QUANDO tinha 17 anos, Bruno* capotou com a bicicleta depois de o freio quebrar em uma descida, enquanto fazia uma entrega pelo iFood em São Paulo (SP) – ele feriu o joelho e ficou com dores nas costas por semanas. Já João tinha 16 anos quando um carro virou na contramão e o derrubou da bicicleta, ferindo seu braço e sua perna direita, também na capital paulista.
Ambos fazem parte de um contingente invisível de adolescentes que se arriscam para fazer entregas por aplicativo, de forma irregular. As principais empresas de delivery no Brasil – iFood e Rappi – proíbem o cadastro de pessoas com menos de 18 anos e até estimulam denúncias em seus canais oficiais.
A Repórter Brasil, no entanto, conversou com adolescentes e encontrou vídeos no Youtube e TikTok sobre como burlar as restrições das plataformas, para complementar a renda familiar.
A receita básica é usar contas fraudulentas, fornecidas ou alugadas por parentes e conhecidos. Dicas para enganar as ferramentas de reconhecimento facial, que pedem fotos para confirmar a identidade dos entregadores, são compartilhadas no boca a boca e na internet.
![Rio de Janeiro (RJ) 06/03/2024 – Entregadores de aplicativo trabalham na região do Centro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2024/09/mg_7398-2.jpg)
“Vou explicar como faz pra entregar no Ifood sendo ‘de menor’ (…) É fácil, rapaziada”, diz um vídeo com mais de 58 mil visualizações e centenas de comentários no Youtube.
“As medidas de verificação etária tem que estar em constante aprimoramento”, alerta Luísa Carvalho Rodrigues, da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), uma comissão especial do Ministério Público do Trabalho (MPT).
A procuradora reconhece que houve um avanço no combate ao trabalho infantil. Mas ao passo que as empresas implementam mecanismos mais rigorosos, as formas de driblá-los também ficam mais sofisticadas. “Se elas não têm essas condições, não poderiam operar”, afirma.
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Adolescentes pagam R$ 50 por aluguel de perfil no iFood
João soube por um colega que poderia usar a conta de outra pessoa para trabalhar. Ele pagava R$ 50 reais por semana para fazer entregas de bicicleta com o cadastro de um amigo.
Morador da zona sul da capital paulista, ele começou a trabalhar no Ifood “com 15 para 16 anos”, para ajudar nas contas de casa.“Era perigoso, ninguém respeitava [no trânsito]”, lembra. Ele equilibrava os estudos com jornadas de até dez horas diárias para juntar R$ 200 reais no fim do expediente.
Desde que completou 18 anos, em abril do ano passado, João trabalha em uma oficina mecânica. Ele ainda faz entregas no tempo livre – agora com uma conta em seu nome. Questionado se conhece adolescentes que fazem esse tipo de serviço, garante: “ainda tem uma molecadinha da comunidade que trabalha no iFood, sempre ‘de menor’”. Outra empresa procurada pelos jovens é a Rappi, segundo ele.
Bruno também usava a conta de um amigo para fazer entregas no Ifood. Essa “gambiarra”, como ele chama, é comum entre adolescentes do seu bairro, na zona leste da capital paulista. “Está difícil arrumar emprego. Que recurso a gente tem?”, conta.
![iFood diz monitorar conteúdos sobre sua marca na internet, mas afirma não ter "ingerência sobre as regras de uso ds distribuidoras de conteúdo" (Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-143247.png)
Ele largou os estudos quando tinha 16 anos e ficava até tarde da noite fazendo entregas para ganhar entre R$ 100 e R$ 150 reais por dia. “Se tocar [o alerta de pedido] para um lugar perigoso, a gente vai protegido. Já fui trabalhar com uma faca na cintura”, relata.
O trabalho infantil é proibido no Brasil, salvo algumas exceções, como o trabalho artístico e o de “jovem aprendiz”, sujeito a uma série de regras para combinar a formação profissional com a educacional. No caso do serviço de entrega, ainda há um agravante: ao expor os adolescentes ao risco de acidentes, à chuva e ao frio, a ocupação pode ser enquadrado na lista oficial de piores formas de trabalho infantil.
“É responsabilidade das empresas colocar a salvo as crianças de toda forma de violência e exploração”, alerta a procuradora Luísa Carvalho, do MPT.
Não é a primeira vez que as empresas são alvos de denúncias de trabalho infantil. Desde 2020, reportagens de diversos veículos já revelaram casos em vários aplicativos de delivery.
Em 2022 o MPT em São Paulo abriu uma série de investigações para apurar denúncias em diferentes empresas, como Rappi e iFood. Os processos foram arquivados por falta de provas no final do ano passado. Um dos principais obstáculos encontrados pelos procuradores foi a recusa de adolescentes falarem abertamente sobre o assunto, por medo de retaliação.
“Eles não gostam de conversar nem com a gente porque têm medo de serem banidos”, afirma Gilberto Almeida dos Santos, presidente do SindimotoSP (Sindicato dos Motociclistas Intermunicipal do Estado de São Paulo).
Em nota, o iFood afirma que “proíbe expressamente o cadastro de menores de 18 anos em sua plataforma” e que implementa uma série de medidas de segurança no momento do cadastro, como a validação de idade por meio de reconhecimento facial e “recursos avançados de inteligência artificial para detectar comportamento suspeito”.
A Rappi diz que não permite trabalho infantil e “tampouco contribui para que isso ocorra em sua plataforma. A empresa disse que “tem um processo formal e rigoroso de cadastramento para que todas as partes – o usuário, o próprio entregador e o Rappi – façam parte de um ecossistema seguro”. (Leia as respostas das empresas na íntegra).
Adolescentes burlam regras de verificação etária
O iFood se anuncia como o delivery mais usado do Brasil, com mais de 300 mil entregadores cadastrados. Para entregas de bicicleta, a empresa exige documento com foto e conta bancária. A Rappi também pede documentação com foto para o cadastro de entregadores.
Em comentários de vídeos no Youtube e TikTok, no entanto, os jovens trocam experiências sobre como burlar as regras na hora do cadastro, usando documentos de pais, mães e colegas.
“Vou pegar a conta do meu irmão mais velho, já até arrumei a mochila com ele”, diz um comentário publicado em janeiro deste ano, em um dos vídeos no Youtube. Outro, postado em dezembro de 2024, garante que o esquema funciona: “uso o documento da minha mãe e já fiz várias entregas”.
![Plataformas proíbem entregadores com menos de 18 anos; atividade pode ser enquadrada na lista das piores formas de trabalho infantil (Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-143148.png)
Outro perfil não teve tanta sorte no cadastro na Rappi: “não fui aprovado no Rappi eu acho que é pq eu sou de memor [sic] se eu trabalhar no iFood e colocar os dados da minha esposa eu consigo trabalhar?”, escreveu em um comentário postado há 10 meses. O incentivo vem na resposta: “sim”.
Gilberto Almeida dos Santos, do SindimotoSP, conta que já se deparou com essa situação em grupos de mensagens usados por entregadores. “Muitos contando vantagem por terem conseguido burlar o sistema”, relata.
Uma vez feito o cadastro, os adolescentes precisam contornar mais um obstáculo: o monitoramento via reconhecimento facial. A medida exige que os entregadores enviem fotos de tempos em tempos para confirmar sua identidade.
Mas também há maneiras de burlar essa exigência. João e Bruno relataram a Repórter Brasil que a “facial”, como eles chamam, normalmente é solicitada antes ou logo após as primeiras entregas. Eles começam o serviço nas proximidades da casa do dono da conta. Assim que o aplicativo solicita a confirmação de identidade, é só pedalar até lá e pedir a foto.
João, por exemplo, costumava fazer a primeira entrega em seu bairro na zona sul, e depois partia para o Itaim Bibi, região na zona oeste paulistana com alta concentração de restaurantes. “Esse amigo morava na mesma comunidade. Eu fazia a primeira entrega, aqui perto mesmo, e voltava. Aí ele fazia a ‘facial’, e eu podia fazer a entrega o restante do dia”, conta.
“Na maioria das vezes, [pedia a foto] quando eu ia começar. Aí na primeira entrega, ele [amigo] estava do meu lado. Eu sempre começava com ele do meu lado. Caso acontecesse isso, ele já estava lá”, complementa Bruno.
O esquema, porém, não era isento de falhas. Às vezes, as empresas pediam fotos em horários aleatórios. Nesses casos, o jeito é encerrar o expediente para não correr o risco de bloqueio.
Nos vídeos do Youtube e TikTok os relatos batem com o dos dois jovens entrevistados pela reportagem. “Ta pedindo facial só 1 vez no dia depois da 1ª entrega é suave”, diz a resposta a um comentário para a pergunta “como fazer para passar o reconhecimento facial”? Em outro, um perfil reforça que a solicitação de foto chega “só na primeira [entrega] do dia”.
Em um vídeo com mais de 27 mil visualizações, o autor sugere usar um segundo celular com várias fotos do dono da conta armazenadas. “Quando pedia para tirar foto, colocava um celular de frente para o outro, e o aplicativo aceitava”, relata.
O iFood afirma que tem implementado medidas robustas para impedir fraudes na etapa de reconhecimento facial. “Nossa tecnologia de biometria facial se tornou ainda mais precisa, bloqueando tentativas de falsificação, como o uso de fotos de terceiros”, disse em nota.
![Adolescentes trocam dicas sobre como burlar ferramentas de reconhecimento facial em apps de entrega (Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-113925.png)
Já a Rappi sustenta que realiza uma validação da foto enviada pelo entregador: “essa imagem é comparada, por meio de um avançado software, com a foto do seu documento de identidade, para garantir a segurança do ecossistema”.
Restaurantes também têm responsabilidade, diz MPT
Os jovens contam com a sorte na hora de retirar o pedido nos restaurantes, mercados e farmácias. “Ninguém nunca perguntou nada para mim, sabe? Eu só chegava lá e falava o código do pedido”, conta João.
Alguns estabelecimentos, no entanto, solicitam informações como o nome e número do documento do entregador. “Pediam para anotar o CPF e o nome. Aí tinha vezes que eu anotava e tinha vezes que não”, diz João. Quando isso acontecia ele escrevia os dados do dono da conta e seguia com o trabalho.
Mas alguns lugares eram mais rigorosos e comparavam a foto do cadastro com o rosto do entregador. Bruno pedia a compreensão dos atendentes: “não sou eu que estou na foto, mas tem como você me salvar?” Às vezes funcionava, às vezes não. “Ruim é quando eles alertavam no iFood. Aí o iFood pedia de imediato a ‘facial’. Comigo já aconteceu umas duas vezes. Eu tenho um amigo que fazia isso também e que perdeu a conta”, relata.
“Tem alguns restaurantes que impacam [sic] e outros não”, diz um comentário postado em abril de 2024, em resposta a um vídeo no TikTok.
![(Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-110912.png)
Para Luísa Carvalho, do Ministério Público do Trabalho, os restaurantes também têm uma parcela de responsabilidade, por fazerem parte da cadeia produtiva do delivery. “Esses restaurantes e outras empresas também se beneficiam desse serviço de entrega. A partir disso também há uma responsabilidade”, defende a procuradora .
Em tese, restaurantes e clientes podem denunciar casos de trabalho infantil nos aplicativos de entrega. A Repórter Brasil perguntou quantas denúncias foram recebidas pelas empresas de delivery em seus canais oficiais.
A Rappi não respondeu ao questionamento. O iFood disse que “não disponibiliza dados sobre denúncias envolvendo trabalho infantil, mas todas as ocorrências são investigadas e, quando confirmadas, resultam em medidas cabíveis, incluindo o descredenciamento da conta envolvida”.
Contas fraudulentas deixam jovens mais vulneráveis
No passo a passo para o cadastro, o iFood é categórico: “fraudar, nem pensar!”. E reforça: “essa prática configura falsidade ideológica e coloca em risco a sua segurança uma vez que, em caso de acidente, o seguro não poderá ser acionado”.
Foi o que aconteceu com João e Bruno. Por usarem contas fraudulentas, não puderam contar com o suporte da empresa quando sofreram os acidentes. Eles tiveram que arcar com os custos do conserto das bicicletas, das mochilas térmicas e até do lanche que estragou, no caso de Bruno.
![Vídeos no TikTok e no Youtube viram espaço de troca de ensinamentos para driblar restrições de apps de delivery (Ilustração: Rodrigo Bento / Repórter Brasil)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/Entregadores-2-1024x683.jpg)
“Eu não podia ter apoio porque eu estava usando a conta de outra pessoa. Se eu peço algum apoio, era capaz dessa pessoa perder a conta, entendeu?”, lamenta João. Ele ficou dias sem trabalhar enquanto aguardava o conserto da bicicleta.
O medo de sofrer mais um acidente era constante, conta. Ainda assim, ele acelerava para atender mais pedidos por dia. “Quanto mais rápido a entrega, o seu score sobe mais! Aí, mais entrega vai tocar”, conta. O Score iFood é uma métrica que avalia o desempenho dos trabalhadores com base na pontualidade, entregas e avaliação de clientes.
Segundo relatos ouvidos pela Repórter Brasil, o uso de bicicletas para fazer entregas é mais comum entre os adolescentes. Motos são mais caras e as empresas de delivery exigem o envio da CNH no cadastro, dificultando a entrada na plataforma para quem tem menos de 18 anos.
Para Gilberto Almeida dos Santos, do SindimotoSP, os jovens ciclistas se tornam “um prato cheio” para as empresas, já que são atraídos pela possibilidade de ganhos rápidos e não têm tanta experiência no mercado formal de trabalho. “Ficam de 6h a 14h em cima de uma bicicleta, sem um mínimo de dignidade, sem um mínimo de equipamento de segurança, sem um mínimo de controle de jornada de trabalho. É um descaso total”, alerta.
Nenhum dos jovens ouvidos pela reportagem usava capacete durante o serviço.
“Eu ficava com muito medo de acontecer alguma coisa grave comigo. Eu sempre prestava muita atenção, tentava não ficar com tanta pressa, mas tinha que ter pressa. É um trabalho que, querendo ou não, tem que ser rápido”, conta João.
A Repórter Brasil perguntou para o iFood e Rappi sobre o fornecimento e monitoramento do uso de equipamentos de segurança. A Rappi não respondeu. O iFood destacou as ações tomadas no âmbito do Visão Zero, uma área especializada na segurança dos entregadores no trânsito. “O time de Visão Zero vem testando diversos estímulos para redução de sinistros, incentivando uma direção cada vez mais segura dos entregadores no trânsito”.
*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar suas identidades
Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana
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