Operação policial no Pará mata dois sem-terra, e presos denunciam torturas

Movimentos sociais exigem investigação independente de confronto ocorrido na semana passada na fazenda Mutamba em Marabá, sudeste do Pará. Propriedade tem histórico de trabalho escravo e suspeita de grilagem de terras públicas
Por Daniel Camargos | Edição Diego Junqueira
 15/10/2024

UMA OPERAÇÃO POLICIAL na Fazenda Mutamba, em Marabá, no sudeste do Pará, resultou na morte de dois trabalhadores rurais. A ação ocorreu na madrugada da última sexta-feira (11) e foi conduzida pela Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (DECA), da Polícia Civil do Pará. Outros quatro trabalhadores rurais foram presos e afirmam terem sido torturados pelos policiais.

A polícia argumenta que foi ao local cumprir mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão contra ocupantes da fazenda, que pertence aos Mutran. A família é conhecida na região por seu histórico de conflitos fundiários, desmatamento e por resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão

O complexo Mutamba tem diferentes ocupações, a primeira delas iniciada em 2013 e a última em abril deste ano. As ocupações são justificadas pelos sem-terra em razão da suspeita de que terras públicas teriam sido griladas e anexadas à propriedade.

Segundo a versão policial, ao chegarem ao local, os agentes teriam sido recebidos a tiros, e então reagiram e mataram Adão Rodrigues de Souza, de 53 anos, casado e pai de 5 filhos, e Édson Silva e Silva.  

Os trabalhadores rurais, no entanto, contam outra história. Eles dizem que aproximadamente 18 pessoas dormiam em redes em um barracão coletivo quando foram surpreendidas às 4h da madrugada pelos gritos de “perdeu, perdeu” dos policiais, seguidos de rajadas de tiros. 

Quatro trabalhadores rurais foram presos; eles alegam terem sido torturados pelos policiais (Foto: Divulgação/Polícia Civil do Pará)
Quatro trabalhadores rurais foram presos; eles alegam terem sido torturados pelos policiais (Foto: Divulgação/Polícia Civil do Pará)

“No desespero e na escuridão, cada um tentou escapar como pôde dos tiros. O resultado foram dois mortos, vários feridos a bala e quatro presos”, detalha uma nota assinada por sete movimentos sociais, entre eles a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). 

Os movimentos sociais pedem uma apuração independente das mortes e prisões, além de solicitar à Corregedoria da Polícia Civil que apure as denúncias de torturas feitas pelos presos. Um dos policiais teria colocado uma faca no pescoço de um jovem e o ameaçado de morte, caso não dissesse onde se encontrava o coordenador do grupo, detalha a nota (leia a íntegra do documento).  

Homens mortos não tinham passagem pela polícia, diz nota

A Repórter Brasil teve acesso aos vídeos das audiências de custódia. Um dos presos relatou ter recebido chutes na barriga e pancadas na cabeça dos policiais. Os representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública pediram que os relatos fossem enviados para a Corregedoria da Polícia Civil. 

Após a audiência, a advogada de um dos presos solicitou que exames de raio-x e receitas de medicamentos fossem anexados ao processo. “Lesões pelo corpo do requerido também podem ser visualizadas, como tiro de raspão na nádega direita, hematomas nas costelas e próximo ao peito”, detalha ela. 

Questionada a respeito das denúncias de tortura, a Polícia Civil do Pará não respondeu. Na sexta-feira, a corporação afirmou em nota que investiga o envolvimento de um grupo nos crimes de “organização criminosa majorada, porte ilegal de arma de fogo, dano qualificado, furto qualificado, extração ilegal de madeira, incêndio e queimadas de área de preservação e desobediência a ordem judicial”. O texto diz ainda que “dois homens morreram após troca de tiros” e que foram apreendidas “armas de fogo, munições e celulares”. 

Os movimentos sociais questionam os crimes imputados e alegam que foram apreendidas apenas espingardas cartucheiras e munições. “Nenhuma arma pesada, nenhuma motosserra, nenhum caminhão de madeira, nenhum gado roubado, nada mais [foi apreendido]”, diz a nota, que ressalta ainda que os dois homens mortos não tinham passagem pela polícia nem prisão decretada.  

Palco de massacres históricos de trabalhadores rurais sem terra cometidos por policiais, como os de Eldorado dos Carajás e de Pau D’Arco, a região sudeste do Pará tem pelo menos 200 ocupações em fazendas e propriedades improdutivas ou situadas em terras da União. Há ainda 516 projetos de assentamentos, totalizando quase 5 milhões de hectares em disputa – uma área maior que países como Holanda e Suíça –, segundo dados da CPT, entidade ligada à Igreja Católica.

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Trabalho escravo e suspeita de grilagem: o histórico da fazenda Mutamba

A fazenda Mutamba é ocupada por três grupos de trabalhadores rurais sem-terra, sendo que um deles é organizado por meio de uma associação independente, a Terra Prometida. A organização não faz parte de nenhum dos movimentos de luta pela terra mais atuantes na região, como o MST, a Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura (Fetagri) ou a Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura Familiar (Fetrafi).

Em 2002, 25 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram libertados da propriedade. Outras duas propriedades da família Mutran também foram palco de resgate de trabalhadores escravizados na mesma época. 

Uma delas, a Cabaceiras, chegou a ser desapropriada e destinada à reforma agrária, na primeira decisão do tipo no país. A fazenda pertencia à empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda, que foi condenada em 2004 a pagar R$ 1,3 milhão por dano moral coletivo, a maior indenização da época por trabalho escravo no Brasil. 

No caso da Mutamba, uma das ocupações, iniciada em 2013, já conta com casas e plantações e está distante da sede da fazenda. Em abril deste ano, uma nova parte do complexo foi ocupada, distante 500 metros da sede. Em maio, o juiz da Vara Agrária de Marabá, Amarildo José Mazutti, determinou a retirada imediata das famílias do local. 

Mas a decisão foi suspensa pelo ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou o cumprimento de medidas obrigatórias a serem tomadas antes de uma desocupação coletiva, como a criação de comissões de conflito fundiário dentro do Tribunal de Justiça para assessorar o juiz, a realização de inspeções judiciais e audiências de mediação, entre outros pontos. 

Imagens da Polícia Civil do Pará mostram sete espingardas velhas apreendidas, além de celulares e outros objetos durante a operação (Foto: Divulgação/Policia Civil do Pará)
Imagens da Polícia Civil do Pará mostram sete espingardas velhas apreendidas, além de celulares e outros objetos durante a operação (Foto: Divulgação/Policia Civil do Pará)

A nota dos movimentos sociais também critica o Judiciário paraense, que não teria tomado as precauções necessárias para evitar o conflito, já que emitiu os mandados “sem estabelecer critérios mais objetivos”. 

“Com esse tipo de mandado em mãos, o delegado poderia entrar em mais de uma centena de casas dos moradores que residem nessas localidades com a truculência que lhe é característica”, diz a nota. “Não estamos dizendo que não tenha, entre os ocupantes, pessoas envolvidas em algum tipo de crime, mas essas pessoas têm que ser presas conforme a lei determina, e não executadas”, continua o documento. 

Os movimentos criticam ainda recentes decisões da Justiça do Pará, que estaria proferindo “sentenças em áreas públicas federais e estaduais, áreas objeto de grilagem, áreas que não cumprem com a função social, áreas em processo de aquisição pelo INCRA”. Segundo a nota, há 40 liminares para serem cumpridas no sudeste do Pará, envolvendo quase 10 mil famílias.

Procurado, o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) não respondeu aos questionamentos da reportagem.

‘Aqui não tem assassino, não’

O delegado da DECA, Antônio Mororó, responsável pela operação policial, classifica as acusações dos movimentos sociais de levianas. “Aqui não tem assassino, não”, reagiu, ao ser informado das denúncias dos movimentos sociais. 

Mororó negou que os presos tenham sido torturados, disse que os policiais reagiram aos tiros e que os depoimentos colhidos sustentam a hipótese investigada pela polícia da atuação de uma organização criminosa no acampamento.

“Tenho vários minutos de vídeo, desses caras ostensivamente armados, usando balaclavas e patrulhando”, detalha. Contudo, após a operação, os policiais não encontraram o forte armamento descrito pelo delegado. Foram apreendidas sete espingardas velhas e nenhum policial ficou ferido. 

Segundo o delegado, esse grupo cobrava taxas de R$ 1.400 dos sem-terra. “Um grupo extremamente armado, que estava constrangendo outras pessoas, outros posseiros”, detalha. “O objetivo da operação é defender o hipossuficiente (população mais vulnerável)”, complementa 

Para os movimentos sociais, a alegação do delegado de que se tratava de uma operação para cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão era apenas um pretexto para “cometer uma sucessão de crimes”.

Os depoimentos citados por Mororó, segundo avaliação dos movimentos sociais, não devem ser considerados válidos, pois os presos teriam sido torturados e ameaçados. “Se não confirmassem, com o cano de fuzil encostado no ouvido, eram ameaçados de execução imediata”, afirmam os movimentos na nota.

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