“VOCÊ É HOMEM!“. Ana*, 32 anos, diz que perdeu as contas das vezes em que escutou essa frase de seus superiores nos cinco anos trabalhando como faqueira em uma unidade do frigorífico Prima Foods. “Eu me sentia um lixo”, desabafa. “Porque é muito triste. Muito mesmo”.
Quando entrou na unidade da empresa em Araguari (MG), em fevereiro de 2014, tinha 19 anos e, conta, já se identificava como mulher e se vestia como esperado socialmente para o gênero. Ainda assim, ela relata que era discriminada diariamente: era impedida de usar o banheiro e o vestiário feminino, sofreu assédio, não era chamada por seu nome social e foi colocada em funções que exigiam grande força física, com a justificativa de que tinha mais força por ser homem. “Eu nunca chorava lá, mas chegava em casa e desabava.”
Mais de dez anos depois, em dezembro de 2024, uma decisão do TST (Tribunal Superior do Trabalho) confirmou a condenação da Prima Foods a indenizar Ana em R$ 35 mil pela discriminação de gênero sofrida. Ela havia entrado com a ação judicial após ser demitida, em 2019. O frigorífico recorreu contra a condenação do TST e o recurso aguarda análise de admissibilidade pela Justiça.
Neste sábado (28), Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, a história de Ana ilustra os desafios que a população trans continua a enfrentar para não apenas entrar no mercado de trabalho, como também para permanecer em espaços, muitas vezes, discriminatórios.
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“É um processo [judicial] emblemático, que representa um avanço. Mas, enquanto não houver outros órgãos fazendo a fiscalização, atuando de forma efetiva, só a condenação é muito pouco. Não irá trazer uma mudança interna de mentalidade”, avalia Iara Neves, advogada que atuou no caso.
A Prima Foods afirmou à Repórter Brasil que repudia com veemência “qualquer forma de discriminação” e que reforça seu “compromisso com o respeito à dignidade humana e à diversidade”. A empresa diz que as práticas apontadas no caso, referentes a um processo de 2019, “não refletem os valores da Prima Foods” e que criou um canal “efetivo” de ouvidoria em 2020, além de realizar “campanhas anuais de conscientização interna oferecendo orientação e treinamento a todos os seus colaboradores”. A Prima Foods também afirmou acreditar “em um mundo mais justo, ético e inclusivo” e que possui “ações afirmativas para que isso se reflita em todas as nossas relações interpessoais entre nossos colaboradores”.
‘Trabalho de homem’
Quando entrou na empresa, Ana foi colocada na função de auxiliar, que, explica, era exercida por homens. Ela movia os carrinhos que transportavam, cada um, cinco caixas de carne, que, por sua vez, pesavam em torno de 30 quilos cada. Depois, observando o trabalho das outras funcionárias, aprendeu o ofício de faqueira e foi promovida.
Em uma ocasião, entretanto, foi recrutada por um superior para cumprir funções que exigiam grande força física, em um posto diferente do seu. Quando reclamou com o chefe do setor, ouviu a justificativa de que “tinha mais força por ser homem e ter mais resistência”, conforme relatou o próprio encarregado da empresa em seu depoimento à Justiça, acessado pela Repórter Brasil. À reportagem, a Prima Foods afirmou que desligou o funcionário em questão e que atualmente o processa “para reparação da sua conduta irregular e ressarcimento da indenização mencionada”.
Na decisão do TST que manteve a condenação em primeira instância da Prima Foods, a ministra Kátia Magalhães Arruda, relatora do caso, disse que Ana “não era respeitada em sua identidade de gênero, pois era tratada a partir de estereótipos masculinos, como aquele de que teria melhor adequação para tarefas que exigissem a força física, por exemplo”.
A trabalhadora conta que também escutou a justificativa de que seria homem dos seguranças da empresa, que tentavam impedi-la de ficar com o grupo das mulheres durante os intervalos. Ouviu o mesmo, ainda, de funcionários nos vestiários masculinos do frigorífico que, afirma, presenciavam o assédio que sofria.
Essa violência foi a parte mais difícil do período em que trabalhou na Prima Food, relata Ana. E acontecia todos os dias.
Assédio nos vestiários
“Como era uma empresa grande, o fluxo do banheiro era muito grande também. Então, eu sempre esperava um horário em que tinha menos pessoas para poder entrar”, relembra.
O protocolo sanitário do frigorífico exigia que os funcionários tirassem suas roupas, deixassem em um armário, atravessassem todo o vestiário apenas de roupas íntimas para, então, receberem os uniformes higienizados.
Em agosto de 2023, a unidade do frigorífico em Araguari tinha mais de 1,2 mil funcionários, segundo uma postagem nas redes sociais da empresa. Então, Ana tinha que se despir entre centenas de homens todos os dias para entrar no trabalho.
Ela explica que já havia passado pela transição hormonal e era impedida de usar um top para proteger os seios. “Várias vezes eu tentei ir de cropped, mas eles me faziam voltar e tirar.”
Além dos assédios verbais, com xingamentos e gritos, Ana afirma à Repórter Brasil que sofreu assédio sexual. Funcionários chegaram a passar as mãos no seu corpo ao longo desse trajeto no vestiário, e até mesmo a exibir seus órgãos genitais. “Eles acham que por sermos trans, podem fazer de tudo… Mas não é assim. Eles têm que ter respeito”.
Ela afirma que relatou a situação ao RH da empresa em, pelo menos, três ocasiões. A justificativa, conta, era de que a empresa não poderia liberar o uso do banheiro e do vestiário feminino porque ainda não havia feito a troca formal de seu nome no registro civil. “Eu não tinha dinheiro para fazer a troca”, explica.
Conscientização é essencial
“O nome era só um dos pontos. Eram diversos tipos de violência na mesma relação de trabalho. Se ela não tivesse sido demitida, provavelmente estaria lá, se submetendo a isso até hoje, pela necessidade de estar empregada”, pontua a advogada Iara Neves.
Ela conta que foi preciso muita conversa com Ana para que a trabalhadora entendesse que a discriminação em sua rotina de trabalho é crime. “Essa escuta ativa foi importante para mudar a visão dela sobre os próprios direitos. Isso faz também outras mulheres entenderem que é possível, sim, ter reconhecido o direito de gênero, de nome, de tratamento não discriminatório no ambiente de trabalho”, complementa a advogada.
No processo judicial, o frigorífico alegou que fazia campanhas de conscientização entre os funcionários. “No tempo em que eu estava lá, eu não vi fazerem nada”, Ana contesta.
Para a ministra do TST Kátia Magalhães Arruda, a Prima Foods falhou ao não conter a discriminação sofrida por sua funcionária. “Dessa forma, resulta evidenciado o dano sofrido pela reclamante em sua esfera íntima, tendo questionada sua própria identidade pessoal, em decorrência da falha da reclamada em criar um ambiente de trabalho inclusivo, livre de discriminação e respeitoso quanto à identidade de gênero de seus empregados”, escreveu na decisão.
Desafios no mercado de trabalho
Na infância, quando vestia roupas femininas, Ana apanhava da mãe. Aos 13 anos, começou a se prostituir na tentativa de sair de casa, onde convivia com a violência e a dependência de álcool da progenitora. Ficou nas ruas até os 19 anos, quando conseguiu o emprego no frigorífico. “Eu aguentava aquilo ali para poder fazer a minha vida, sabe? Porque eu não queria estar numa avenida, no frio, na esquina, correndo risco”, ela conta.
Um estudo realizado pela instituição To.gather identificou que, em 2024, entre 1,5 milhão de trabalhadores atuando em 289 empresas, apenas 0,9% eram pessoas trans ou travestis e 10,1% se identificavam como pessoas LGBTQI+. Em postos de liderança, as pessoas trans e travestis representavam 0,2%.
Um estudo da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), publicado em 2020, mostrou que a informalidade é a forma de ocupação predominante para a população trans da capital paulista. A pesquisa ainda revelou que os homens trans têm uma chance nove vezes mais alta de estarem inseridos no mercado formal quando comparados com as mulheres transexuais e travestis.
“Estima-se que no Brasil, ainda hoje, 90% das pessoas de gênero diverso está na prostituição. Por muito tempo, esse foi o único lugar possível para essas pessoas se manterem”, avalia o advogado Gabriel Borba, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Distrito Federal.
Ele afirma que, nos últimos anos, esse cenário teve avanços, com políticas públicas voltadas ao público trans. Mas, ressalta: “Não é suficiente só uma política pública que garanta a inclusão dessa pessoa no ambiente de trabalho. O mais importante, além da inclusão, é que se garanta condições dignas de trabalho”.
Ana conclui: “O que a gente quer é só trabalhar e viver a nossa vida. A gente não quer mais nada além disso, sabe?”.
*Nome alterado para preservar a real identidade da trabalhadora
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