A venda de remédios com preço abusivo explodiu durante a pandemia de Covid-19, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Proibida por lei, essa prática prejudica principalmente prefeituras, estados e hospitais federais, que compram medicamentos em grandes quantidades para abastecer o SUS. Enquanto as multas triplicaram, o setor bateu recordes de lucros.
O preço dos remédios vendidos no país deve respeitar os valores máximos estabelecidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) – órgão interministerial chefiado pela Anvisa. Entre 2020 e 2022, o setor farmacêutico recebeu 756 multas por casos de desrespeito à tabela, que somaram R$ 276 milhões. Nos três anos anteriores, foram 297 sanções (R$ 76 milhões). Os números foram obtidos pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação.
Essa comercialização de medicamentos por preços acima do limite ocorre apesar de os valores de referência estipulados pela CMED serem considerados altos demais por especialistas do setor. Os casos de defasagem na tabela (quando os preços são insuficientes para cobrir os custos) são vistos como pontuais.
A atual crise de desabastecimento de produtos farmacêuticos, impulsionada pelas seguidas ondas de Covid-19, e o aumento da fiscalização estão entre as explicações para o crescimento das infrações. Apesar de o governo ter passado a monitorar com mais rigor os preços praticados pelas empresas, o número de denúncias também cresceu com a pandemia, totalizando 159 em 2020, ante 113 na soma dos dois anos anteriores. Em 2021, foram 101 queixas.
O ranking das dez empresas mais multadas nos últimos três anos é dominado por distribuidoras de medicamentos, mas inclui também três fabricantes: a brasileira Blau Farmacêutica, a indiana Aurobindo Pharma e a americana Alexion Pharmaceuticals. A Anvisa não detalhou as infrações cometidas, os produtos comercializados ou os órgãos públicos prejudicados, apenas os valores das multas.
A prática de preços abusivos pela indústria contrasta com o crescimento do lucro do setor nos últimos anos. Segunda no ranking, com R$ 21 milhões em multas desde 2020, a Blau Farmacêutica, por exemplo, fechou 2021 com R$ 324 milhões de lucro líquido, aumento de 27% em relação a 2020.
“É inaceitável uma indústria praticar isso, porque se trata de uma regra vigente há 20 anos bem conhecida pelo setor”, critica o farmacêutico Dirceu Barbano, ex-presidente da Anvisa. Para ele, por serem empresas estabelecidas, as fabricantes costumam possuir setores de compliance (cumprimento de normas) e, por isso, têm maior tendência a respeitar a lei do que companhias menores.
Em nota, a Blau afirma que “pauta suas ações pelo estrito cumprimento da regulação sanitária e de controle de preços e que jamais praticou preço que não tivesse sido autorizado” e “que a prática de preços na venda de medicamento foi respaldada por decisões judiciais em processos que discutem o cabimento do reajuste extraordinário”. Já a Alexion, que recebeu sua maior punição neste ano, no valor de R$ 12 milhões, disse que “não reconhece a multa e aguarda parecer em instância administrativa” (leia a íntegra das respostas). A Aurobindo não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil.
A campeã do ranking é a Opem Pharmaceuticals, que comercializa medicamentos hospitalares importados nas áreas de oncologia, infectologia e cardiologia, segundo informações de seu site. A empresa recebeu seis punições desde 2020, somando R$ 84,1 milhões – 30% do total de multas aplicadas no período. Na sequência, empatada com a Blau, está a Chrispim Nedi Carrilho, também com R$ 21 milhões em infrações. Procuradas, as duas distribuidoras não retornaram aos contatos da reportagem.
A prevalência de distribuidoras entre as campeãs de multas se deve ao fato de que essas empresas são as principais fornecedoras de entes públicos, sobretudo prefeituras, que raramente fazem negociações diretas com as fabricantes, explica o secretário-executivo da CMED, Romilson Volotão. Ele não acredita que as empresas estejam cometendo mais irregularidades, atribuindo o aumento nos casos a um maior rigor no monitoramento.
Em meados de 2020, a CMED começou a fazer um pente-fino nas negociações entre as empresas e o SUS. Os valores máximos da tabela de preços de medicamentos passou a ser cruzado automaticamente com o registro das compras feitas por órgãos públicos.
Embora simples, a medida não havia sido implementada até então. Para Matheus Falcão, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os resultados obtidos e a identificação de mais infratores mostram como a regulação do mercado de medicamentos ainda é frágil e precisa ser aprimorada. “A gente sabia que qualquer ação da CMED para fazer essa fiscalização faria diferença.”
Melhorar a fiscalização pode ajudar a reduzir os prejuízos aos cofres públicos. Hoje, cerca de 7% das compras de remédios feitas por prefeituras pagam preços abusivos, segundo cálculos do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “Nenhum município pode comprar medicamentos acima do preço, e eles são orientados a denunciar quando isso acontece”, diz Mauro Junqueira, secretário-executivo do conselho. Porém, a alta rotatividade dos gestores municipais do SUS dificulta a aplicação da norma no dia a dia, já que muitos dos recém-chegados desconhecem a legislação.
“Medicamentos vendidos a preços elevados causam problemas de acesso a produtos e serviços do SUS”, lembra Falcão, do Idec. A organização também recebeu mais denúncias de consumidores na pandemia por preço abusivo de medicamentos.
O especialista defende a descentralização da fiscalização, por meio de parcerias com governos locais e Procons, para aumentar sua eficácia. Os números da Anvisa mostram que são os entes públicos que mais denunciam. Desde 2019, a CMED recebeu 548 denúncias por venda de remédios com preços abusivos, das quais 499 partiram de órgãos públicos e as demais, do setor privado. Quem mais denunciou foram prefeituras (188 vezes), seguidas por estados (164) e hospitais federais (147).
Sequelas da Covid-19
Além do aumento da fiscalização, outra explicação para a alta de multas vem da pandemia, que encareceu o custo da matéria-prima e afetou a produção global de medicamentos como antibióticos, antialérgicos e analgésicos. “Estamos em uma crise de falta de produtos jamais vista no mundo e isso gera práticas abusivas e oportunistas, principalmente na ponta, pelas distribuidoras”, diz Elton Chaves, assessor técnico do Conasems.
As empresas farmacêuticas, porém, atribuem a crise de desabastecimento de remédios no país justamente à tabela de preços de medicamentos. Para o setor, os valores de certos produtos estariam defasados, o que inviabilizaria sua produção e comercialização.
“A regra é antiga, de 2003, quando não existiam genéricos e o dólar estava muito baixo. Hoje, se enfrentamos qualquer problema de frete ou variação cambial, nossos preços estão congelados”, diz Nelson Mussolini, do Sindusfarma, entidade que reúne as fabricantes. Apesar das críticas à regulação de preços, o representante da indústria afirma que ela deve ser respeitada “Se alguém vende acima do preço permitido, a CMED tem de multar.”
A tabela de preços de medicamentos é corrigida anualmente. Durante a pandemia, foi discutida dentro da CMED uma proposta para flexibilizar essa regra, “para permitir aumentar e reduzir preços de acordo com a necessidade de cada momento”, mas a mudança foi barrada pela Casa Civil, segundo Volotão.
Leia mais:
Governo Bolsonaro descumpre lei que aumentaria oferta de remédios contra Covid no Brasil
“O governo atual foi negligente em relação a essa ação mais preventiva”, afirma Barbano. Para o ex-presidente da Anvisa, faltou um monitoramento mais efetivo dos preços dos medicamentos, o que poderia evitar os casos de desabastecimento.
Filiado ao PT e apoiador do grupo de saúde do governo de transição, Barbano lembra, porém, que as farmacêuticas estão longe de terem prejuízos com a regulação de preços, tanto que há 20 anos operam no azul. “Tanto o comércio quanto a indústria cresceram nesse período, sempre muito acima da inflação, mesmo nos momentos de queda da economia.”
*Nota da redação: este texto foi alterado às 17h06 de 20 de dezembro de 2022 para incluir o posicionamento da Blau Farmacêutica SA