O EXCESSO DE JORNADA, que tem na questionada escala 6×1 um de seus exemplos mais contundentes, não só prejudica a qualidade de vida, como também representa mais riscos à saúde e à segurança dos trabalhadores.
É o que mostra um levantamento feito pela Repórter Brasil, com base em diferentes bases de dados do governo federal. Das 20 ocupações com mais notificações de acidentes de trabalho em 2022, 12 também aparecem na lista das 20 categorias com o maior número de contratos semanais de 41 horas ou mais.
Para as notificações de acidente foram consultados dados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) compilados pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho do SmartLab. Já as informações sobre o número de contratos foram extraídas da Rais (Relação Anual de Informações Sociais).
“Há uma relação direta entre excesso de jornada e acidentes de trabalho”, afirma a juíza Luciana Conforti, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
“A jornada tem que ter um limite semanal, e também o descanso semanal remunerado, inclusive as férias, justamente porque as pessoas têm que ter seu período de descanso, para que se recomponham e não cheguem à exaustão”, complementa.
Em seu artigo sétimo, a Constituição define como “duração do trabalho normal” a jornada de oito horas diárias e de 44 horas semanais. A legislação também permite a prestação de até duas horas extras por dia, de forma não habitual, mediante uma remuneração 50% maior.
Em geral, quem faz escala 6×1 trabalha ao menos 44 horas por semana: oito horas de segunda a sexta-feira, além de meio período no sábado. Mas também é possível dividir esse tempo em outros regimes de trabalho, mediante negociação entre empregadores e empregados – medida estimulada pela reforma trabalhista de 2017.
Uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) apresentada pela deputada Erika Hilton (Psol-SP) pretende reduzir o limite semanal para 36 horas e garantir não apenas um, mas até três dias de descanso semanal.
Motoristas de caminhão: mais de 12 mil acidentes em 2022
A jornada excessiva compromete a atenção e a capacidade de reação dos trabalhadores, tornando-os mais suscetíveis a acidentes, especialmente em atividades que exigem alta concentração, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
Dentre as profissões sujeitas a jornadas mais longas e a mais acidentes de trabalho está a de motorista de caminhão.
De acordo com dados relativos a 2022 da Rais (Relação Anual de Informações Sociais), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), há quase 1,1 milhão de motoristas de carga CLT com contratos acima de 41 horas. Desse total, 30 mil trabalham mais de 45 horas semanais na carteira. Naquele ano, foram notificados mais de 12 mil acidentes de trabalho.
“Ninguém sabe o que o motorista de carreta passa. Tive experiência com droga porque tinha que ficar acordado, tinha que trabalhar, render, ganhar a comissão”, conta um profissional de Florianópolis que preferiu não se identificar.
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Hoje, ele trabalha no sistema 6×1 como condutor de ônibus e alterna os dias de descanso: numa semana, é no domingo. Na outra, no sábado. “No dia de folga eu durmo, porque o cansaço é grande”, desabafa.
A categoria com mais profissionais com contratos acima de 41 horas é a de vendedores de lojas, com 3,7 milhões de trabalhadores nessa condição. Desse total, mais de 153 mil têm no contrato mais de 45 horas semanais. A categoria registrou 6.600 acidentes em 2022.
Com ritmo intenso, frigoríficos acumulam acidentes
A combinação de longas jornadas com movimentos repetitivos e acelerados resulta em um alto índice de acidentes e doenças ocupacionais, como lesões por esforço repetitivo (LER) e mutilações.
Só as categorias de açougueiro e magarefes (responsável pelo corte de carne) registraram, somadas, 9,5 mil notificações de acidentes – uma média de 26 casos por dia.
Presidente do Sintra-Intra, representante de trabalhadores em frigoríficos em Rondônia, Marcos Cardoso relata casos de trabalhadores com problemas psicológicos, depressão, lesões na coluna, braços e pernas devido à jornada excessiva.
Ele explica que a maior parte dos frigoríficos no estado opera, em teoria, na escala 5×2, distribuindo as 44 horas semanais entre segunda e sexta-feira, com jornadas diárias superiores a oito horas – prática comum desde a reforma trabalhista de 2017.
No entanto, Cardoso afirma que os frigoríficos incentivam os trabalhadores a fazer horas extras aos sábados, principalmente em momentos de aquecimento do mercado.
“O que resolveria mesmo era reduzir a jornada para 40 horas, porque aí garantia dois dias de folga na semana. Mesmo que trabalhasse aos sábados, teria duas folgas na semana”, opina o sindicalista.
Técnicos de enfermagem lideram ranking de acidentes
Em 2022, a categoria “técnico de enfermagem” é a que mais sofreu acidentes, com mais de 36 mil notificações. Somado às ocorrências com enfermeiros e auxiliares de enfermagem, o total passa de 50 mil acidentes, média de 138 por dia.
Na área da saúde, é bastante comum o chamado 12×36 – 12 horas seguidas de trabalho sucedidas de 36 horas de descanso. Na avaliação da juíza Luciana Conforti, esse sistema abre margem para jornadas excessivas e perigosas.
“A gente sabe que é comum eles terem mais de um emprego. Então, aquelas 36 horas não são de descanso. Sem falar nos plantões de 24 horas”, afirma a presidente da Anamatra.
Trabalhadores negros são especialmente afetados
A psicóloga Ana Luísa Araújo Dias, especialista em saúde mental e relações raciais e mestra em saúde comunitária pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), aponta que a escala 6×1 afeta principalmente a população negra, perpetuando um ciclo de exploração que remonta ao período da escravidão.
“É um corpo que não é visto como um corpo digno de vitalidade. É um corpo apenas visto pelo caráter da produção e da exaustão”, ela diz.
A psicóloga destaca que, historicamente, o trabalho excessivo foi imposto à população negra, levando à naturalização dessa condição e à dificuldade de reconhecer os próprios direitos.
“Eu sou filha de uma ex-trabalhadora doméstica, e até meus 10 anos de idade, eu, minha mãe e meu irmão, morávamos nos fundos da casa em que minha mãe trabalhava. Eu não sabia o que era uma rotina de sair e voltar do trabalho, porque minha mãe sempre estava trabalhando”, conta Ana Luísa, citando sua própria trajetória.
A escala 6×1 impede que os trabalhadores negros tenham tempo para descanso, lazer, convívio familiar e desenvolvimento pessoal, comprometendo sua saúde física e mental, e perpetuando um ciclo de desigualdade social.
“Não é possível ter qualidade de vida se você não consegue ter sono de qualidade, se você não consegue ter uma rotina alimentar de qualidade, se você não consegue descansar. A escala 6 por 1 considera esse corpo como uma máquina de produzir, mas não como um sujeito que merece dignidade e vitalidade”, finaliza.
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