OS PLANOS DE DESCARBONIZAÇÃO de grandes companhias aéreas globais passam hoje pelo Brasil. Em janeiro, foi inaugurada nos Estados Unidos a LanzaJet, primeira fabricante de combustível para aviação à base de etanol. A empresa, que tem a British Airways e a Southwest Airlines entre seus acionistas, deverá usar principalmente matéria-prima brasileira, e demanda de seus fornecedores uma certificação de sustentabilidade. Mas entre as empresas agraciadas com o selo há ao menos duas usinas envolvidas em escândalos recentes pelo uso de mão de obra escrava.
Os casos são abordados no relatório “Escravizados do etanol”, publicado hoje pela Repórter Brasil, que mostra ainda outras conexões inéditas entre multinacionais e fornecedores de etanol implicados em graves violações de direitos humanos.
Os investimentos crescentes no etanol brasileiro, apontado como uma alternativa ao impacto climático provocado pelos combustíveis fósseis, coincidem com uma explosão de flagrantes de trabalho escravo em fazendas de cana. Em 2019, depois de sete anos sem nenhum caso do gênero identificado pelo governo federal, 45 trabalhadores foram resgatados em áreas de cultivo do produto. Desde então, os registros cresceram paulatinamente ano após ano, chegando a 361 escravizados em 2022. No ano seguinte, os resgates alcançaram 258 pessoas, e novos casos foram identificados em 2024.
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A maioria dos flagrantes ocorreu durante o plantio da cana-de-açúcar, atividade que foi afetada por uma importante mudança regulatória. Aprovada em 2017, a Lei da Terceirização facilitou a arregimentação de trabalhadores rurais por empreiteiros independentes – os chamados “gatos” –, ao invés da contratação direta pelas usinas ou fazendeiros. Segundo especialistas consultados, a nova realidade rebaixa garantias e dilui responsabilidades pelas condições de moradia, alimentação e pagamento impostas aos safristas.
Morte no canavial
Uma das indústrias brasileiras certificadas para fornecer combustível de aviação é a Usina Coruripe. Em 2022, 18 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em canaviais que abasteciam exclusivamente a empresa em Minas Gerais. Uma inspeção do governo federal averiguou que eles foram instalados pelo contratante terceirizado em um alojamento precário, sem água potável ou camas, a 150 quilômetros da fazenda onde o grupo trabalhava.
Segundo os fiscais, eles gastavam seis horas por dia no trajeto de ida e volta, e uma mulher que precisava ainda cuidar de seu filho após o expediente chegava a dormir apenas 4 horas por dia. Além disso, toda a alimentação e itens necessários para a moradia eram comprados pelos próprios trabalhadores. “A gente comia ovo, salsicha, o mais barato que tinha”, contou à Repórter Brasil um safrista do grupo, que afirma ter abandonado o trabalho antes da inspeção.
Um dos trabalhadores machucou o calcanhar durante o plantio e morreu duas semanas depois em decorrência de um choque séptico causado pela infecção. De acordo com relato dos trabalhadores, na ocasião ele usava um par de botas que encontrou no lixo. Para economizar, segundo o relatório da fiscalização, muitos utilizavam várias vezes o mesmo equipamento de proteção, que por lei deveria ser fornecido gratuitamente pelo empregador.
Apesar da mão de obra ter sido arregimentada por um aliciador sem vínculos formais com a Usina Coruripe, os auditores responsabilizaram a empresa pelo caso de trabalho escravo. Procurada, a usina afirmou que “refuta categoricamente as acusações apresentadas”, e ressaltou que busca anular os autos de infração na Justiça. Também disse que a Polícia Federal instaurou inquérito sobre o caso e concluiu “pela inexistência dessa prática por parte da Usina Coruripe”. A resposta completa da indústria e das demais empresas citadas podem ser lidas no relatório.
Em 2024, a Usina Coruripe obteve o selo ISCC Corsia Plus, obrigatório para acessar o mercado de combustíveis para aviação. Seus padrões ressaltam o veto ao trabalho forçado e a proibição do desconto ilegal de salários para “equipamentos de proteção pessoal e acomodação”. Além das indústrias, também precisam atender a essas exigências as empresas terceirizadas pelas usinas.
A ISCC Corsia Plus não respondeu às tentativas de contato da Repórter Brasil. Já a LanzaJet, que usa o selo como critério para aprovar fornecedores, afirmou que mantém um “robusto código de conduta comercial em toda a sua cadeia produtiva”, incluindo elementos de direitos humanos auditados anualmente por agentes externos.
Outra usina agraciada com o selo, em outubro de 2023, foi a BP Bunge Bioenergia, uma joint venture entre a gigante do agronegócio Bunge e a petrolífera britânica British Petroleum (BP). A concessão ocorreu 7 meses depois de 212 trabalhadores terem sido resgatados em canaviais que abasteciam a empresa nos estados de Minas Gerais e Goiás. Esse foi o maior resgate de vítimas do trabalho escravo naquele ano.
Segundo a fiscalização do governo federal, os trabalhadores, em sua maioria migrantes, tinham que arcar com os custos da viagem, com o aluguel dos alojamentos e com a própria alimentação, o que contraria a lei trabalhista. Além disso, as moradias estavam em condições precárias, com vazamento de água nos telhados e sem chuveiros, além de paredes sujas, úmidas e mofadas.
Parte dos trabalhadores contou ainda terem sido atingidos, dias antes do resgate, por agrotóxicos lançados de avião sob as lavouras. Coceira, vômito e dor de cabeça foram alguns dos efeitos imediatos relatados.
As condições precárias foram classificadas como degradantes e incompatíveis com a dignidade humana, elementos que caracterizam o trabalho análogo ao escravo de acordo com a legislação brasileira.
A BP Bunge Bioenergia – recentemente rebatizada como BP Bioenergia, após a saída da Bunge do negócio – também é acusada de manipular dados e não colaborar com as investigações sobre um incêndio dentro de um canavial da empresa, em 2021, que atingiu um ônibus com 15 trabalhadores. Três pessoas morreram na ocasião.
Em resposta à Repórter Brasil, a BP Bunge Bioenergia afirmou que, assim que tomou conhecimento do caso de trabalho escravo envolvendo um terceirizado, “agiu rapidamente em defesa dos trabalhadores”, arcando com os pagamentos das indenizações dos resgatados. A companhia pontuou também que, depois do episódio, realizou mudanças em processos de plantio. Em relação ao incêndio, disse que prestou apoio aos colaboradores e seus familiares, e que manteve o diálogo para identificar as necessidades de assistência, além de ter colaborado com as autoridades.
O que fazer?
Para Lívia Miraglia, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a terceirização inclui intermediários na cadeia produtiva que não têm o mesmo poder aquisitivo e capacidade tecnológica das usinas. “Combinado com o aumento da pobreza de um período pandêmico, temos a retomada de uma situação muito precária de trabalho na cana-de-açúcar”, avalia a professora, que também coordena uma clínica para o atendimento jurídico gratuito a vítimas de trabalho escravo.
Sindicalistas defendem que uma maior interlocução das usinas com representantes dos trabalhadores pode atenuar os impactos da terceirização. Paulo Célio de Jesus, presidente da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais de Goiás (Fetaer-GO), afirma que algumas empresas do setor já demandam, para a contratação de empreiteiros terceirizados, que eles assinem acordos coletivos com sindicatos, prevendo condições mínimas inclusive para os alojamentos. “Se todas fossem assim, teríamos um nível de trabalho muito melhor”, afirma.
Apesar dos critérios elevados exigidos por certificações, Gustavo Ferroni avalia que há problemas no monitoramento da sua aplicação. Ele era coordenador de Justiça Rural e Desenvolvimento da Oxfam Brasil e atualmente atua na organização Freedom Fund. Para Ferroni, há apenas “um esforço mínimo por parte das certificadoras”, sendo necessário ir além de meras auditorias documentais e de uma postura passiva focada em reagir a problemas quando eles vêm à tona.
Na avaliação de Cian Delaney, coordenador de campanhas da Transport & Environment, que reúne organizações promotoras do transporte sustentável na Europa, é papel também dos governos garantir recursos para instituições de controle e regulação. “Transferir a responsabilidade de monitorar o mercado para sistemas de certificação independentes, como o ISCC, não é suficiente”, opina.
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