas Gerais e que não precisaria arcar com passagem, hospedagem e alimentação. O que ele não sabia é que esse seria seu atestado de óbito.
André e outras 18 homens foram submetidos a trabalhar em condições análogas à escravidão em fazendas arrendadas pela Usina Coruripe – gigante do setor sucroalcooleiro e fornecedora de açúcar para as multinacionais Coca-Cola e Louis Dreyfus Company (LDC) e etanol para os postos Ipiranga. A estrutura era tão precária que não havia botas para os trabalhadores. André machucou o pé ao usar um par que havia achado no lixo e, sem conseguir tratamento, acabou morrendo por choque séptico causado pela infecção.
O trabalhador rural morreu em 4 de abril, a caminho de um hospital em São Luís (MA), duas semanas após sua esposa ter lhe enviado dinheiro para voltar ao seu estado natal para tratar o ferimento. “Até hoje eu não consigo acreditar. Parece que ele está por aí, viajando. Foi muito rápido, muito rápido”, conta, emocionada, a viúva, que preferiu não ser identificada. Ela diz que, mesmo sabendo da morte do trabalhador, os responsáveis pela contratação de seu marido não arcaram com os custos funerários, nem entraram em contato com a família.
A Coruripe e produtores rurais responsáveis pelas plantações nas fazendas arrendadas para a usina foram autuados por trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas. Eles foram questionados pela Repórter Brasil sobre o caso, mas não responderam se irão prestar alguma assistência à família. Nesta terça-feira, 23 de agosto, está marcada uma audiência de conciliação entre a empresa e os representantes da família.
“Esses trabalhadores vêm de uma situação de miséria, para tentar uma remuneração mais digna e acabam se sujeitando [a essas condições]. Mas isso não é voluntário. É um modo de organização do trabalho que faz com que eles se submetam a essa condição”, afirma o auditor-fiscal do trabalho Humberto Camasmie, que coordenou a operação de fiscalização nas duas fazendas.
Falsas promessas
De acordo com relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Previdência, aos quais a Repórter Brasil teve acesso, a saga dos trabalhadores começou em 18 de fevereiro, quando saíram do Maranhão, sob falsas promessas. A primeira a ser quebrada foi em relação à passagem e alimentação, já que eles tiveram de pagar todos os custos da viagem de 3 dias.
Ao chegarem aos alojamentos, perceberam que estavam em uma enrrascada. Um deles ficava em Igarapava (SP), a 150 km das fazendas, localizadas nas cidades de Veríssimo e Campo Florido (MG). Os dormitórios eram extremamente precários, colocando em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores. Evaldo*, que abandonou o trabalho antes da fiscalização, conta que ele e seu cunhado André ficaram um mês dormindo no chão até encontrarem um colchão no lixo.
Os trabalhadores contaram à reportagem que ganhavam entre R$ 30 e R$ 40 por hectare plantado – valor insuficiente para sobreviver. “A gente comia ovo, salsicha, o mais barato que tinha. Não dava pra comprar carne, essas coisas mais caras”, conta Evaldo. Segundo os relatórios, os custos com equipamentos de segurança, ferramentas, aluguel, água, luz e refeições também foram pagos pelos trabalhadores, diferentemente do prometido.
A jornada de trabalho era desgastante. Os trabalhadores precisavam pegar os ônibus fretados às 6h – e voltavam para o alojamento somente às 19h, quando não dava mais para enxergar a plantação. Como ganhavam pelo rendimento, quase não tinham descanso. “Só parávamos para almoçar quando a gente já estava morrendo de fome”, afirma Roberto*, amigo de Evaldo. A rotina cansativa era estimulada pelos aliciadores. Segundo o Ministério do Trabalho, eles ganhavam 30% sobre a produção de cada trabalhador.
Entre abril e maio, os administradores das propriedades assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT), comprometendo-se a quitar as verbas rescisórias, ressarcir os gastos com transporte, além de cumprir as normas trabalhistas e de adequação de alojamentos. Ao todo, as duas fazendas terão que pagar cerca de R$ 400 mil em danos morais e coletivos.
Operações suspensas
Com cinco unidades distribuídas por Alagoas e Minas Gerais, a Usina Coruripe está na 58º posição do ranking Forbes Agro 100, que lista as maiores empresas do agronegócio brasileiro. Em seu site, a empresa afirma que há mais de 20 anos fornece açúcar cristal para a Coca-Cola Brasil.
Outra gigante que mantém relações comerciais com a Coruripe é a Ipiranga, uma das maiores redes de distribuição de combustíveis do Brasil. Contratos celebrados entre as duas empresas para a venda de etanol, com vencimentos em 2022 e 2023, somam mais de R$ 100 milhões.
A usina também tem investido no mercado internacional, sendo os Estados Unidos o principal destino das exportações. Nos últimos dois anos, a empresa vendeu mais de 25 mil toneladas para o ASR Group, companhia estadunidense do setor de cana-de-açúcar. O segundo maior comprador no período foi a companhia francesa Louis Dreyfus Company (LDC), que adquiriu 12 mil toneladas de açúcar da Coruripe.
Questionada pela Repórter Brasil sobre as ações a serem tomadas após o caso de trabalho escravo envolvendo fornecedores exclusivos, a Coruripe disse que “está tomando as medidas cabíveis”, mas não quis detalhar as providências adotadas. A usina ressaltou que “repudia todas as práticas que, direta ou indiretamente, desrespeitem qualquer direito dos trabalhadores” e que “na história de quase 100 anos, […] nunca houve uma situação como a relatada”. (Leia a nota na íntegra).
A Coca-Cola afirmou que exige dos seus fornecedores a adoção de “práticas responsáveis no local de trabalho”, em linha com sua política de direitos humanos, seus princípios de conduta para o fornecedor. A multinacional, no entanto, não respondeu sobre quais ações serão tomadas sobre o caso Coruripe e nem quais unidades da produtora de açúcar abastecem a empresa.
A Ipiranga, após o contato da Repórter Brasil, suspendeu as operações com a Usina Coruripe “até que os fatos sejam esclarecidos”. A rede afirmou que é comprometida com a promoção dos direitos humanos, que é signatária do pacto contra o trabalho escravo e que repudia que “toda e qualquer forma de exploração de trabalho”.
A LDC disse que “leva as questões de sustentabilidade muito a sério, sempre com o objetivo de operar com os mais altos padrões possíveis e esperando padrões semelhantes dos fornecedores”. A multinacional francesa afirmou que tem como padrão contatar os fornecedores e solicitar respostas sobre alegações de violações aos direitos humanos repassadas à companhia, “trabalhando com eles sempre que possível para garantir reparação e, em casos de descumprimento contínuo, tomando decisões para removê-los de listas de fornecedores aprovados”.
Por email, a ASR afirmou que, após os questionamentos da Repórter Brasil, contatou a Usina Coruripe, que disse ter recebido as alegações de trabalho escravo meses atrás e que, desde então, cancelou os contratos com os fornecedores. À ASR Sugar, a Coruripe afirmou ainda ter criado uma área específica para analisar a conformidade trabalhista dos seus fornecedores de cana-de-açúcar independentes. A empresa americana afirmou ainda ser abastecida exclusivamente pela unidade da Usina Coruripe em Alagoas. (Leia aqui as respostas na íntegra de todas as empresas).
‘Utilização ardilosa’
De acordo com integrantes da força-tarefa, a Usina Coruripe é a arrendatária da terra onde as mudas de cana foram plantadas. Contudo, ao invés da própria companhia produzir na área arrendada, opta por fazer dois contratos: um de transferência de responsabilidade de plantio – que permite que outro produtor rural produza cana-de-açúcar no local – e outro de exclusividade de compra e venda com esse produtor. “É uma tentativa de desvincular a responsabilidade”, explica o auditor-fiscal Camasmie.
“O que se verificou não foi uma terceirização no processo produtivo da empresa e, sim, a utilização ardilosa do contrato de parceria rural”, afirma o auditor-fiscal Luis Fernando Duque de Sousa no relatório.
A Usina afirmou que foi “equivocadamente autuada”, fato que, segundo a empresa, já foi esclarecido ao Ministério Público do Trabalho. “Diante disso, na ocasião da auditoria fiscal, foi formalizado acordo entre o MTE [Ministério do Trabalho e Previdência], MPT e os fornecedores de cana-de-açúcar, que se responsabilizaram pelos atos praticados. Nesse pacto, em hipótese alguma, foi atribuída à Usina Coruripe qualquer obrigação de arcar com as consequências do mencionado comportamento, nem mesmo na condição de responsável subsidiário”.
Apesar da afirmação da Usina, o Ministério do Trabalho autuou a empresa por considerá-la responsável pelos trabalhadores. Caso seja condenada administrativamente em duas instâncias, a empresa entrará para a lista suja do trabalho escravo. O cultivo de cana-de-açúcar estava, em 2021, entre as cinco atividades rurais com os maiores números de trabalhadores resgatados, segundo um levantamento do Ministério do Trabalho e Previdência divulgado no início do ano.
*nome fictício