Trabalheira #17: Drones podem reduzir intoxicações por agrotóxicos?

Mais de 7 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos no trabalho entre 2010 e 2019 -- uma assustadora média de duas por dia. A moda agora é o uso de drones para a pulverização de agrotóxicos. Mas será que vai resolver?
 06/04/2023

Mesmo na era da “agricultura de precisão”, também chamada de “agricultura 4.0” devido ao uso cada vez mais intenso de tecnologias digitais, a manipulação de herbicidas, inseticidas e outras substâncias nocivas à saúde humana continua sendo um importante vetor de acidentes e doenças.

Uma das últimas tendências no universo agro é o uso de drones para a aplicação de agrotóxicos. A técnica é vendida como uma modernização da polêmica “pulverização aérea”.

Realizada por pequenos aviões, a prática é proibida em países da União Europeia e em alguns estados e municípios brasileiros, justamente por ameaçar a integridade do meio ambiente e a saúde de trabalhadores e comunidades vizinhas às lavouras.

Mas será que o uso de drones contribui de fato para reduzir os impactos da pulverização de agrotóxicos?

Esse é o tema do terceiro episódio da nova temporada do Trabalheira.

Ouça o episódio na íntegra:

Ficha técnica

Apresentação: Ana Aranha e Carlos Juliano Barros

Roteiro: Carlos Juliano Barros

Tratamento de roteiro: Ana Aranha

Edição, montagem e finalização: Victor Oliveira

Trilha sonora: Mari Romano e João Jabace (Rádio Novelo)

Identidade visual: Débora de Maio

Redes Sociais: Tamyres Matos

Distribuição: UOL

Para falar com a equipe: [email protected]

O Trabalheira é uma realização da Repórter Brasil.

Roteiro do episódio

E3_T3 – Agrotóxicos

Roteiro original: Carlos Juliano Barros
Tratamento de roteiro: Ana Aranha

Caju
Oh… Ana! Hoje aqui no Trabalheira a gente vai falar de um assunto que você domina como pouquíssimas pessoas, hein?

Ana
Olha, acho que esse tema ninguém domina totalmente, Caju. É daqueles que precisa sempre de muita gente pensando junto…

Caju
Eu tô tentando criar um climinha de suspense aqui, só que a verdade é que tudo não passa de um jabá descarado, mas completamente legítimo: a Ana é uma das idealizadoras de um projeto super cabeçudo chamado “Por trás do Alimento”. Um núcleo da Repórter Brasil que se juntou à Agência Pública pra cobrir em profundidade o impacto dos agrotóxicos na alimentação e na saúde das pessoas, né, Ana?

Ana
Para quem se preocupa com essa questão, ainda mais nestes últimos tempos de liberação recorde de agrotóxicos, vale a pena ver o tanto de coisa que a gente descobriu. Tá tudo lá no nosso site: reporterbrasil.org.br. Tem muita investigação sobre o assunto.

Caju
Ô, se tem! Uma das minhas preferidas é o Mapa da Água. Sabe aquela água que, aparentemente, sai limpa, cristalina e prontinha pra beber da sua torneira? Pois é… esse Mapa organiza uma série de dados mostrando que em muitas cidades do país essa água está contaminada por agrotóxicos — em alguns casos, em níveis preocupantes. Na cidade de São Paulo, por exemplo, tem uma situação bastante séria que é uma substância cancerígena que apareceu acima do limite considerado seguro por três anos consecutivos. Esse Mapa bombou, né, Ana?

Ana
Foi muita repercussão, Caju. E isso aconteceu porque esse é o único lugar onde estes dados estão publicados de forma acessível, né? E infelizmente isso ainda não mudou, as empresas continuam omitindo esses dados aos consumidores. Outra ferramenta bem útil desse projeto foi o Robotox, um robozinho programado pra detectar a aprovação de agrotóxicos em tempo real. Sempre que sai no Diário Oficial uma nova autorização pra uso de agrotóxico, o Robotox avisa geral pelo Twitter. E esse robô teve muito trabalho na gestão do Bolsonaro, que como todo mundo sabe abriu essa porteira. Abriu, não… escancarou! Foram mais de 1.680 novos produtos aprovados no governo dele. Isso é mais da metade do total autorizado na história do Brasil.

Caju
Muita coisa, né? Bom… como a gente está falando de robô, e como a missão do Trabalheira é discutir o futuro do trabalho, sempre com essa pegada de tecnologia, essa é a deixa perfeita pra introduzir o tema do nosso papo de hoje: como é trabalhar dentro desse universo do agronegócio que se apresenta como tech, pop, inovador etc etc A propaganda exalta esse setor como o carro chefe do Brasil do futuro, de uma potência tecnológica. A gente vai olhar os bastidores dessa história pra entender como ficam os trabalhadores nessa história, como a tecnologia de fato muda a vida de quem está lá na base, carregando esse piano.

Ana
A gente vive numa era que alguns chamam de “agricultura de precisão” — outros de “agricultura 4.0”. O fato é que tem cada vez mais big data, internet das coisas e inteligência artificial no campo, principalmente entre os produtores que podem e querem investir nisso. A última moda aí desse mercado é o uso de drones pra aplicar agrotóxicos, isso é apresentado como uma modernização da chamada “pulverização aérea”, geralmente feita por pequenos aviões.

Caju
E já que a gente tá falando de agricultura, pecuária, eu não poderia deixar de fazer um trocadilho, Ana: é impressionante como drone virou “carne de vaca”! Hoje você encontra drone em tudo que é lugar, pra todo tipo de coisa, né?

Ana
Total, até na vida cotidiana, né? Tem em show, em parque, na praia… Mas a pergunta que não quer calar é: será que o uso dos drones ajuda a diminuir os impactos negativos dos agrotóxicos sobre o meio ambiente? E, principalmente, como a tecnologia muda a vida dos trabalhadores – que, afinal de contas, são o nosso foco aqui no Trabalheira?

Caju
Isso é o que a gente vai discutir ao longo do episódio de hoje. Então, seja bem-vindo, seja bem-vinda ao Trabalheira, um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil.

Ana
O Trabalheira pode ser ouvido nas principais plataformas de áudio e no nosso site:

reporterbrasil.org.br/radiobatente

Lá, além de escutar os episódios da temporada atual e das anteriores, você também encontra os nosso roteiros.

(Vinheta)

Leomar Daroncho
É uma pergunta que é comum ocorrer em eventos em que a gente fala sobre esse tema: “Pô, mas não é legal usar agrotóxico no Brasil? Não é permitido?” É… a lei permite, a palavra agrotóxico está na Constituição. Mas é legal, desde que — e aí a lei é bem rigorosa com tudo, ela disciplina toda a cadeia com uma série de medidas. Tem a lei dos agrotóxicos, tem norma ambiental também. Depois tem a norma regulamentadora do trabalho rural, que também tem requisitos.

Caju
Esse é o Leomar Daroncho. O Leomar é procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), um órgão federal que tem por missão defender os direitos dos trabalhadores.

Leomar Daroncho
Aí começa: “ah… mas aí é muito caro, é muito dispendioso”. Poxa, mas você quer usar um produto altamente tóxico, com danos ambientais, danos aos trabalhadores, às comunidades vizinhas, aos consumidores do resíduo, e você acha que não tem que estar regulamentado isso? Em qualquer lugar do mundo isso é regulamentado.

Caju
Ana, quem esteve por aqui, no planeta Terra, nos últimos anos sabe, mesmo que por cima, que esse tema dos agrotóxicos é um dos mais quentes hoje em dia no Brasil, né?

Ana
Sim… além do recorde de registros de agrotóxicos, teve um embate caloroso no Congresso que mobilizou dezenas de associações, movimentos, grupos de pesquisa e até órgãos do Estado contra o chamado PL do Veneno. Uma briga que ainda não acabou e sobre a qual a gente vai falar daqui a pouco.

Mas eu queria aproveitar a fala do Leomar sobre a importância de regulamentação de produtos perigosos pra retomar a história dos drones.

É um ótimo exemplo de como o avanço da tecnologia no campo não é uma solução por si só. A gente precisa de regras específicas pra garantir que a tecnologia de fato sirva pra superar problemas já bastante conhecidos.

Caju
Pois é, Ana. Os drones são a nova geração, os herdeiros dos aviões que fazem a pulverização aérea. Acho que todo mundo já deve ter visto num Globo Rural da vida uma imagem desses aviõezinhos fazendo um voo rasante sobre uma lavoura pra despejar litros e litros de agrotóxicos. Geralmente, essa é uma imagem associada à potência do agro. Só que essa é uma prática bem controversa, pra dizer o mínimo. Tanto que ela é proibida na Europa. Lá a pulverização aérea só é permitida em casos de emergência e as autorizações são super controladas. Aqui no Brasil, nos últimos anos, alguns estados e municípios criaram leis proibindo a pulverização aérea, por causa dos impactos não só pros trabalhadores, mas também pras comunidades vizinhas e pro meio ambiente..

Ana
Um dos maiores riscos é o que os especialistas chamam de “deriva”. Resumindo, deriva é o agrotóxico que, ao invés de cair na planta, cai em rios, casas, escolas e até outras plantações – já que o vento pode carregar o produto pra longe.

O primeiro e único estado a banir essa prática foi o Ceará. E eu tava lá, Caju, no dia que foi sancionada pelo governador, que na época era o Camilo Santana. Foi muito comemorado pelos sindicatos, em especial porque ela leva o nome de um trabalhador que foi assassinado justamente por denunciar os impactos negativos dos agrotóxicos. Ele era conhecido como Zé Maria do Tomé e é esse o nome da lei do Ceará hoje: Lei Zé Maria do Tomé.

Caju
E ele denunciava especificamente a pulverização aérea, né?

Ana
Sim, ele foi assassinado dias depois de pressionar e conseguir proibir o uso de avião na aplicação de agrotóxicos na cidade dele. Semanas depois do crime, essa mesma lei caiu e a prática voltou a ser autorizada lá.

Caju
História sinistra.

Ana
Sim, revela muito sobre esse lado violento do agro, né? Essa tradição dos coronéis que convive com o agro moderno e tecnológico.
Mas agora, hoje, em resposta a essa proibição feita pelo Estado do Ceará, tem uma uma disputa de cachorro-muito-grande no STF, a nossa suprema corte. Isso porque a CNA, a Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária, que representa grandes produtores rurais, entrou com uma ação pra derrubar as leis que proíbem a pulverização aérea em todo o Brasil.

Caju
É curioso ver como a tecnologia avança mais rápido que o direito, né? A discussão na Justiça é sobre aviões, mas a gente já tá na era dos drones… Aliás, por curiosidade: em que tipos de plantações os drones têm sido mais utilizados, Ana?

Ana
Olha, Caju, grandes produtores de grãos — soja, milho — ainda não usam drones. Mas já tem drones sendo usados na produção de frutas.

Caju
Além dos tipos de lavouras, tem a questão da grana, né? Sobre esse assunto, quem tem muito a dizer é o Lúcio Jorge — ele é engenheiro e servidor da Embrapa, aquele órgão federal especializado na assessoria técnica a produtores rurais.

Lúcio Jorge
Eu diria que começa a ter uma abrangência bastante grande agora, está caindo o preço, mas ainda é caro para o pequeno e médio produtor. Então, com isso, a gente está vendo o quê? Uma explosão de prestadores de serviço. Então, aqueles prestadores de serviços que faziam serviço para agricultura de precisão começaram a comprar drones de pulverização, e estão fazendo. Os nichos maiores que eles estão entrando é onde era difícil fazer, por exemplo, áreas de montanha… Por exemplo, eucalipto, tem umas áreas bastante difíceis de percorrer, então, o drone para pulverização entra bem nesse aspecto. Pequenas propriedades estão comprando os serviços. Só que ainda é um serviço que não está barato. Por exemplo, se cobra hoje para uma pulverização de 200 a 350 reais o hectare. É mais ou menos o que a gente tem visto. E isso para um pequeno ainda é muito, entendeu?

Ana
O Lúcio parece ver com muito bons olhos esse desenvolvimento dos drones, né, Caju?

Caju
Sim, com certeza, Ana. Ele acha que os drones são um avanço importante, mas ainda enxerga alguns gargalos, principalmente em termos de regulamentação e fiscalização.

Lúcio Jorge
Olha, a gente fez uns trabalhos, comparando a segurança, comparando mesmo a qualidade… A qualidade da aplicação do drone é bem superior, né? Se você pensar, se gasta muito menos produto, tem muito menos impacto ambiental. Então, mas assim, eu diria que é um caminho sem volta. É um equipamento que realmente traz eficiência. Traz riscos também, né? Então, tem que… toda uma legislação tem que amparar melhor. Porque… o problema de um item… imagina que um drone desse drone cai… É fácil cair, mas imagina que um drone desse caia num manancial que abastece a água de uma cidade — ele, com um produto químico desses. Então, é muito mais fácil cair um drone desses do que um avião de pulverização convencional. Porque a categoria de segurança e tal é diferente, né? Então se exige muito mais manutenção numa categoria de avião tripulado. E os drone, eu diria que são mais negligenciados um pouquinho… .

Ana
Ficou claro que o Lúcio, apesar das ressalvas, enxerga o uso dos drones como “um caminho sem volta”. E tem quem veja esse caminho com bastante temor, mais como risco do que solução. É o caso da Naiara Bittencourt, que é advogada da Terra de Direitos, uma organização que assessora comunidades tradicionais e movimentos sociais.

Naiara Bittencourt
Olha, eu sinceramente não vejo de forma positiva por quê? Porque, na verdade, ele vai ao invés de substituir, por exemplo, a aplicação por aeronaves, ele vai multiplicar. As projeções de vários engenheiros agrônomos que eu tenho visto é que, daqui a poucos anos no Brasil, a grande massa de aplicação de agrotóxicos seja por drone. Ou seja, a gente vai ter muitos aparelhos por drone, a gente vai massificar a prática da pulverização aérea por agrotóxicos. E a pulverização aérea a gente já tem visto que causa diversos danos. Por exemplo, como você mesmo mencionou, a deriva. Nós não temos ainda estudos bem aprofundados sobre os impactos da aplicação por drone. Ainda é tudo muito novo, né? Então, qual é o volume dessa deriva? Como é que tem se dado? Mas a deriva é inevitável. Isso, todos os pesquisadores falam: a deriva é inevitável.

Ana
Sobre esse descompasso entre tecnologia e direito que você falou, Caju: mesmo em locais em que a pulverização aérea já é proibida, tem gente explorando brecha na lei pra usar drone. Eles fazem uma “interpretação criativa”, digamos assim.

Naiara Bittencourt
Pulverização aérea é pulverização aérea — pode ser por aeronaves ou por realização por drone. Mas, quando se está escrito às vezes “pulverização por aeronaves”, alguns municípios têm feito uma interpretação que ao meu ver é errônea de que os drones não se encaixariam nessa proibição de pulverização aérea. É uma interpretação equivocada ao meu ver, mas de alguma forma ela está acontecendo nesses territórios. Então, é uma forma também de burlar aquela conquista que alguns municípios tiveram, de proibir essa pulverização aérea. Burlar, via drones. É importante até lembrar que, na União Europeia, desde 2009, há uma diretiva que proíbe todos os países da União Europeia de pulverizarem agrotóxicos por aviões. Ou seja, eles já estão bem mais avançados do que nós.

Caju
Ana, esse tema é tão complexo que até agora a gente não chegou a falar sobre os riscos específicos pros trabalhadores. Mas o Lúcio entrou nesse assunto e comentou também sobre os problemas enfrentados pelo operador – que é o cara que dirige o trator, o avião ou opera o drone na hora da aplicação.

Lúcio Jorge
A operação é muito mais limpa, vamos dizer assim, para o produtor, para o operador. O operador corre menos riscos, na minha opinião. É uma tendência mesmo de poder usar. A limitação está sendo nessa, né? Ainda as questões de aprovação de legislação e ainda a questão de riscos à operação em grandes áreas, que é onde demandaria mais renda, é ainda onde tem mais dificuldade. Mas, em termos de segurança, em termos de contaminação para o operador, sem dúvida é um ganho gigantesco.

Ana
Então, já a Naiara tem outra visão, ela não vê o drone como um avanço pros trabalhadores da linha de frente nas lavouras.

Naiara Bittencourt
Seja na hora que ele está colocando no drone aquele agrotóxico, seja na hora que ele está limpando o drone, verificando o drone, seja na hora que ele está pulverizando… Enfim, há um grau de exposição que é danoso de alguma forma e pode trazer especialmente ou intoxicações agudas, que são aquelas ali geradas naquele momento de aplicação de exposição, mas também intoxicações crônicas, que são aquelas que são acumuladas ao longo do tempo, por várias aplicações, né? Que vão se acumulando no corpo do trabalhador e podem gerar diversos danos posteriores, como cânceres, enfim, malformações, distúrbios hormonais, etc.

Caju
O Leomar, procurador do Ministério Público do Trabalho que a gente ouviu antes, também concorda com a Naiara. Pra ele, o uso seguro de agrotóxicos também é um mito — e não é só em drones. Inclusive, o Leomar vem participando das discussões no Congresso Nacional sobre uma nova legislação para agrotóxicos.

Leomar Daroncho
Eu participei de uma das audiências públicas que teve no final do mês passado, no Senado, discutindo o PL dos agrotóxicos, ou o PL dos venenos, e de novo eles batem nisso: sabendo usar, seguindo as recomendações, não tem problema; seguindo as orientações… Mas é um mito o uso seguro. Primeiro que, se usar todos os EPIs recomendados, você vai ter a mitigação. Você diminui o agravo, mas você não elimina. E é um mito acreditar que seja, na prática, utilizada aquela parafernália toda, que é uma roupa impermeável emborrachada, uma máscara, um boné, luva, perneira, uma bota impermeável, uma máscara para produto químico, que não é essa máscara que usam para a Covid. E a gente encontra nas fiscalizações gente usando essa máscara de farmácia — não é essa. Todas as vezes que eu fui para o interior, para propriedades, é muito raro achar alguém com toda aquela parafernália que eles dizem que deve ser usado.

Ana
Caju, pensa nisso. As pessoas se recusaram até a usar máscara de pano no meio de uma pandemia, lembra? Teve gente que saiu na porrada por causa disso. Imagina agora ter que trabalhar com uma roupa de astronauta embaixo do sol quente? A pessoa fica toda suada, sufocada, exausta… é desumano.
E aí, o que acontece? O cara tira a roupa de proteção, porque ele não aguenta mesmo, e corre o risco de se intoxicar.

Caju
Ou seja, não adianta ter toda a tecnologia de roupas de proteção no campo se esses equipamentos são incompatíveis com a realidade do campo brasileiro.

Ana
Exato, pra você ter uma ideia do quão grave é esse problema,, tem dados oficiais que a gente levantou nas nossas matérias. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 7 mil pessoas foram atendidas em hospitais e diagnosticadas com intoxicação por agrotóxicos no ambiente de trabalho entre 2010 e 2019. Isso, Caju, dá uma média de duas intoxicações por dia. E olha que a gente tá falando apenas das pessoas que se sentiram mal a ponto de ir até um hospital – e de casos onde o profissional da saúde conseguiu relacionar o caso ao trabalho. Na prática, o número de pessoas intoxicadas por agrotóxicos no trabalho é muito maior.

Caju
Com certeza, Ana! E tem uma questão que chega a ser cruel até, que é a falta de recursos para provar, por A + B, que o problema de saúde do trabalhador teve como causa o contato com o agrotóxico. Pros casos de intoxicação que aconteceram naquele mesmo dia ou semana, nem seria tão difícil, bastaria testar o sangue ou até a urina do trabalhador, mas isso nunca acontece. Nos casos em que a intoxicação ocorreu ao longo de muito tempo, uma série de testes ainda mais inacessíveis seriam necessários. Na prática, essa relação nunca fica comprovada.

A exceção foi um caso que o Leomar me contou, de um empregado de uma oficina de aeronaves no interior de Goiás que desenvolveu uma alergia pesada, e também teve problemas respiratórios, por entrar em contato com agrotóxicos de modo contínuo por um tempo longo.

Ana
Sim, eu me lembro dessa matéria, a exceção à regra em que a empresa foi punida, né?

Caju
Foi isso mesmo, Ana. A empresa foi condenada a pagar uma pensão por 34 anos para esse trabalhador. Mas essa decisão, segundo o Leomar, é bastante rara porque, como eu estava dizendo, comprovar que o problema de saúde foi causado pelo agrotóxico não é fácil. E isso só aconteceu nesse caso porque o trabalhador conseguiu fazer a tempo um exame de sangue que atestou a presença de agrotóxico no organismo dele. Aliás, pra quem quiser mais informações sobre esse caso específico, no nosso site (reporterbrasil.org.br/radiobatente) tem o link para a matéria completa.

Ana
E você sabe que nessas apurações eu conheci uma pesquisadora que monitora há anos todas as decisões da Justiça sobre processos que envolvem agrotóxicos no mundo do trabalho. Segundo ela, Ranielle Sousa, da Universidade Federal do Mato Grosso, é muito raro mesmo ver uma decisão na Justiça que reconheça o chamado “nexo de causalidade” entre a doença e a exposição ao agrotóxico.

E aí fica esse descompasso entre os grandes investimentos na ciência por trás do produto que vai melhorar a colheita da soja, por exemplo, e a falta de investimento na ciência que poderia mapear as doenças que esses produtos podem gerar. Além de falta de investimento no atendimento e na tecnologia pra identificar qual produto contaminou aquele trabalhador.
Vamos ouvir a Ranielle sobre as grandes dificuldades para provar justamente esse “nexo de causalidade”.

Ranielle
Então, é preciso demonstrar que um trabalhador, ele está doente, ou que a pessoa está doente, que a pessoa está intoxicada. E, além de provar que a pessoa está intoxicada, é preciso provar que aquela doença, que aquela intoxicação, foi provocada por aquele determinado agrotóxico, por aquele determinado pesticida por aquele determinado herbicida. Como que a gente faz isso? Essa… Aí a gente começa a entender as dificuldades. Primeiro, nós precisamos ter estudos técnicos, científicos, que comprovem que os agrotóxicos eles causam aquela doença, que eles causam aquela determinada enfermidade que elas causam, que eles causam aqueles tipos de dano. E eu preciso demonstrar que aquela pessoa que está doente, que está intoxicada, teve contato com aquele agrotóxico que tem estudos que provaram que ele provoca aquele tipo de doença, aquele tipo de dano, e eu preciso fazer um exame técnico que comprove que ele? E aí, quando nós tratamos de doença, de intoxicação, o que as empresas, qual é a defesa geralmente que as empresas apresentam? “O trabalhador está doente. Ele tem uma doença pulmonar, ou ele desenvolveu um câncer, ou ele desenvolveu uma doença renal, ou uma doença do fígado”. Ela tenta demonstrar que não tem como provar que aquele câncer foi provocado por aquele agrotóxico, que aquela doença pulmonar foi provocada exclusivamente por contato com aquele agrotóxico, que aquela doença renal não foi provocada pelo contato com agrotóxico. Por isso que o nexo de causalidade é difícil.

Caju
Ouvindo a Ranielle falar sobre a dificuldade de se comprovar esse nexo de causalidade, isso me lembrou o discurso de outras indústrias — como a do tabaco, por exemplo — que historicamente sempre tentaram levantar dúvidas, pra usar um eufemismo, sobre os malefícios que todo mundo sabe que elas causam. Sabe aqueles filmes de Hollywood em que um processo milionário está para ser julgado e os advogados ficam tentando achar um argumento retórico pra convencer o júri? É uma coisa meio “a dúvida é o nosso negócio”.

Ana
A gente cobriu um caso gravíssimo no ano passado que foi de uma comunidade rural no Maranhão onde o avião jogou o agrotóxico sobre crianças. As imagens das crianças ganharam bastante repercussão, o governo enviou agentes de saúde pra testar as vítimas. O mais impressionante, Caju, é que meses depois, as vítimas não tinham tido acesso aos resultados dos seus testes, enquanto um representante do fazendeiro teve. E ele usou essas informações pra questionar a contaminação e chegou a dizer que o problema das crianças era sarna.

Caju
Impressionante. E o que já tá complicado poderia ficar ainda mais se o famigerado PL do Veneno, o projeto de lei em discussão no Congresso, fosse aprovado.

Ana
Acho que o ponto mais grave desse PL é que, na prática, ele esvazia a competência dos órgãos de saúde e de meio ambiente para aprovar ou não o registro de novos agrotóxicos. Então, se esse PL for aprovado, quem vai ter a palavra final é o Ministério da Agricultura, como se isso dissesse respeito apenas à produção agropecuária em si, deixando de lado todos os outros impactos pra saúde e meio ambiente.

Caju
Exato, Ana. O Leomar tem essa mesma leitura. E tem uma série de “narrativas”, pra usar uma palavra da moda, que os defensores do projeto vêm tentando empurrar goela abaixo. A primeira é a que diz que o PL está parado no Congresso há duas décadas. Mas não é bem assim, né? De fato, o ex-senador Blairo Maggi, que também foi Ministro da Agricultura, apresentou um projeto de lei para mudar um ou outro ponto da regulamentação do uso de agrotóxicos no país. Mas o que a atual versão do PL faz é alterar praticamente tudo.

Ana
E tem também o papo da morosidade, de que a atual regulamentação atravanca a aprovação de novos produtos….

Caju
Sim! O Leomar também falou sobre isso, Ana.

Leomar Daroncho
A tese é de que a morosidade na aprovação de liberação de agrotóxicos estaria atrapalhando. O que não não procede, porque o ritmo de aprovação de agrotóxico nunca foi tão acelerado. Se realmente tem algo moderno, menos tóxico, e talvez economicamente mais viável, o setor, que tem muita força, poderia pressionar para que fosse priorizada a análise desses produtos, né? A gente está aprovando nos últimos 3 anos, dá quase 1,4 novo agrotóxico por dia. Então, é uma velocidade absurda. Bastava colocar na ordem de prioridade esses que são tecnologicamente avançados – se é que existe isso. Não é o que está acontecendo. A gente está aprovando. Perto de 40% do que foi aprovado são produtos banidos da União Europeia. Depois, a gente tem limites de tolerância extremamente flexíveis, a gente é muito condescendente, por exemplo, com o glifosato. A nossa água potável, a gente admite resíduos numa concentração 5 mil 1000 vezes maior do que a União Europeia admite para água potável. Então, hoje a nossa legislação é totalmente flexível. A gente é um dos poucos, se não o único país do mundo, em que não há prazo para reavaliação de produtos, a gente aprova um produto ad eternum. Passa a ser ônus do órgão de registro provar que aquele produto tem que sair do mercado. Nos Estados Unidos não é assim: a aprovação é por um tempo, 5 anos, e tem que ter revisão depois. É ônus do fabricante provar que ele pode continuar… sendo esse seria algo como a nossa carteira de motorista ou não é para sempre, né?

Ana
Depois dessa fala do Leomar, a gente precisa fazer um esclarecimento importante: Boa parte dos agrotóxicos que foram liberados nos últimos tempos não são de fato novos de agrotóxicos — mais modernos, mais eficientes, menos nocivos. Na verdade são agrotóxicos que já existiam e a maioria até já era usada para algumas culturas, como por exemplo a soja, a novidade é que o governo liberou autorização pra uso em outras culturas, como o feijão ou o arroz.

Caju
Ou então por outras fabricantes, né? Acho que vale fazer um paralelo com remédios, Ana. Existem vários laboratórios que produzem, sei lá, dipirona. Isso quer dizer que existem diferentes fabricantes com autorização para vender o mesmo medicamento. No caso dos agrotóxicos, isso também aconteceu no governo Bolsonaro. Agrotóxicos que já eram liberados passaram a ser produzidos por um número maior de fabricantes.

Ana
Exato, Caju. Com o agravante que o Leomar pontuou: boa parte desses fabricantes estão recebendo uma autorização expressa pra vender produtos que já foram banidos em países da Europa, por exemplo. Ao invés de aumentar o número de fabricantes e culturas que recebem esse químico, a gente devia estar debatendo a proibição deles… Sem falar na alta tolerância à contaminação das águas e dos alimentos que a nossa legislação permite…

Caju
É por aí, Ana. Acho que a gente fez um bom resumo do que está em jogo nesse PL — e que deixa tanta gente de cabelo em pé.

Ana
Tem muita coisa pra dizer, mas já falamos demais por hoje, não?

Caju
Demais! Vamos ficando por aqui…

O Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil.

O roteiro original é de minha autoria, Carlos Juliano Barros.

E o tratamento de roteiro é da minha amiga e companheira de apresentação, Ana Aranha.

Ana
A montagem e a edição ficam por conta do Victor Oliveira. As trilhas foram compostas pelo João Jabace e pela Mari Romanno, quando este programa era feito em parceria com a Rádio Novelo. A eles, nosso muito obrigado.

Caju
Valeu, Ana!

Ana
Até!

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