Construção Civil

Sede da Copa 2034, Arábia Saudita é acusada de impor trabalho escravo a imigrantes

Organização internacional de defesa de trabalhadores denuncia violações contra 21 mil pessoas submetidas à servidão na área da construção civil no país do Oriente Médio. OIT e a FIFA são chamadas a tomar providências
Por Daniela Penha | Edição Bruna Borges
 19/06/2024

A ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DE TRABALHADORES da Construção e da Madeira (ICM) denunciou a Arábia Saudita à OIT (Organização Internacional do Trabalho) e à FIFA por violações trabalhistas contra 21 mil imigrantes que atuaram no setor da construção civil no país. A instituição global acusa a Arábia Saudita, anunciada como a sede da Copa do Mundo de Futebol em 2034, de submeter esses trabalhadores a condições análogas à de escravo.

De acordo com a denúncia, os trabalhadores foram submetidos à servidão por dívidas, tiveram seus passaportes e documentos de identidade retidos, ficaram sem receber salários, foram impedidos de rescindir contratos e de deixar seus postos.  A denúncia também cita violência sexual, verbal e física e cobra investigações e providências das entidades internacionais.

“As condições encontradas são inaceitáveis, principalmente no mundo globalizado, onde há convenções internacionais justamente para proteger essa intensa movimentação de pessoas”, afirma Nilton Freitas, representante regional da ICM na América Latina e no Caribe. A ICM representa 12 milhões de trabalhadores da construção, materiais de construção, madeira e silvicultura filiados a 361 sindicatos em 115 países em todo o mundo. 

Algumas das principais instituições em defesa dos direitos humanos do mundo  – Anistia Internacional, Humans Rights Watch, Equidem, FairSquare e Solidarity Center – são citadas no relatório da ICM como organizações que dão suporte à denúncia.

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A Arábia Saudita se tornou membro da OIT em 1976, aderindo a importantes convenções trabalhistas internacionais. A denúncia da ICM, porém, ressalta à OIT que o país tem um histórico de descumprimento dos direitos humanos e está deixando de cumprir as convenções que ratificou, de combate ao trabalho escravo, com o agravante de ter como principal mão de obra a população migrante: 13,4 milhões de trabalhadores predominantemente da Ásia e da África, empregados em funções de baixa remuneração, que representam 75% da força de trabalho do país. 

Em todo o mundo, há recorrência da exploração do trabalho migrante, sustentada pela vulnerabilidade de homens e mulheres que deixam seus países em busca de condições dignas, muitas vezes vivendo e trabalhando sem sequer compreender a língua na qual são acertadas essas condições de trabalho. Na Arábia Saudita, essa exploração se tornou uma prática recorrente, denuncia a ICM. 

“Como apelamos à OIT, os direitos fundamentais se aplicam à qualquer país. É preciso combater todo e qualquer tipo de prática análoga à de escravidão”, enfatiza Freitas. 

Violações, ameaças e sindicatos proibidos

A ICM afirma que o não pagamento dos salários aos imigrantes já é uma prática generalizada na Arábia Saudita. Mais de 21.000 trabalhadores da construção civil, imigrantes do Nepal, Paquistão, Bangladesh e Filipinas, aguardam há mais de 10 anos o pagamento de salários por duas empresas de construção com sede na Arábia Saudita que faliram em 2016, revela um levantamento realizado desde junho de 2022 pela instituição e outras organizações de direitos humanos do mundo como uma das comprovações da denúncia feita à OIT. 

Além disso, entre 15 de abril e 15 de maio de 2024, a ICM entrevistou 193 trabalhadores, principalmente na construção civil, imigrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Sri Lanka, Bangladesh e Filipinas, que relataram outras violações de direitos que também se enquadram ao trabalho análogo ao de escravo. 

Trabalhadores da construção civil sem qualquer condição de subsistência, ameaças, coerções e casos emblemáticos de imigrantes que morreram em condições precárias estão listados no relatório, que ainda retrata o abuso sexual de trabalhadoras domésticas. 

Os trabalhadores entrevistados eram privados até mesmo de alimentação. “Passamos por momentos muito difíceis. Dormíamos em um armazém onde havia ratos e mosquitos. Tínhamos que implorar para que nos dessem comida. Fomos obrigados a aceitar trabalhos esporádicos. Houve pessoas que não foram autorizadas a visitar seus entes queridos que estavam no leito de morte. Passávamos frio e calor. Não recebíamos atendimento médico quando adoecíamos”, relatou um deles em depoimento colhido para o relatório em maio deste ano. 

Entre os agravantes para o cenário está a política do Kafala, um apadrinhamento dos trabalhadores, por meio do qual os empregadores conseguem controlar os imigrantes, a partir de coerções e ameaças. O imigrante é levado ao país com a tutela de um empregador, que é responsável por fornecer a ele condições de subsistência, bem como a autorização para que permaneça no país estrangeiro. Dessa forma, os imigrantes acabam vulneráveis a todo tipo de exploração porque, para continuarem no país, devem cumprir as exigências desse empregador.

Os sindicatos são proibidos no país, o que dificulta a denúncia dos abusos. Freitas explica que, para chegar aos casos listados, a ICM estabeleceu ligações com sindicatos e instituições dos países de origem dos trabalhadores. “Eles dependem daquele trabalho. Alguns vão e voltam para seus países em busca de trabalho. Outros, nunca conseguem voltar. É inaceitável”.

A Repórter Brasil entrou em contato com a FIFA e a OIT, pedindo um posicionamento sobre as denúncias encaminhadas, mas não houve respostas.

Copa de explorações 

A Arábia Saudita tornou-se a sede óbvia da Copa em 2034 por ser o único país candidato para acolher a competição. A nação passa por crescimento exponencial, com grandes obras sendo executadas em suas cidades na última década. Com a Copa, a perspectiva é de que esse volume de obras aumente ainda mais, atraindo um número ainda maior de imigrantes para o país, em condições de trabalho desumanas. O relatório cita que a Arábia Saudita irá empreender “a construção de dez novos estádios e infraestrutura relacionada de proporções gigantescas”. 

“A FIFA deve parar de se colocar acima das normas internacionais de trabalho e de suas próprias obrigações estatutárias de direitos humanos”, cobra Ambet Yuson, Secretário Geral da ICM, no relatório. 

Outras Copas

A Copa do Qatar, em 2022,  foi marcada por denúncias trabalhistas, que tomaram proporções mundiais. 

No Brasil, o número de trabalhadores da construção civil resgatados em situação análoga à de escravo teve um pico em 2013, quando o país passava um alto investimento em obras de desenvolvimento e infraestrutura para receber a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas do Rio (em 2016). 

O campeonato movimenta bilhões, com patrocínio de empresas multinacionais. “Ninguém quer levar na sua marca a contribuição ao trabalho análogo à escravidão. Esperamos que a FIFA exija compromissos do governo da Arábia Saudita, baseados nas convenções internacionais”, Freitas complementa.

Na Copa do Qatar, com as denúncias e os movimentos de instituições internacionais como a ICM, a FIFA implantou uma comissão de Direitos Humanos. “A FIFA tem em seu estatuto o dever de zelar pelos Direitos Humanos e trabalhistas”, enfatiza Freitas.

Para ele, a Copa traz uma oportunidade de mudanças para condições exploratórias que já se tornaram prática corriqueira. “A visibilidade que ela tem traz a oportunidade de construirmos alianças capazes de transformar essas realidades. Por isso, precisamos divulgar o mais rapidamente essas condições, que são subumanas”, ressalta Freitas.

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