Quarenta organizações da sociedade civil exigem que o International Finance Corporation (IFC) – braço do Banco Mundial voltado ao financiamento do setor privado – vete um empréstimo para a Suzano, a maior fabricante de celulose do mundo. Os US$ 900 milhões (na cotação atual, R$ 4,7 bilhões) que a empresa pleiteia seriam usados para a construção de uma nova planta no Mato Grosso do Sul, ampliando em 20% sua produção no Brasil e, consequentemente, os impactos socioambientais de sua atuação no Cerrado, bioma que pode estar próximo do colapso, segundo a ciência.
“Financiar a maior empresa de celulose do mundo talvez não seja a forma mais eficiente de estimular o desenvolvimento sustentável de uma região, embora este seja o objetivo do Banco Mundial e do IFC”, critica Merel Van Der Mark, coordenadora da plataforma Florestas & Finanças, uma das signatárias da carta enviada às instituições financeiras para pressionar contra a concessão do empréstimo. O IFC se reúne nesta quinta-feira (15 de dezembro) para decidir se abraça ou não o projeto de expansão da celulose no Cerrado sul-matogrossense.
A nova fábrica da Suzano fica no município de Ribas do Rio Pardo, a 100 quilômetros da capital Campo Grande, e já começou a ser construída. O problema é que a unidade, embora seja anunciada pela empresa como “um grandioso projeto de sustentabilidade”, poderá, na avaliação das organizações contrárias ao financiamento, estender e amplificar impactos socioambientais que estão consumindo o município de Três Lagoas, a pouco mais de 200 quilômetros de distância, e que é conhecido como a “capital mundial da celulose” e onde a Suzano já possui uma unidade.
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Desde que as fábricas de celulose se instalaram em Três Lagoas, uma década atrás, incêndios descontrolados, diminuição da biodiversidade, contaminação de rios e lençóis freáticos, uso desenfreado de agrotóxicos e expulsão de comunidades locais viraram rotina na região, conforme um relatório da Environmental Paper Network, publicado nesta quarta-feira (14 de dezembro)
“Enfrentamos o problema da desertificação no mundo inteiro por conta das mudanças climáticas. Sabemos que o Cerrado é importante para garantir a água do Brasil e a expansão das plantações pode provocar uma crise da água. Esse é o momento e local para desenvolver esse tipo de indústria? O IFC está brincando com o fogo”, avalia Sérgio Baffoni, da Environmental Paper Network, que também assina a carta ao IFC.
O próprio IFC admite que o projeto pode causar impactos sociais e ambientais “adversos e irreversíveis”, mas se contradiz ao justificar o investimento, alegando que a proposta vai promover o desenvolvimento de “toda a economia” da região, além de aplicar tecnologia “amigável ao clima” e possuir “efeitos ambientais positivos” – argumentos que reproduzem o discurso da empresa publicado em uma página na internet que detalha o plano da Suzano, chamado “Projeto Cerrado”.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Suzano explica que entre as contrapartidas da construção da nova planta há investimentos milionários em saúde, educação e desenvolvimento sustentável em Ribas do rio Pardo. “A nova unidade está alinhada a um amplo conjunto de metas de longo prazo que refletem a motivação da companhia em impactar positivamente a sociedade e o meio ambiente”, completa. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.
‘Não tem mais goiabeira’
A região entre Três Lagoas e Ribas do Rio Pardo, onde a Suzano constrói a nova unidade, é considerada o epicentro da expansão da indústria de papel e celulose no Brasil: em dez anos, a produção da commodity na área já chega a 7 milhões de toneladas por ano, volume possível de obter graças aos quase um milhão de hectares de eucaliptos plantados na área – dados que serão multiplicados assim que a fábrica da Suzano entrar em operação, já que será a maior do mundo no formato “linha única”.
“Uma expansão tão maciça na produção de celulose provavelmente estará associada a enormes impactos sobre a biodiversidade, qualidade do solo, disponibilidade de água e incêndios florestais”, assevera a carta endereçada ao IFC
O aumento da produção de celulose no Brasil acompanha uma tendência global. Nos últimos vinte anos a demanda por papel cresceu 26%, com destaque para o aumento das embalagens de papelão (77%), impulsionado pelo comércio virtual que deu um salto durante a pandemia de covid.
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Segundo o relatório da Environmental Paper Network a madeira que abastece as fábricas de celulose são geralmente originadas próximas das unidades de beneficiamento, “a fim de minimizar os custos de transporte” e, por isso, “não é uma surpresa que a maioria dos lotes de terras remanescentes do Cerrado tenha sido convertida em plantações de eucalipto”, diz o texto.
O relatório reproduz falas de moradores da região que detalham o problema. Como Lurdes*, que nota o desaparecimento de espécies animais e vegetais em meio às lavouras de eucalipto: “Os animais vivem do que dentro do eucalipto? Eles comem o que? Antigamente a nossa região era rica em frutas: goiabeira do mato, marolo, frutas selvagens que hoje não tem mais”.
Por outro lado, a Suzano defende que sua atuação leva em conta “o uso adequado do solo e da água, o compromisso de proteção e melhora da biodiversidade por meio da implantação de corredores em escala de paisagem” e lembra que possui uma política de desmatamento zero e de relacionamento próximo às comunidades locais. A íntegra da nota pode ser lida aqui.
‘Tá tudo seco agora’
A indústria do papel e celulose se aproveita das áreas já abertas para a pecuária, mas para plantar o eucalipto é preciso “limpar tudo”, incluindo a remoção das raízes, explica Sérgio Baffoni, da Environmental Paper Network. “Se a pecuária desmatou o Cerrado, a indústria do papel o deixou sem raízes”, diz o relatório produzido pela ONG.
Esse processo afeta negativamente a retenção de água, a evapotranspiração e a geração de chuvas – um problema que pode extrapolar a região e levar a secas em toda a América do Sul. “Aqui antes era um mar de água. Mas tá tudo seco agora, você não acredita”, conta Débora, no relatório, moradora de um assentamento rural em Três Lagoas.
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Por isso, não surpreende que nos dez anos em que a indústria da celulose opera na região, os incêndios florestais na região de Três Lagoas tenham se multiplicado. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) revelam que a incidência de focos de calor aumentou oito vezes no período, passando de 1,2 mil em 2010 para 10,6 mil em 2020.
Como contraponto, a Suzano explica que as novas lavouras que devem abastecer a fábrica em Ribas do Rio Pardo vão ampliar a “capacidade de captura de gases de efeito estufa da atmosfera em decorrência do plantio de eucalipto em áreas anteriormente antropizadas por outras culturas” e ainda acrescenta que a planta de beneficiamento vai adotar “tecnologia de gaseificação da biomassa para substituição do uso de combustível fóssil nos fornos de cal”. A íntegra pode ser lida aqui.
A expansão do plantio de eucalipto onde antes havia pastagens traz ainda outra consequência: desloca a pecuária para outras regiões, como o Pantanal e Amazônia, e pode ampliar o desmatamento, com impactos indiretos sobre a biodiversidade e comunidades locais.
Escolas fechadas e agrotóxicos
A falta de emprego e os impactos das plantações de eucalipto têm expulsado moradores da região, segundo relatos colhidos pela Environmental Paper Network.
Na comunidade Garcias, uma das vilas da região e local de residência de Lurdes*, que lamenta o desaparecimento dos pés de frutas silvestres, a escola foi fechada porque não há mais alunos, já que o monocultivo de eucalipto exige menos mão de obra que a pecuária, atividade econômica que antes dominava a região e as pessoas foram embora.
No assentamento rural Arapuá, o colégio permanece aberto, mas tem apenas metade dos estudantes de outros tempos. “O eucalipto tirou o jovem daqui”, conta Amanda*, uma das produtoras rurais do local. “A escola era o centro [da comunidade], aqui era muito agitado, sábado e domingo era festa. Agora somos uma ilha cercada de eucalipto”, complementa.
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“Seria de esperar que um projeto apoiado por uma instituição pertencente ao Grupo do Banco Mundial tivesse como objetivo levar o desenvolvimento às comunidades locais. O Projeto Cerrado irá, pelo contrário, expulsar ainda mais as comunidades locais das suas terras”, diz a carta enviada em 9 de dezembro para os diretores do banco pedindo a não concessão do crédito.
A indústria de celulose e papel também elevou o tráfego de caminhões com toras nas estradas da região, o que acabou por deteriorar as vias, dificultando ainda mais o acesso dos moradores. “Se alguém ficar doente dentro de Garcias, pode morrer aqui dentro se depender dessa estrada”, desabafa Rosana*.
Há ainda o problema do uso intensivo de agrotóxicos nas lavouras de eucalipto. Moradores relatam que a pulverização aérea contamina suas roças, hortas e até a produção de abelhas.
Em 2019, a Suzano utilizou mais de 2 mil toneladas de formicida – um produto para combater formigas – na região de Três Lagoas. O município é um dos com maior concentração de contaminação hídrica, segundo a Environmental Paper Network.
Resíduos de óleo diesel e graxa são também encontrados “abundantemente no chão”, segundo o relatório. “Na hora da lavagem das máquinas, contamina muito, porque as máquinas acumulam muita graxa e óleo diesel”, revela Adailton*, trabalhador da Suzano.
Violações trabalhistas
Das plantações de eucalipto até a fábrica, os trabalhadores da Suzano têm denunciado uma série de violações trabalhistas. De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT), em Mato Grosso do Sul existem 171 processos contra as empresas de papel e celulose, sendo 50 de responsabilidade da Suzano.
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Em setembro de 2020, trabalhadores da Suzano em Três Lagoas entraram em greve alegando falhas sanitárias graves nas condições de trabalho, como falta de banheiro e local para alimentação.
Pressionados pelas metas de produtividade, muitas vezes os empregados não fazem intervalos para não ser preciso desligar as máquinas. Até o tempo das refeições é reduzido. “O operador chega, troca o turno, a máquina tá ligada e ele vai trabalhar pra não perder tempo porque ele precisa atingir as suas metas de produção. E daqui um tempo, 4 ou 5 anos, do jeito que eles estão trabalhando hoje, vai estar todo mundo arrebentado”, complementa Adailton*, trabalhador da Suzano.
A Suzano não respondeu os questionamentos da Repórter Brasil sobre as condições de trabalho em Três Lagoas.
*nomes modificados para proteger a identidade dos entrevistados