Indígenas reocupam fazendas onde gado ilegal era criado com trabalho escravo no PA

Povo parakanã retoma área na terra indígena Apyterewa para garantir que fazendeiros ilegais não invadam território
Por Naira Hofmeister | Fotos Fernando Martinho | Edição Bruna Borges
 03/02/2025

DE SÃO FÉLIX DO XINGU (PA) — Um ano após recuperar a posse de seu território, o povo parakanã está movendo parte de sua população das margens do rio Xingu para o interior da terra indígena Apyterewa. Oito novas aldeias estão sendo abertas, cinco delas ao longo da chamada Linha 10 — uma das poucas estradas do território. Nas ações de fiscalização ocorridas durante a retirada de invasores, os auditores fiscais do trabalho resgataram trabalhadores de situação análoga à escravidão em quatro propriedades situadas dentro da terra indígena em 2023. 

Antes da reocupação pelos parakanã, o MPF (Ministério Público Federal) rastreou 177 propriedades rurais formalmente registradas no CAR (Cadastro Ambiental Rural) dentro da Apyterewa. As fazendas eram ilegais, já que “estes registros foram abertos posteriormente à homologação da terra indígena”, aponta um relatório do MPF sobre a ocupação dos invasores. “É grave que a Agência de Defesa Sanitária do Pará tenha admitido a abertura de registros na terra indígena, formalizando áreas que foram ocupadas ilegalmente”, diz o documento.

Uma delas era a antiga Fazenda Sol Nascente, de Antônio Borges Belfort. Ele é recém-empossado vereador de São Felix do Xingu e réu na Justiça Federal por criar gado ilegal na terra indígena e por usar trabalho escravo nesta propriedade. O vereador era um dos maiores criadores de gado na Apyterewa, segundo os cálculos da Procuradoria da República do Pará, que contabilizou quase mil cabeças comercializadas pelo fazendeiro com origem na terra indígena. A Fazenda Sol Nascente é a única citada no relatório do MPF onde houve um resgate de trabalho escravo.

Em dezembro de 2023, a Polícia Federal chegou a considerá-lo foragido da Justiça. Desde janeiro do ano passado, Belfort está proibido de ingressar na Apyterewa e de manter qualquer contato com outros invasores. Nos processos judiciais a que responde, ele diz “que não promoveu nenhum dos atos criminosos contra ele indevidamente imputados”.  Procurado pela reportagem para comentar, o vereador não respondeu nossas perguntas enviadas por email.  O espaço permanece aberto para futuras manifestações.

Gado foi motor de invasão

Para os parakanã, a criação de novas aldeias é necessária para manter longe os invasores e reflorestar a TI (terra indígena) Apyterewa. “O governo fez sua parte. Agora é preciso um esforço de vigilância para segurar nosso território”, defende Tye Parakanã, uma das lideranças locais. A reocupação está elevando o nível de tensão na TI, e dois confrontos com invasores aconteceram desde dezembro.

Uma estimativa do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Agência de Defesa Sanitária do Pará indicou a presença de 60 mil cabeças de gado na Apyterewa na época da invasão. Segundo o MPF, “a pecuária era o principal vetor de desmatamento e de grilagem da TI”. Dos 773 mil hectares totais, (uma área um pouco maior que o Distrito Federal), mais de 100 mil já foram devastados — 91 mil hectares foram transformados em pastagem.

A criação de gado era a principal atividade econômica em todas os resgates de trabalho escravo. Alguns dos resgatados eram vaqueiros e trabalhavam na retirada dos rebanhos ilegais de dentro da área protegida, conforme ficou registrado nos relatórios da operação.

Bois são pastoreados na borda externa da terra indígena Apyterewa (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Na borda externa da terra indígena, cenas de pastoreio de rebanhos ainda são comuns (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

No caso do trabalhador resgatado na fazenda de Belfort, ele não lidava diretamente com gado, mas foi considerado “essencial ao sucesso e continuidade do empreendimento econômico”, diz o relatório de fiscalização trabalhista. O homem cuidava das roças e da criação de animais de granja, e também era o cozinheiro do local. “A fazenda inspecionada se encontrava em absoluto isolamento geográfico e desprovida de meios de transporte que permitissem seu regular abastecimento com gêneros alimentícios”, complementam os fiscais.

O trabalhador não tinha carteira assinada, não havia recebido nenhum pagamento (embora trabalhasse há mais de um mês), não gozava de folgas e não havia recebido equipamento de proteção individual (apenas um par de botas, cujo valor seria descontado de sua remuneração). Além disso, os fiscais do trabalho classificaram sua condição de moradia e trabalho como degradante, pois o empregador não ofereceu água potável na frente de trabalho e nem banheiro ao trabalhador, que precisava “fazer suas necessidades fisiológicas no mato, como os animais”.

São Félix do Xingu é o município campeão de resgates de trabalho escravo no Brasil, segundo os dados do Ministério do Trabalho e Emprego. Foram 1.551 autos de infração desde que a fiscalização começou a atuar, em 1995 — 1.331 deles foram registrados em fazendas de criação de gado. O segundo colocado, a cidade de São Paulo, teve 1.430 registros. São Félix do Xingu é também o município com maior rebanho bovino do Brasil.

300 animais não rastreados

No dia 4 de outubro de 2023, quando a equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho esteve na Fazenda Sol Nascente e resgatou o trabalhador de condições análogas à escravidão, Belfort informou às autoridades que “existiam aproximadamente 300 cabeças de gado bovino, as quais eram comercializadas para terceiros”. A emissão de GTAs (Guias de Trânsito Animal) é obrigatória para a movimentação de rebanho, ainda que não tenha fins comerciais. No entanto, a Repórter Brasil não localizou GTAs com origem nesta propriedade em 2023, nem em 2022. Perguntamos ao vereador sobre esse rastreamento, mas ele não respondeu nossas perguntas por email.

“A ausência do controle de fornecimento de gado fomenta a violação aos direitos humanos dos Parakanã, impulsiona o avanço do desmatamento ilegal e coloca em xeque a própria sustentabilidade e a legalidade da cadeia da pecuária no estado do Pará”, destaca o MPF no relatório sobre pecuária ilegal no território protegido. A Procuradoria também investiga casos de pecuaristas que podem ter inserido dados falsos no sistema oficial da Agência de Defesa Sanitária do Pará para ocultar a origem ilegal dos bovinos criados na área.

A fazenda de Belfort tinha quase dois mil hectares registrados no CAR. Em 2022, o Ibama o multou por desmatamento ilegal na propriedade e embargou uma parte da Sol Nascente. Bem antes disso, em 2006, já havia sido constatado desmatamento dentro do perímetro ocupado por Belfort na área protegida. Apesar dessas irregularidades, o vereador conseguiu vender 968 cabeças de gado entre 2014 e 2021 desta propriedade, de acordo com o MPF. Como a atividade é ilegal, a procuradoria cobra dele R$ 3,2 milhões e solicita que o valor seja revertido aos parakanã.

O relatório do MPF identifica transações feitas por Belfort com outros fazendeiros — incluindo várias remessas de gado enviadas para outra propriedade em seu nome, mas fora da área protegida. Essa fazenda, chamada Serra de Pedra, era fornecedor dos frigoríficos Marfrig e Frigol. Em 2020, a Repórter Brasil mostrou que Belfort poderia estar usando essa propriedade para “lavar” o gado criado ilegalmente na Apyterewa, adulterando sua origem.

Em 2022, outra investigação da Repórter Brasil levou a JBS a bloquear fornecedores apontados como suspeitos de triangulação. Na época da publicação das reportagens, os frigoríficos informaram que as compras seguiam suas políticas de sustentabilidade então vigentes e admitiram a necessidade de maior controle. 

Procurada agora, a Frigol informou que “não mantém relacionamento de compra com fornecedores envolvidos na invasão da Terra Indígena Apyterewa” e 77% de seus produtores indiretos de nível 1 (os fornecedores de seus fornecedores) cumprem com os requisitos socioambientais da empresa. Já a Marfrig, observou que “as últimas aquisições de animais dos produtores citados ocorreram em 2019” e que encerrou suas operações no Pará em março de 2020. Leia a íntegra aqui. A JBS não quis comentar.

No ano passado, os parakanã cobraram do BNDES o reflorestamento do território, já que o banco é acionista do frigorífico. “Comprando esse gado, a JBS financiou os invasores”, critica Mama Parakanã, cacique-geral do povo. O BNDES não retornou os contatos da reportagem. Na época, o banco afirmou que tentaria “induzir a empresa a dedicar esforços na sustentabilidade e nas melhores práticas ambientais da sua cadeia de produção, inclusive em relação ao rastreamento do gado adquirido”.

Portaria da terra indígena Apyterewa, no Pará. A terra Apyterewa teve seu processo de reconhecimento concluído em 2007, mas invasores seguiram ingressando no território (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
A terra Apyterewa teve seu processo de reconhecimento concluído em 2007, mas invasores seguiram ingressando no território até a desintrusão (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

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