A ESCALA DE TRABALHO 6×1 (seis dias trabalhados para um de folga) representa um resquício da escravidão e afeta principalmente a população negra, sem direito ao descanso ou à própria vida.
Essa é a análise da psicóloga Ana Luísa Araújo Dias, mestra em saúde comunitária pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e especialista em saúde mental e políticas de equidade, com foco na população negra.
“Dá para fazer um paralelo [da escala 6×1] com o trabalho da escravidão mesmo, porque é um corpo que não é visto como digno de vitalidade. É um corpo apenas visto pelo caráter da produção e da exaustão”, compara.
Ela destaca como mérito do movimento VAT (Vida Além do Trabalho), liderado por Rick Azevedo (Psol-RJ), vereador eleito no Rio de Janeiro, colocar no centro do debate a qualidade de vida do trabalhador, e não somente os impactos da escala 6×1 na saúde.
“Há diagnósticos para isso, como os casos de burnout, ansiedade e depressão, mas a gente não pode mais naturalizar essa vida automatizada que impede que a gente tenha qualidade e vitalidade”, afirma Dias.
“Não dá para naturalizar esse sono entrecortado, tanto tempo no transporte público em condições tão difíceis. Não dá para naturalizar esse isolamento, essa impossibilidade das relações serem vividas”, continua.
Filha de uma ex-trabalhadora doméstica submetida a longas jornadas e privada de folga aos fins de semana, a psicóloga mantém uma página no Instagram em que propõe uma reflexão sobre autocuidado, inspirada nas conquistas da população negra escravizada que enfrentou os senhores de terra não somente por condições dignas de trabalho, mas por uma vida melhor.
“Nossos ancestrais não fizeram tudo o que fizeram para que nós hoje pudéssemos estar aqui recebendo tanto ou com tal título. Mas para que a gente pudesse ter o direito de existir e de viver a vida boa”, diz.
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Leia a entrevista com Ana Luísa Araújo Dias.
Quadro de burnout
Sou psicóloga há 15 anos. Trabalho na área de relações raciais, com questões que demarcam condições diferenciadas de nascer, viver, adoecer e morrer para a população negra. Trabalho também com a população branca, mas sempre percebendo esses lugares diferenciados e buscando construir um mundo melhor para todos.
Em 2017, eu estava fazendo doutorado na Inglaterra e tive um quadro de burnout. Me levou a uma condição crônica, uma LER/Dort (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho). Ou seja, eu sou uma pessoa que já adoeci pela intensidade do trabalho e carrego as marcas, uma condição crônica, um quadro de dor crônica a que o trabalho excessivo me levou.
Um corpo sem direito à vitalidade
A escala 6×1 afeta uma maioria da população trabalhadora composta por pessoas negras. E dá para fazer de um modo muito evidente um paralelo com o trabalho da escravidão mesmo, porque é um corpo que não é visto como digno de vitalidade. É um corpo apenas visto pelo caráter da produção e da exaustão.
Ele não tem sequer uma fase de recuperação. Há uma marca da exaustão, do esgotamento, mesmo em situações onde é possível parar. Pessoas negras não conseguem muitas vezes parar porque o modo de trabalho contínuo e exaustivo é uma marca histórica subjetiva. Isso constrói também a nossa subjetividade.
Vida além do trabalho
Muitas vezes, no âmbito da população periférica, para ser trabalho de fato, ele precisa ser exaustivo. Precisa ter uma rotina de sair de casa, precisa ter um desgaste para considerar que, de fato, o esforço está tendo resultado. O que combina com a falácia neoliberal de que, quanto mais você trabalha, aí vem o sucesso.
O sucesso não está relacionado à quantidade de horas que você trabalha. Essa é uma lógica capitalista que é colocada nas nossas cabeças. Mas isso não corresponde à realidade.
O trabalho deve ser uma das dimensões da vida. Mas se o trabalho impede que existam outras dimensões da vida, que é o que a escala 6×1 coloca, isso vai na direção oposta ao que é, de fato, ter uma vida.
Então, não é possível ter qualidade de vida se você não consegue ter um sono de qualidade, uma rotina alimentar de qualidade, se você não consegue descansar. A escala 6×1 considera esse corpo como uma máquina de produzir, mas não um corpo sujeito que merece dignidade e vitalidade.
Mas não é possível a uma pessoa trabalhadora poder sequer dormir bem se ela trabalha numa escala 6×1. O sono fica muito restrito. O que a pessoa faz após o trabalho e antes de voltar ao trabalho fica condicionado nesse entre jornadas de trabalho.
Vários estudos de saúde mental já mostram o impacto do sono, do lazer e das relações sociais saudáveis, relações familiares, amizades e um círculo social saudável no bem-estar físico.
Mas isso fica completamente inviabilizado pela escala 6×1, porque a pessoa não tem a possibilidade de existir para além do trabalho, como o próprio movimento demarca.
Inviável o convívio familiar
Eu sou filha de uma ex-trabalhadora doméstica. Até os meus dez anos de idade, eu, minha mãe e meu irmão morávamos na casa que era no quarto dos fundos da casa em que ‘mainha’ trabalhava. Era uma lógica de casa grande e algumas empregadas. A gente morava num quartinho do lado da lavanderia.
Eu não sabia o que era uma rotina de sair do trabalho e chegar no trabalho, porque minha mãe sempre estava trabalhando. Esse é um ciclo que é reproduzido [pelas próximas gerações].
E a escala 6×1 mostra isso. É inviável o convívio entre a família. Se a gente pensa a mãe, o pai e as crianças, essa escala torna inviável o cotidiano dessa família de acompanhar o acordar das crianças e o desenvolvimento delas, participar de atividades na escola, do lazer em família. Nessa escala, isso tudo é inviável, e o único dia [livre] que a pessoa tem acaba sendo, na verdade, um dia de preparação para o retorno aos outros seis.
A história que nos constrói
É muito importante que a gente perceba essa dimensão histórica e o quanto o Brasil ter essa história também nos constrói subjetivamente. Aí a gente pode compreender por que uma pessoa que trabalha na escala 6×1 pode fazer um discurso que apoia essa escala: porque elas nem sabem que outro modo de existir é possível.
E quando outras pessoas dizem que é possível, aí entra toda a carga de: “Ah, é preguiçoso, não está trabalhando direito, não é assim que se faz”.
A gente pode perceber esse impacto geracional. Se hoje os filhos têm a possibilidade de trabalhar home office ou com um trabalho intelectual, para os pais, o trabalho está relacionado a essa construção da exaustão, o cotidiano é esse cotidiano de sair, passar horas no transporte.
Mas para uma jovem de 20 anos que começa a trabalhar com essa escala, fica inviabilizado o estudo e a descoberta dos interesses da vida. Essa pessoa é confrontada, logo no início da vida adulta, com uma escala que prejudica o sono, a alimentação e as relações.
A qualidade de vida de pessoas da área médica, por exemplo, pessoal da enfermagem. A gente tem dados alarmantes dessas pessoas. E aí quando a gente vai ver no âmbito da enfermagem e da medicina, são pessoas que trabalham em dois, três lugares, plantões noturnos, sai de um e vai para o outro. É também para a vida delas.
Esse momento é muito importante para isso. Para além de pensar em uma determinada classe, um grupo de serviços, a gente pensar em vida além do trabalho. Que vida é essa que a gente está vivendo, construindo e colocando para as gerações seguintes?
Pensando nas pessoas negras escravizadas, que eram peças [de trabalho], eu penso em como elas foram encontrando modos de sobreviver e nos dando lições de como ir resistindo e se transformando.
Eles transformaram aquela lógica da escravidão, e por isso é importantíssimo que a gente possa reconhecer as marcas desse nosso passado no nosso presente e construir um futuro diferente para as outras gerações.
Bem-viver
Às vezes, as pessoas pensam a saúde mental enquanto diagnóstico. E isso é necessário quando estamos falando em âmbito de saúde pública. O Brasil é o segundo país com mais casos de burnout no mundo, só atrás do Japão.
Mas, independente de ter um diagnóstico específico, a gente não pode naturalizar esse peso no viver, no existir que a gente tem. Não dá para naturalizar esse sono entrecortado, não dá para naturalizar tanto tempo no transporte público em condições tão difíceis, como é na maioria das grandes cidades brasileiras.
Não dá para a gente naturalizar esse isolamento, essa impossibilidade de as relações serem vividas. Seja a relação da família, das mães e pais com as crianças, as relações conjugais, essa falta de lazer.
Independentemente do tipo de diagnóstico que isso pode desencadear, e há diagnósticos para isso, como os casos de burnout, ansiedade e depressão, mas a gente não pode mais naturalizar esse peso no existir, essa vida automatizada que impede que a gente tenha qualidade de vida e vitalidade.
Eu costumo dizer que nossos ancestrais, desde lá atrás, não fizeram tudo o que fizeram para que nós hoje pudéssemos estar aqui recebendo tanto ou com tal título. Mas era para que a gente pudesse ter o direito de existir, de viver a vida boa. Bem-viver é isso.
É a gente se enxergar como sujeito. Olhar para a perspectiva do viver, dos povos originários pensando o bem-viver, pensando uma vida bem vivida, bem sentida. Onde a gente possa ter esse olhar mais amplo para um existir com vitalidade.
Senão a gente vai envelhecer mais. Mas que vida é essa que a gente está tendo? É pensar a qualidade, e isso realmente é muito potente.