Faz tempo que videogame deixou de ser mero lazer — ou coisa de “nerd”. Agora, estamos falando de uma baita indústria digital que movimenta uma grana alta, bem alta.
Para ter uma ideia, a Newzoo, uma das principais consultorias da área, estima que o faturamento das empresas em 2023 vai superar a casa dos US$ 200 bilhões.
Tem cada vez mais gente trabalhando com game. Uns viram “pro player”, disputando campeonatos concorridíssimos de e-sports, como são chamados os esportes eletrônicos.
Já outros se dedicam a “streamar” no Youtube ou na Twitch para ensinar os fãs a jogar. Não sabe o que é streamar?
Este é o tema do segundo episódio da nova temporada do Trabalheira!
Ouça o episódio na íntegra:
Ficha técnica
Apresentação: Ana Aranha e Carlos Juliano Barros
Roteiro: Carlos Juliano Barros
Tratamento de roteiro: Ana Aranha
Edição, montagem e finalização: Victor Oliveira
Trilha sonora: Mari Romano e João Jabace (Rádio Novelo)
Identidade visual: Débora de Maio
Redes Sociais: Tamyres Matos
Distribuição: UOL
Para falar com a equipe: [email protected]
O Trabalheira é uma realização da Repórter Brasil
Roteiro do episódio
E2_T3 – Gamers e Streamers
Roteiro original: Carlos Juliano Barros
Tratamento de roteiro: Ana Aranha
Teca
Então… Eu gosto bastante de fazer lives, até para ser.. como outro trabalho, né? Vamos dizer assim, eu sou tipo Julius, né? Eu tenho vários trabalhos…
Caju
Oh… Ana! Bem que a gente poderia criar um quadro aqui no Trabalheira envolvendo o Julius, né? Pra quem não conhece, o Julius é o pai do Chris naquela série chamada “Todo Mundo Odeia o Chris”. Essa série – que, por sinal, é realmente excelente – é inspirada na vida do Chris Rock, aquele mesmo que tomou um tapão na cara do Will Smith na cerimônia do Oscar do ano passado. O Julius talvez seja o maior ícone da dupla jornada da história – pelo menos, da história da televisão. E ele virou uma referência pra todas as pessoas que precisam equilibrar vários pratos pra pagar as contas no fim do mês.
Ana
Total, Caju. O Julius é uma lenda do trabalho duro! Aliás, eu amo quando a Rochelle, a mãe do Chris, sobe nas tamancas e enche a boca pra se vangloriar disso:
“Meu marido tem dois empregos”
E pra não deixar passar o autojabá, a gente usou essa mesmíssima referência na temporada passada, falando do trabalho dos artistas. Isso porque é muito difícil – pra não dizer impossível – encontrar uma pessoa que trabalhe com arte e que não acumule dois ou mais empregos.
Caju
Pois é, Ana… O exemplo do Julius vem bem a calhar, de novo, pro nosso papo de hoje. A gente abriu o episódio ouvindo a Teca falar que tem vários trabalhos. Só pra contextualizar, a Teca é uma jogadora profissional de FIFA, um jogo de videogame de futebol bastante conhecido. E ela é realmente fera no que faz. Tão fera a ponto de ser a primeira mulher do mundo a chegar na divisão de elite dos campeonatos do FIFA. Só que, além dessa carreira de “pro player”, como são chamados os jogadores e as jogadoras profissionais de videogame, ela também tem um trabalho paralelo de “streamer”.
Ana
A conversa de hoje é sobre essas duas profissões típicas dos novos tempos – principalmente pra galera mais jovem. Tamo falando aí dos gamers e dos streamers. Geralmente, rola uma certa simbiose entre essas duas figuras… Quem streama curte videogame, e quem é gamer também streama pra ganhar uma graninha a mais – que nem a Teca.
Caju
Eu acho bom repetir esse verbo que você usou, Ana: “streamar”. Bem que ele já poderia estar no Aurélio, coisa e tal, né? Mas como não está, por enquanto, eu mesmo vou tentar fazer uma definição aqui: “Streamar é o ato de fazer lives, ou seja, transmissões ao vivo por meio de plataformas de streaming na internet”. A mais conhecida dessas plataformas é a Twitch.
Ana
E não vamos confundir Twitch com Twitter, hein?! Uma coisa é o Twitter, aquela rede social de textos curtinhos cheia de política e onde o ódio corre solto. Outra coisa bem diferente é a Twitch – que lembra mais o Youtube porque é onde rola muita live de videogame.
Caju
Só um comentário rápido, Ana: a Twitch pertence à Amazon, a gigante de e-commerce que dispensa apresentações. E o Twitter é aquela rede que foi recentemente comprada pelo bilionário Elon Musk…
Ana
Isso mesmo, Caju… a gente tá falando de um mercado que não para de crescer. E que já não tem mais muito a ver com aquela coisa típica da nossa infância, Caju, de trocar fita ou pegar na locadora pra convidar os amigos pra jogar em casa, sabe? Videogame hoje é uma baita de uma indústria digital, super diversa e que movimenta uma grana alta, bem alta. Só pra ter uma ideia, a Newzoo, uma das principais consultorias dessa área de games, estima que o faturamento das empresas agora em 2023 vai superar os 200 bilhões de dólares.
Caju
É muita grana mesmo! Convertendo pro real, então, supera a casa do trilhão…
Ana
Nesse universo específico em que a Teca atua, dos chamados e-sports (os esportes eletrônicos), tem torneio com premiação em dinheiro que supera os de campeonatos de futebol importantíssimos. No ano passado, a equipe russa que ganhou o mundial de Dota 2, um game de estratégia bem conhecido, levou pra casa o equivalente a 100 milhões de reais. Só pra comparar, a final da Libertadores da América de 2022 valeu… 85 milhões de reais.
Caju
É impressionante! E só pra complementar a informação, Ana, aí vai uma curiosidade: essa equipe russa campeã de Dota 2 ganhou na final de um time da China que tem uma parceria com o Paris Saint Germain, o PSG – um dos clubes de futebol mais importantes do mundo, onde jogam o Neymar, o Messi, o Mbappe. O que mostra aí como tem dinheiro, fama e prestígio envolvido nesse meio, né?
Ana
Ô se tem! E a gente vai falar de tudo isso! Então, seja bem-vindo, seja bem-vinda ao Trabalheira, um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil.
Caju
Aqui no Trabalheira a pegada é falar sobre o futuro do trabalho. Você pode ouvir esse e outros episódios nas principais plataformas de áudio. E também não deixe de visitar o nosso site: reporterbrasil.org.br/radiobatente. Lá você pode ouvir outros programas bem legais e conferir também a íntegra do roteiro desse episódio.
(VINHETA)
Pablo Miyazawa
Então, se você pensa no que a gente chama hoje de e-esporte ou esporte eletrônico, é algo que existe há muito tempo. Isso data do final da década de 90, pelo menos. Principalmente em países asiáticos como a Coreia do Sul, que sempre foi um dos países proeminentes na cultura digital como um todo, na tecnologia. Muito por um investimento do governo em colocar internet na mão das crianças desde sempre, investir em tecnologia de ponta pessoal, o que tornou o cenário propício para a criação não só de torneios, mas de uma filosofia em torno do esporte eletrônico, do videogame como competição.
Ana
Esse é o jornalista Pablo Miyazawa, que é uma referência em cultura pop e em videogame no Brasil. O Pablo já foi o editor de algumas das mais importantes revistas desse meio, como a Rolling Stone e a Nintendo. E hoje apresenta o programa Game On.GG, do portal Terra.
Pablo Miyazawa
Então, desde o final dos anos 90, já existe essa ideia do videogame como profissão, no sentido de a pessoa jogar o videogame e ganhar a vida com isso. E o Brasil sempre esteve ali, respirando isso de perto, sempre acompanhando da maneira que dá. Então, enquanto na Coreia isso surgiu por conta de um impulso do governo, investimento bruto nisso, o Brasil foi muito por aquela característica que o brasileiro tem de ser curioso e querer entender o que está rolando no resto do mundo, e improvisar para conseguir acompanhar.
Ana
O Pablo deixou claro que esse lance de ter o videogame como profissão – o “pro player” – não é necessariamente novo. Mas de poucos anos para cá a coisa explodiu. Principalmente porque o videogame deixou de ser apenas aquela experiência solitária, da pessoa jogar em casa. Isso ainda existe, claro. Mas os games que viram esporte eletrônico, e geram essa oportunidade de profissionalização, são jogados coletivamente, pela internet – no computador ou até pelo celular. Mas, assim, virar pro player é pra poucos, bem poucos mesmo. Até porque também são poucos os games capazes de criar uma liga, atrair fãs, patrocinadores e virar um e-sport.
Caju
Sim! E, como disse o Pablo, essa cultura já está muito mais estabelecida lá fora, nos Estados Unidos e também na Europa, mas principalmente nos países da Ásia. Aqui na América Latina, o Brasil é uma referência nesse mercado de games e de e-sports. Tanto que atrai até pro players de países vizinhos. É o caso do nosso hermano Matias Delipetro, um argentino de 25 anos que veio pra cá pra trabalhar com videogame e que conta pra gente como é o cotidiano de um pro player.
Matias Delipetro
Geralmente, como se divide, ou a maioria dos times fazem, é: acordam de manhã, algumas pessoas do time vão para academia, mas a maioria não. A parte física não está tão importante no que é ser jogador competitivo assim de e-sports. A maioria escolhe que não. Mas ajuda muito no dia a dia, querendo ou não, né?
Caju
Ah… só pra acrescentar uns detalhes sobre a carreira do Matias: ele é jogador profissional de Valorant – um game muito popular do gênero FPS. Essa sigla FPS, em inglês, quer dizer First-Person Shooter. Ou seja, atirador em primeira pessoa. Resumindo, o Valorant é um game de tiro, desses em que a câmera é o ponto de vista da pessoa que está jogando. Hoje, o Matias tem contrato com um dos maiores times de e-sports do Brasil: a Loud.
Matias Delipetro
Começa a academia amanhã. Depois disso, joga o jogo. Ou seja, o jogo, ou você pode entrar, você pode competir contra outras pessoas online, né? E meio que aquecer teu reflexo, aquecer sua movimentação dentro do jogo. Se chamam “mecânicas”, né? Como você utiliza suas habilidades, como você utiliza, sei lá, o mouse, o teclado, tudo. Depois disso, geralmente vem a parte tática, que é a parte que você conversa com o seu time, você planeja o dia, você fala o quê? “Hoje vamos fazer isso, isso, isso, isso, isso”. Hoje vamos treinar essa parte do jogo. Hoje vamos, sei lá, uma coisa assim, sabe? Depois vem a parte teórica… (ele se corrige) prática que você bota tudo que você falou do teórico na parte prática. Isso… Geralmente, seria assim.
Ana
Dá mesmo pra fazer uma comparação entre um pro player de videogame e um atleta profissional. Rola uma rotina: treino, discussão sobre tática, etc e tal… E tem até trabalho psicológico. A Teca, que tem contrato com um time importante da Dinamarca chamado Astralis, e que disputa os campeonatos de FIFA, já foi pra Europa só pra participar de treinamento sobre isso.
Teca
Eu fui para a Dinamarca três vezes. E a primeira vez foi para poder assinar o contrato com eles. A segunda vez, eu fui para participar de um bootcamp, que eles trouxeram lá psicólogos, pessoas que entendem bastante da parte mental, para explicar para a gente, para manter a calma no jogo, entre outras coisas.
Ana
Essa parte psicológica é essencial, até porque todo esporte de alto rendimento, seja eletrônico ou não, gera um desgaste mental – e físico! – surreal. Aliás, será que os pro players têm um “prazo de validade”, assim como os atletas? Você disse que o Matias tá com 25 anos, né? A Teca tem a mesma idade… Será que os dois têm muito mais tempo pela frente como pro player?
Caju
Excelente questão, Ana. Eu fiz exatamente essa pergunta pro Matias.
Matias Delipetro
Então, nosso prazo de validade geralmente é por volta dos 30 anos também, mas como ainda é algo muito, muito novo, realmente a gente não sabe. Porque estava aquela informação falsa que quando você tem 30, 33, 35 anos, seus reflexos começam a diminuir. Mas as pessoas estão fazendo… estão tendo mais estudos que falam que tudo isso é mentira. Porque realmente é mentira. O único que a pessoa tem são mais responsabilidades, querendo ou não. Então uma pessoa que tem 33 anos, não sei se vai querer ficar no computador. Essa é a diferença. Não sei se vai querer ficar, não sei se tem a mentalidade ou a vontade de ficar 12 horas no computador. Porque as coisas mudam, sabe? Tipo, realmente, as responsabilidades mudam, o dia a dia muda. Então, é um pouco difícil. E também não está tampouco aceitado. Se você ver um cara de 33 anos, 35 anos no computador, jogando joguinho, você vai pensar o quê? É um nerd, tipo, um verdadeiro nerd, né?
Ana
Interessante mesmo, seria um teto de aceitação social, né? O que a gente já vê hoje são alguns “pro players” fazendo a transição do mundo dos games pro mundo dos negócios. O Matias, por exemplo, faz parte da Loud, um time de jogadores profissionais de videogame criado pelo Bruno Oliveira. O Bruno já apareceu até na lista da Forbes das pessoas com menos de 30 que se destacam no mundo dos negócios. Recentemente, ele virou notícia depois de captar 50 milhões de reais pra investir em uma nova startup de blockchain e cryptogames – uma coisa tão high tech que eu nem vou me aventurar a explicar aqui, Caju! Mesmo porque eu não sei se eu entendi…
Caju
De boa, Ana! E nem vem ao caso mesmo. E tem outro Bruno famoso nesse métier. É o Bruno Góes – conhecido nas redes sociais como Nobru. Ele virou capa de revista e tal por ser campeão mundial de Free Fire, outro jogo de FPS que é muito, muito popular aqui no Brasil. E olha que interessante, Ana: a empresa responsável pelo Free Fire é dona da Shopee – uma plataforma de comércio eletrônico de Singapura que vem crescendo demais aqui no Brasil, muito em função do Free Fire.
Ana
É muito doido mesmo ver como a economia digital amarra todas essas pontas aparentemente soltas, né, Caju? Jogos de videogame sendo usados como “isca”, vamos dizer assim, pra sites de comércio eletrônico e outros tipos de plataformas digital…
Caju
É impressionante mesmo. E essa é justamente a deixa pra gente falar de outra vertente importante desse mercado, e que gera o outro tipo de trabalho que a gente mencionou na abertura: o dos streamers. Eu falei agora há pouco do Nobru. Além de empresário e pro player, o Nobru também é um dos principais streamers do Brasil. Tão grande a ponto de ser disputado a tapa pelas grandes plataformas. Em junho, ele trocou a Twitch, que ainda é a principal plataforma de streaming para quem faz transmissões de jogos no Brasil, pelo Youtube Gaming.
Ana
Isso… Mas vamo combina que o Nobru é uma estrela, uma celebridade – e, portanto, é uma exceção. O que interessa aqui pra gente é o espírito do Julius, a vida real de fazer dupla jornada e conciliar o trabalho de pro player com o de streamer, que nem a Teca.
Teca
Eu uso a Twitch como se fosse uma outra fonte de renda. Porque eu, fazendo as lives, até a quantidade de horas que eles pedem, tudo certinho, aí eles me pagam no início do outro mês o valor correspondente. Claro que, antes da Twitch fazer as novas políticas lá de mudanças que eles fizeram nos preços dos subs e etc, era mais vantajoso fazer live na Twitch porque você conseguia receber mais. Só que agora eles modificaram, e aí complicaram um pouco a renda dos streamers. Então, muitos canais pequenos já não conseguem mais fazer ou tirar a quantidade que conseguia tirar dinheiro para poder usar ali durante o mês para ele. Então, assim, as políticas dificultaram um pouco, mas, querendo ou não, é uma renda que ajuda também, né?
Ana
Antes de seguir, a gente precisa explicar como funcionam algumas coisas nesse mundo dos streamers – principalmente, na Twitch. Você reparou, Caju, que a Teca disse que a Twitch fez mudanças importantes na política de preços dos “subs” que impactaram na renda… e lá fui eu pesquisar o que são esses benditos subs. Esse universo tem quase que uma língua própria né? Vamo lá: os “subs” são as assinaturas que os fãs pagam todo mês pra apoiar um streamer. A mudança foi a seguinte: antes, cada streamer recebia por volta de 23 reais por sub. Mas daí, pra popularizar o acesso, a Amazon baixou o valor dos subs pra cerca de 8 reais – três vezes menos.
Caju
E fora isso tem aquele de esquema de gorjeta também, né, Ana?
Ana
Sim… O fã que não quiser pagar um “sub” todo mês pode pingar uma graninha pro streamer. Pra isso, ele compra uma moeda virtual do Twitch chamada “bit” e faz uma doação.
Caju
E mais curioso ainda, Ana… Essa mudança da política da remuneração da Twitch gerou um movimento inusitado na internet: um sindicato de streamers.
Ana
Sindicato de streamers é sensacional! Não dá pra ser mais “futuro do trabalho” do que isso.
Caju
Demais! Esse movimento foi criado pra contestar a nova política de preços da Twitch e tentar valorizar os streamers. Na verdade, esse sindicato não era contra a redução dos preços das assinaturas – pelo contrário. Eles queriam mesmo que os subs fossem mais baratos, pra democratizar mesmo o acesso. A grande bandeira deles era aumentar o repasse das assinaturas feito pela Twitch para os streamers, que ficam com menos de um terço de cada sub – o resto é comido pela comissão da plataforma e por um imposto cobrado pelo governo dos Estados Unidos. Quem puxou essa história foi o Picoca, apelido do Matheus Tavares. Mas, antes de a gente se aprofundar nesse assunto, é bacana conhecer um pouco da história do Picoca.
Picoca
Eu sempre fui um cara que gostava de videogame…Eu comecei com o League of Legends, foi o primeiro jogo assim que deu um boom…
Caju
Uma pausa rápida: o League of Legends, também chamado de LOL, é um game muito famoso de estratégia entre duas equipes de cinco jogadores. O objetivo de cada equipe é tomar a base da outra. O Picoca define o League of Legends como “um xadrez super dinâmico”….
Matheus_Picoca
Como eu sempre falei que eu tive afinidade com os jogos, desde pequeno, várias pessoas queriam aprender, na época, o League of Legends. Era a sensação do momento, eu era muito bom, então eu disse: por que não abrir uma live e para ensinar as outras pessoas? Esse foi o meu intuito: abrir a live, jogar, ensinar as outras pessoas, porque eu estava ali entre os top 100 do Brasil. Então eu comecei assim: com o pensamento de ensinar as pessoas jogando.
Matheus_Picoca
E eu disse: “ah… agora eu vou tentar streamar”. Larguei a faculdade, comecei a streamar, vi que estava dando certo, e me mudei para a capital para ter uma internet melhor.
Ana
Cara, ele mudou de cidade por causa da internet… ele morava onde, Caju?
Caju
Ele é de Itabaiana, uma cidade próxima de Aracaju, capital de Sergipe. Ele chegou a morar um tempo em São Paulo também, mas voltou pra Itabaiana recentemente. E ouvindo ele falar dá pra ter uma dimensão mesmo do que faz mesmo um streamer. Tem esse lance de ensinar as pessoas a jogar um game, claro, mas é muito mais do que isso. O streamer é um profissional do entretenimento. Lembra muito, sei lá, um apresentador de programa de auditório, saca?
Matheus_Picoca
Sempre o carro chefe foi o League of Legends, né? Eu fiz a Rinha dos Bronzes, onde eu narrava as pessoas de elo baixo, as pessoas que não são tão boas, e a galera gosta de ver… como se fosse uma brincadeira de circo mesmo, sabe? Pegava os piores ali da plateia e colocava todo mundo para assistir e eu ia narrando. Foi um quadro que deu muito certo na época, foi muito legal. Conheci várias pessoas legais por causa disso. Depois comecei a fazer alguns reacts, que hoje em dia está muito, muito em alta, né? Tipo, assistia coisas com as pessoas da própria stream. Então, já cheguei a colocar 20 mil pessoas assistindo comigo uma série de culinária na televisão. Então, tipo, hoje em dia está muito comum isso. Você pode ver… tem vários streamers aí que assistem coisas. Tipo: as pessoas assistem você assistir coisas. Então, tipo, o streaming cresceu muito de um tempo para cá, sabe? Não é mais só jogo. Eu vejo streaming hoje mais com coisas do dia a dia, acompanhando notícias. Já vi relacionado a política… No streaming, cresceu tanto que furou a bolha, eu diria, de game, mas começou com o game.
Ana
Agora, tem uma dimensão muito maluca – e, de certa forma, perigosa – nessa história que é o lance da dedicação à plataforma, né? Não interessa se são “apenas” redes sociais, como o Facebook e o Twitter, ou se são aplicativos criados pra trabalho mesmo, como o Uber ou o iFood… O ponto é que toda plataforma, pra recompensar e gerar dinheiro pra quem usa, demanda que a pessoa passe o maior tempo possível conectado – e produzindo.
Caju
Pode crer, Ana. O Picoca, por exemplo, já chegou a ficar 24 horas online, fazendo uma live, sem parar! Mas ele disse que nunca mais também…
Ana
Nossa… trabalhar 24 horas deve ser punk, fazendo live então… E isso nos leva a um conceito muito interessante, criado por dois pesquisadores ingleses chamados Jamie Woodcock e Mark Johnson. Esse conceito define muito bem essa relação dos streamers com o público: é o “trabalho por afeto”. Saber cativar o público é essencial prum streamer ter sucesso. Até porque, ao contrário de um Youtuber, que publica vídeos editados, o diferencial do streamer é ganhar a audiência ao vivo. Ele depende dessa habilidade de despertar o afeto da sua “comunidade”, como a Twitch chama, pra poder conquistar mais assinantes, mais gorjetas e mais patrocínios também.
Caju
Pode crer, Ana. Eu falei dos apresentadores de auditório e isso me lembrou daquele bordão do Faustão: “quem sabe faz ao vivo”. O streamer é bem isso mesmo! A Jackeline Gameleira, que faz um mestrado na faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre os streamers, ajuda a gente a entender a importância de despertar o afeto na comunidade.
Jackeline Gameleira
A plataforma exige do streamer, até pela criação dessa comunidade, que haja uma certa frequência de lives.
Jackeline Gameleira
Pra você manter a comunidade, a comunidade tem expectativa de que você esteja lá. E aí, se você não está lá, a comunidade – quando você estiver – também não vai mais estar lá. Então, é como se você começasse a criar e tivesse sempre que estar alimentando. Muitos streamers acreditam que é apenas um hobby, uma diversão, não seria um trabalho propriamente dito. Porque é prazeroso e aí eles estão jogando. Isso já mexe com a ideologia prevalente de que eles estão trabalhando.
Ana
Quer dizer, a necessidade de o streamer estar conectado o maior tempo possível é estimulada não só por essa fronteira borrada entre trabalho e diversão, mas também por esse apelo de um envolvimento quase que pessoal com a comunidade… Deixar de trabalhar vira praticamente uma desfeita, né?
Caju
Exato, Ana. E a Jackeline também chamou atenção para outra coisa muito importante nessa discussão e que muitas vezes passa batida: será que só dedicação e talento são suficientes para ter sucesso como streamer? Claro, vai ter streamer que vai ser mais dedicado, carismático e competente do que os outros. Então, é esperado que alguns façam mais sucesso. Ok, é do jogo. Mas será que é só isso?
Jackeline Gameleira
Existem essas determinações que são muito invisíveis, essa ausência de transparência de como a audiência é direcionada na plataforma. Então, quando você entra na Twitch, por exemplo, vão aparecer os principais streamers para você assistir. Como é que eles definem isso? Eles colocam um parâmetro pra ter mulheres e homens? Pra ter negros e brancos? Isso tudo tem que ser uma questão avaliada e transformada numa questão transparente pro público que está assistindo ou pros streamers. E aí você fica naquela ilusão de que você, pelo seu esforço, você vai conseguir se tornar um streamer de sucesso, mas aí eles não estão direcionando o público pra você, porque eles têm outros critérios que você não sabe quais são. Então, assim, existe uma ilusão de que quanto mais você se esforça, mais você vai conseguir o seu público, você vai conseguir se transformar em um streamer de sucesso. Assim como na Uber, né? Mas você não sabe quais são os parâmetros pra isso.
Ana
Essa discussão sobre transparência e o funcionamento das plataformas me lembrou que a gente não chegou a discutir que fim levou o tal do sindicato dos streamers – que o Picoca ajudou a fundar, Caju.
Caju
Verdade, Ana. Vamos deixar o próprio Picoca responder.
Matheus_Picoca
Infelizmente, ele estava tomando muito tempo da equipe. E, pelo que eu ouvi, a Twitch realmente não ia mudar nada, né? Foi algo que eles já planejaram, eles não deram nenhuma resposta. Então, todo mundo da equipe falou: “ah… vou dar um tempo aqui para trás, tenho minhas coisas para fazer”. Estava realmente tomando muito tempo de todo mundo. E a gente disse meio que foi um meio com uma batalha, vamos dizer assim, meio perdida, no sentido de: “tá…é uma empresa privada. A gente tentou, fez o nosso. Se eles não escutaram, a gente vai tentar se adaptar”. Por isso que aí veio o Pix – o Pix que salvou muitos streamers menores, não é? Então, a gente agora não depende totalmente da plataforma, depende mais dos colaboradores. Agora, como tem o Pix, eles mandam Pix ao invés de mandar sub.
Ana
Cara, que lance curioso e sensacional, né? Pra driblar as restrições e a falta de diálogo com a empresa, os streamers se valeram do típico “jeitinho brasileiro” pra segurar a onda e garantir a renda. Mas e aí, Caju, quanto ganha um streamer ou um pro player?
Caju
Ainda bem que você tocou nesse assunto, Ana. A gente já está caminhando pros finalmentes e estava deixando de falar disso…
Ana
Pois é, as pessoas que tão ouvindo certamente querem saber…. Só que essa é uma pergunta bem complicada de responder porque nem todo streamer é pro player. E nem todo pro player, por melhor que seja, é um streamer de sucesso. No caso dos streamers, tem uma minoria de celebridades que ganham uma bala. No ano passado, rolou um vazamento de dados que mostrou que 135 streamers brasileiros faturaram, juntos, 22 milhões de dólares. Mas isso não é a realidade da maioria. Nem de longe. A maior parte está na luta para fazer um, dois, três salários mínimos…
Caju
É bem por aí mesmo, Ana. O Matias deu uma explicação mais ou menos nessa linha. E falou da realidade específica dos jogadores profissionais.
Matias Delipetro
Cara, realmente é muito difícil falar de salário, não porque eu tenha vergonha ou uma coisa assim, porque realmente é difícil. Porque não está padronizado, como eu te falei. Ou seja, o jogador de CS, que está no maior nível, ou no nível que eu estou, vamos supor: sou um dos melhores jogadores de CS do Brasil, vai ganhar totalmente diferente a um dos melhores jogadores do LOL. Realmente, não poderia dizer um salário… mas vamos supor: em dólar, vamos supor que em dólar a média está de 3 mil, 4 mil para cima. Mas, ao mesmo tempo, pode ser que eu, por exemplo, posso ganhar bem menos que o que podia dar um jogador de CS competitivo mais alto. Porque aí entra nas outras remunerações. Esse jogador pode ter um stream, pode fazer live, que ele ganha mais ainda do que no salário. Porque o stream te dá essa capacidade. Ao mesmo tempo que tem um stream, o salário, ele pode ter parcerias com algumas marcas de headset, de mouse, de teclado. Então, pode ganhar mais ainda.
Caju
Bom, Ana… virar pro player é pra bem poucos, mas pode render um bom dinheiro – 3 a 4 mil dólares por mês é uma grana bem considerável. E pra ter sucesso como streamer não é muito diferente, né? Também é difícil e, como quase sempre rola na economia digital, o vencedor, ou melhor, os poucos vencedores levam tudo. Ou quase tudo.
Ana
Exato, Caju. Essa é uma constatação recorrente aqui nos nossos papos, né? Mas por hoje é só.
Caju
Game over, Ana! Não tem continue!
Ana
Nada, acabou mesmo! A gente volta na próxima semana com um papo sobre o trabalho com agrotóxicos.
O Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil.
O roteiro original é do Carlos Juliano Barros, o Caju.
Caju
E o tratamento de roteiro é da minha amiga e companheira de apresentação, Ana Aranha.
Ana
A montagem e a edição ficam por conta do Victor Oliveira. E as trilhas da vinheta foram compostas pelo João Jabace e pela Mari Romanno, quando este programa era feito em parceria com a Rádio Novelo. A eles, nosso muito obrigado.
Caju
Valeu, Ana!
Ana
Até!