Maior comprador de carne bovina do Brasil, China tem compromisso ambiental ambíguo

Dois terços das exportações brasileiras do produto vão para país asiático, que endurece discurso contra desmatamento, mas ainda não impõe barreiras para compras
“Piero Locatelli
 29/06/2023

Destino de mais de dois terços da carne bovina exportada pelo Brasil (67%) em 2022, com valor 17 vezes superior às compras do segundo principal importador, os Estados Unidos, a China pode ter papel relevante nas ações de combate ao desmatamento da Amazônia. Estudos indicam que 90% das árvores derrubadas na floresta deram lugar ao pasto, o que tem alimentado cobranças de maior controle dessa cadeia produtiva.

No último dia 15 de abril, a China Meat Association (CMA) – que reúne importadores, varejistas e produtores de carne do gigante asiático – anunciou que pretende estabelecer um sistema de rastreabilidade para cadeias produtivas de carne bovina. O objetivo declarado da principal associação setorial do país é ajudar seus sócios a “se comprometerem com uma cadeia produtiva de produtos de carne que alcance o desmatamento zero.”

Mas os movimentos recentes do gigante asiático são ambíguos: de um lado, declarações e protocolos contundentes revelam preocupação com o tema; de outro, ainda não há controle socioambiental da origem da carne que chega até lá. Um exemplo são os seis frigoríficos brasileiros autorizados neste ano a venderem para os chineses: três deles têm registro de violações ao meio ambiente e aos direitos humanos.

Brasil e China anunciaram “cooperação” contra o desmate em abril, mas efetividade das medidas ainda é uma incógnita (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

“As empresas chinesas que compram carne de gado do Brasil ainda não fazem exigências sobre o desmatamento associado à cadeia produtiva. Mas existe uma tendência de uma preocupação cada vez maior em relação a esse assunto”, diz a consultora e pesquisadora Larissa Wachholz, que liderou a criação de um núcleo voltado ao país dentro do Ministério da Agricultura durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

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A China tem tomado um caminho contrário ao da Europa, onde novas leis tentam coibir a importação do desmatamento. Até agora, não há perspectiva de que o governo do país tenha uma legislação semelhante.

“São protocolos não compulsórios, que podem ou não ter a adesão das empresas”, explica Eduardo Caldas, coordenador brasileiro da Tropical Forest Alliance (TFA) – uma plataforma que inclui as empresas e parte da sociedade civil de Brasil e China. “Nós estamos tratando da melhoria do ambiente comercial, não de normas, de impedimentos, de bloqueios, pois isso é papel dos governos”, completa.

Estudos apontam que 90% do desmatamento na Amazônia dá lugar ao pasto, revelando papel de importadores da produção brasileira (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Na visão da indústria, é o cenário ideal: “Com a China, temos a oportunidade de construir um diálogo racional entre as duas partes, evitando imposições como as que a Europa faz”, observa Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), organização que reúne 39 empresas, incluindo gigantes do setor como JBS, Marfrig e Minerva. 

Recentemente, a Abiec anunciou que todos os seus frigoríficos associados vão precisar aderir ao Boi na Linha, um protocolo de monitoramento socioambiental para a cadeia da carne – o que tem potencial para melhorar o controle de origem do gado, impactando todos os mercados consumidores da carne brasileira.

Mas a assinatura do protocolo não impede que a produção  com origem em áreas de desmatamento ilegal chegue à China, segundo Marina Piatto, diretora executiva do Imaflora, organização brasileira que tem trabalhado no diálogo junto a empresas e think tanks chineses. “Enquanto a gente não implementar em 100%, sempre vai ter algum mercado que vai comprar essa carne ilegal, mais barata. E pode ser a China, onde a exigência de rastreabilidade não existe”, alerta.

Desmate é problema doméstico

Se as vendas para a China se tornaram decisivas para os frigoríficos brasileiros, a dependência é recíproca: o Brasil responde por 45% do abastecimento do mercado local de carne bovina, de acordo com dados disponibilizados pela Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO). Essa fatia deve aumentar significativamente nos próximos anos, já que há previsão de crescimento de 18,4% no consumo de carne per capita na China até 2030 e a produção local não deve crescer na mesma proporção.

Estimativas de consumo doméstico de carne de gado na China compilados pela Scot Consultoria apontam cenário de expansão, favorável ao Brasil (Reprodução: Projeto Estudo China)

Em entrevista recente a um canal de televisão, o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, Charles Andrew Tang, disse que o governo chinês “não tem alternativa” à importação da carne brasileira. “A China não tem terra suficiente para ampliar seu rebanhos como o Brasil. E sempre que o povo chinês tem possibilidade, busca comida de valor agregado mais elevado,” disse o empresário asiático.

O consumidor local encara o problema do desmatamento de forma distinta do europeu. “Na União Europeia, a população se sente culpada por estar importando e gerando impactos relacionados a recursos naturais e a direitos humanos nos países produtores. Mas, na China, a visão é de que esse é um problema do país produtor”, compara André Vasconcelos, líder global de engajamento da Trase, iniciativa que monitora cadeias produtivas que geram impacto socioambiental.

Leia mais: Novas leis europeias fecham o cerco contra empresas que fomentam desmatamento no Brasil

Já Wachholz vê aumentar a preocupação com sustentabilidade no consumidor chinês, que é especialmente influenciado pelo poder público. “O governo chinês tem emitido uma série de políticas relacionadas à mudança do clima e em prol da proteção ambiental, o que acaba gerando na população uma percepção maior da relevância desse tema”, observa.

Consumidor e governo chinês partem do pressuposto que produção exportada pelo Brasil é regular e segue leis nacionais (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Pequim encara o desmatamento como um problema de soberania do país de origem da carne e parte do princípio de que seus fornecedores internacionais são devidamente monitorados e cumprem a legislação. Por isso, a percepção de brasileiros que têm dialogado com empresas e o governo chinês é de que o país asiático não deve interferir de maneira tão direta como a Europa nas relações comerciais.

“É uma postura diplomática muito mais cuidadosa, e a tendência é seguir assim até que o risco do desmatamento para o sistema global e para as mudanças climáticas esteja escancarado”, diz Marina Guyot, coordenadora de projetos no Imaflora. “A gente sabe do vínculo entre as duas coisas, mas, por enquanto, não há uma compreensão de que desmatamento zero seria o melhor para o governo, para as empresas, ou para a sociedade chinesa como um todo”, complementa.

Apesar disso, o país asiático não é visto como alternativa para a venda de gado com origem em áreas desmatadas diante do cerco que vai se fechando na Europa, diz Sampaio, da Abiec. “O  preço que a gente consegue na Europa, não consegue na China – não consegue em nenhum outro lugar. Não podemos nos dar esse luxo [de deixar de vender para a Europa], porque vamos perder dinheiro”, ilustra. “Pelo contrário, a gente vai trabalhar cada vez mais para poder entrar mais em mercados exigentes, que é onde você vai ter um preço melhor”, completa.

Governo chinês reforça discurso ‘verde’

A preocupação da China com o desmatamento tem aumentado nos últimos anos. Segundo André Vasconcelos, da Trase, o governo chinês não havia assinado nenhum acordo sobre florestas até 2021, quando começou a mudar esta trajetória.

Na COP26, realizada naquele ano na Escócia, Pequim assinou a Declaração para o uso de florestas e terras junto a outros 109 países. Logo em seguida, firmou acordo com os Estados Unidos para “eliminar o desmatamento ilegal global por meio proibição de importações ilegais“. No final daquele ano, ainda divulgou um comunicado com a União Europeia prometendo trabalhar com cadeias produtivas mais sustentáveis. Em 2023, finalmente, o desmatamento surgiu no comunicado feito em conjunto com o governo brasileiro.

Também foi em 2021 que a China Meat Association trouxe diretrizes concretas “para o comércio verde da indústria de carne”. Em um documento lançado em dezembro daquele ano, a entidade lista uma série de procedimentos para as empresas chinesas que importarem carne do Brasil, incluindo menções ao respeito pelos direitos humanos, povos indígenas e comunidades locais.

Dirigentes da China Meat Association divulgaram sugestão de regras rígidas para cadeia pecuária em 2021 (Foto: Reprodução WWF)

Um estudo da Tropical Forest Alliance avaliou que as recomendações da associação chinesa de 2021 são inclusive mais exigentes do que os protocolos já adotados no Brasil. A maior diferença recai na sugestão de que empresas evitem fornecedores em áreas de “alto risco” – critério que “provavelmente causaria impactos relevantes aos fornecedores brasileiros, uma vez que as empresas chinesas que seguissem essa orientação evitariam o abastecimento dos biomas da Amazônia brasileira e do Cerrado”, entende a organização. Mas até agora o documento não teve impactos nas importações das empresas chinesas.

Exportadores têm irregularidades

Enquanto as diretrizes de compras verificadas não são aplicadas, a carne que chega na mesa do consumidor chinês pode estar carregando consigo um histórico de violações ambientais e de direitos humanos. Em março deste ano, o ministro da agricultura Carlos Fávaro esteve no país asiático e conseguiu a autorização do órgão alfandegário chinês para que quatro novas plantas frigoríficas pudessem acessar aquele mercado. Em maio, outras duas plantas foram desembargadas para exportações para a China.

Dois dos quatro novos frigoríficos autorizados a exportar tiveram casos recentes de desmatamento ligados às suas cadeias produtivas – e uma das plantas desembargadas em maio tem histórico de uso de trabalho escravo.  

Conforme demonstram investigações da Repórter Brasil realizadas nos últimos três anos, a JBS em Vilhena e a unidade do Frigorífico Frigon em Jaru, ambos em Rondônia, adquiriram gado criado em áreas embargadas e, portanto, vedadas à produção agropecuária. Ambas também eram autorizadas a exportar para outros países, incluindo a Europa.

Leia mais: JBS admite ter comprado quase 9 mil bois ilegais do ‘maior desmatador do país’

A JBS de Vilhena foi uma das plantas da empresa que abateu gado comprado diretamente da quadrilha do “maior desmatador do país”, – Chaules Volban Pozzebon, que está preso por extração ilegal de madeira e é considerado o maior infrator ambiental do país, além de ter sido condenado por usar mão de obra escrava. A própria JBS admitiu as compras irregulares e a participação de seus funcionários no esquema.

Fazendas do maior desmatador da Amazônia estavam entre fornecedores diretos da JBS em Rondônia, segundo admitiu a empresa (Foto: Nilo D’Ávila/Greenpeace)

O frigorífico Irmãos Gonçalves (Frigon), por sua vez, foi alvo de denúncia pela agência de jornalismo Danwatch. Documentos de autoridades ambientais brasileiras acessados pela organização mostram que uma fazenda fornecedora do Frigon possui, desde 2014, áreas embargadas por desmatamento ilegal. Além disso, o Frigon não assinou o TAC da Carne, acordo do Ministério Público com a indústria para coibir o desmatamento na região.

Já a unidade da Masterboi de São Geraldo do Araguaia, no Pará, reabilitada em maio para vender para a China, pode ter recebido, através de um fornecedor intermediário, animais criados em uma fazenda onde houve flagrante de trabalho escravo, em 2019.

Brasil quer fatia maior

O governo brasileiro tem tomado diversas iniciativas para expandir ainda mais a exportação de carne brasileira à China.

Em maio de 2023, a ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) coordenou uma exposição na maior feira de alimentos da China, realizada em Xangai, com 21 empresas brasileiras de carne. A expectativa é de criar mais de US$ 1,9 bilhão em negócios relacionados ao setor nos próximos doze meses. Já em 2024, a agência planeja um programa de “interiorização da China”, buscando ampliar a exportações brasileiras para mercados de regiões ainda pouco exploradas.

“O Brasil pode intensificar as suas relações comerciais com a China de forma sustentável, aumentando a produção, tanto da agricultura, quanto da pecuária, sem desmatar uma árvore”, disse o ministro Fávaro em um evento sobre sustentabilidade realizado em Pequim, no início do ano.

Ministro Carlos Fávaro promete carne sustentável para mercado chinês, mas frigoríficos habilitados em 2023 têm problemas (Foto: Divulgação/ Ministério da Agricultura e Pecuária)

Curiosamente, coube à ApexBrasil fazer um contraponto a esse discurso: em seminário com a presença de membros do governo chinês e empresários brasileiros,o presidente da agência, o senador Jorge Viana, alertou que o Brasil precisa parar de dizer que não tem problema ambientais, e explicitou a ligação direta entre a pecuária e o desmatamento: “84 milhões de hectares foram desmatados nos últimos 50 anos. E para que essas áreas estão sendo usadas? Nós temos 67 milhões desses hectares (sendo usados) para a pecuária,” disse o presidente da ApexBrasil na ocasião. A fala de Viana gerou uma forte reação do setor, incluindo a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Apesar de tudo, há entendimento de que o atendimento à demanda chinesa não precisa redundar na destruição do meio ambiente “se todos esses acordos de mercado e o comando e controle forem bem feitos daqui para frente,” diz Piatto, do Imaflora.

Para mostrar a viabilidade, a organização, junto com WWF Brasil e integrantes do TFA estão costurando o envio de um “carregamento modelo” de gado brasileiro que exponha custos e processos adicionais envolvidos na importação de gado sem origem em área desmatada. “A gente só vai convencer eles em cima de evidências muito pragmáticas”, diz Jean-François Timmers, especialista de Conservação do WWF-Brasil. 

Dessa forma, a iniciativa de concretizar uma cadeia produtiva livre de desmatamento partiria dos brasileiros, sem a necessidade de esperar imposições externas. “O maior produtor de commodities no mundo em termos de agricultura (tem a capacidade) de estabelecer um exemplo para o conjunto dos outros países e tomar a dianteira. E não esperar nenhum tipo de recomendação externa para poder fazer isso”, conclui Timmers.

Correção: Essa reportagem foi alterada em 04/07/2023, às 07h30, para alterar o cargo informado de Jean-François Timmers, que é especialista de Conservação do WWF-Brasil.


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