JBS mantém compra de gado de desmatadores da Amazônia mesmo após multa de R$ 25 milhões

Dois anos após ser penalizada por comprar gado de áreas desmatadas ilegalmente, empresa ainda adquire animais de fornecedor que pratica o crime. A JBS afirma que ‘fatos não condizem aos padrões da empresa’
“Daniel Camargos e André Campos
 02/07/2019

Multas de R$ 24,7 milhões não foram suficientes para fazer a JBS parar de comprar gado de produtores que colaboram para a destruição da Amazônia. Apesar de ter sido punida em 2017 pela Operação Carne Fria por essa prática ilegal, a dona das marcas Friboi, Seara e Swift continua adquirindo bois de uma empresa que produz em áreas desmatadas ilegalmente, conforme comprovou uma investigação conjunta da Repórter Brasil, do jornal britânico The Guardian e do Bureau of Investigative Journalism.

A reportagem esteve em São Félix do Xingu, no sudeste do Pará, e flagrou gado sendo criado em uma área desmatada e embargada pelo Ibama – prática considerada crime ambiental. A área faz parte da fazenda Lagoa do Triunfo, que já foi multada por desmatamento ilegal e integra o grupo Agro SB, antes conhecido como Santa Bárbara Xinguara e, controlado pelo banqueiro Daniel Dantas. A Agro SB é uma tradicional fornecedora da JBS.

Além disso, a investigação também confirmou que, no ano passado, a fazenda Lagoa do Triunfo transferiu centenas de cabeças de gado para outra fazenda do mesmo grupo empresarial, sem problemas ambientais, de onde animais são vendidos para o abate nos frigoríficos da JBS.

Ao comprar esses animais, a JBS mostra que não avançou no monitoramento de seus fornecedores indiretos. Desde 2009 a empresa se compromete, por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) firmados com o Ministério Público, a participar do desenvolvimento de mecanismos eficientes de controle de produtores indiretos – ou seja, as fazendas desmatadoras que repassam animais para outras áreas de pastagem antes do abate. Mas a própria empresa admite não ter mecanismos adequados para esse fim. 

Bois pastam em área desmatada e embargada pelo Ibama na fazenda Lagoa do Triunfo, da Agro SB, o que configura crime ambiental. Empresa é fornecedora da JBS. (Foto: João Laet/Repórter Brasil e The Guardian)

A empresa controlada pelos irmãos Wesley e Joesley Batista também descumpre o que disse  à Repórter Brasil e ao The Guardian, após a operação Carne Fria, de que havia parado de comprar gado de “todas as fazendas relacionadas” ao grupo Santa Bárbara (Agro SB).

Não é a primeira vez que a Agro SB, fornecedora da JBS, se envolve em violações ambientais ou trabalhistas. Em 2012, uma fazenda do grupo foi flagrada com trabalho análogo à escravidão. Um trabalhador já foi assassinado dentro de uma fazenda do grupo por reclamar direitos trabalhistas e o Ministério Público investiga a empresa por grilagem de terras. O histórico ambiental da Agro SB também é controverso. Somente na fazenda Lagoa do Triunfo, o grupo foi multado em R$ 69,5 milhões pelo Ibama por desmatamento ilegal entre 2010 e 2013.

Um dos trabalhadores da fazenda Lagoa do Triunfo disse à reportagem estar ciente do descumprimento das regras ambientais, já que sabia que o gado pastava em áreas embargadas. “Não podemos cortar a vegetação [das áreas embargadas]”, disse o funcionário, cujo nome é preservado para evitar retaliações. “A vegetação cresce e então trabalhamos com o gado dentro delas.”

Os embargos são impostos pelo Ibama como medida de recuperação de áreas desmatadas ilegalmente – assim, qualquer atividade econômica no território fica proibida. Os embargos servem também como punição aos fazendeiros que não cumprem a lei, já que as multas ambientais costumam não ser pagas. Realizar atividade econômica em uma área embargada prevê multa de até R$ 1 milhão, de acordo com o decreto presidencial 6.514 de 2008. O decreto também estabelece multas a quem adquire animais criados em áreas embargadas. 

Triangulação entre fazendas

Mais do que um crime ambiental, a criação de gado em áreas embargadas revela uma prática que consiste na triangulação entre fazendas para disfarçar a origem dos animais. Os bovinos crescem em uma área embargada, depois são encaminhados a uma fazenda “ficha-limpa”, ou seja, sem problemas ambientais, de onde são vendidos para os frigoríficos.

Documentos públicos de transporte de animais consultados pela reportagem revelam que, entre janeiro e outubro do ano passado, a AgroSB transferiu pelo menos 296 bois da fazenda Lagoa do Triunfo para a fazenda Espírito Santo, também de sua propriedade. Por sua vez, a fazenda Espírito Santo vendeu pelo menos 1.977 bois, entre julho e dezembro do ano passado, para dois frigoríficos da JBS no Pará. Outras remessas da fazenda Espírito Santo aconteceram em janeiro deste ano, quando 936 bois foram vendidos para o frigorífico da JBS de Redenção. 

Nas estradas que cortam a fazenda Lagoa do Triunfo, que tem quase o tamanho da cidade de São Paulo, é comum cruzar com manadas de boi. (Foto: João Laet/Repórter Brasil e The Guardian)

A transferência de gado de uma fazenda a outra para a engorda é uma prática comum no setor, mas dificulta que empresas monitorem seus fornecedores indiretos e mantenham compromissos de não comprar gado de fazendas desmatadoras. 

A JBS informou, em nota, que “os fatos apontados não correspondem aos padrões” adotados pela companhia. A empresa informou que não adquire animais de fazendas envolvidas com desmatamento, invasão de terras indígenas, envolvidas em conflitos agrários, com uso de trabalho análogo ao de escravo ou que estejam embargadas pelo Ibama. 

A companhia diz também que trabalha em conjunto com o Ministério Público Federal “para regulamentar a indústria na questão do desmatamento ilegal”. Desde 2009, frigoríficos e órgãos públicos dialogam para encontrar formas de monitoramento de fornecedores indiretos, mas ainda não encontraram uma solução definitiva. 

A empresa de auditoria DNV.GL, contratada pela JBS, constatou que a JBS “não possui verificação sistemática” de seus fornecedores indiretos, mas ressalta que em 99,99% dos casos avaliados pela consultoria as compras de gado foram regulares, de acordo com relatório publicado em outubro de 2018 . Leia aqui a íntegra da resposta da JBS. 

Após a publicação desta reportagem, a JBS enviou nota dizendo que “repudia a afirmação de que ‘compra gado de produtores que colaboram para a destruição da Amazônia’ e reforça que possui um sistema robusto de monitoramento dos fornecedores de gado que é auditado de forma independente e que garante a regularidade de suas operações”. A respeito da triangulação do gado, a companhia informou que trabalha em parceria com o Ministério Público Federal para “o desenvolvimento de um índice de produtividade por fazenda que compara o total de cabeças de gado vendidas pelos produtores e a capacidade de produção da respectiva propriedade, com o objetivo de evitar o processo de triangulação.” A nota diz ainda que as propriedades da Agro SB que foram suspensas em 2017 passaram por “verificação da empresa” e que as que apresentaram irregularidades continuam bloqueadas como fornecedoras. Leia aqui nota na íntegra.

A Agro SB informou, em nota, que “inexiste qualquer irregularidade na comercialização/transferência de gado proveniente da fazenda Lagoa do Triunfo”, já que divide as fazendas entre locais de cria, engorda e recria. A empresa afirmou que comprou a fazenda Lagoa do Triunfo em fevereiro de 2008 e que “nunca realizou qualquer supressão de vegetação no imóvel”.

Imagem de área desmatada em Novo Progresso, no Pará. Cerca de 580 mil campos de futebol são derrubados anualmente no Brasil para serem convertidos em pastagem, diz TRASE. (Foto: Ibama)

A área embargada onde a reportagem flagrou o gado pastando foi autuada pelo Ibama em 10 de novembro de 2010 por desmatamento, o que gerou multa de R$ 4,53 milhões. Cerca de um mês depois, a área foi embargada – época, portanto, em que a Agro SB já havia comprado a fazenda. 

A Agro SB não respondeu sobre a presença de bois pastando neste local. A empresa também  nega que tenha praticado trabalho escravo e alega desconhecer a investigação do Ministério Público sobre grilagem de terras. Leia aqui nota da empresa na íntegra.

Floresta que vira pasto

A JBS é uma das empresas ligadas ao desmatamento da Amazônia, de acordo com estudo da TRASE, uma plataforma europeia que investiga cadeias produtivas e é resultado de uma parceria entre as organizações Stockholm Environment Institute (Suécia) e Global Canopy (Reino Unido). A multinacional e sua cadeia de fornecedores são responsáveis por destruir uma área estimada entre 28 mil e 32 mil hectares de florestas por ano para a exportação de carne, segundo dados compilados pela consultoria e fornecidos com exclusividade à reportagem. Esses números não consideram a produção destinada para o mercado brasileiro.

Cerca de 580 mil campos de futebol são derrubados anualmente no Brasil para serem convertidos em pastagem para pecuária, segundo a TRASE. 

A cidade de São Félix do Xingu, além de ser a campeã brasileira em número de cabeças de gado, é o terceiro município com maior área desmatada na Amazônia entre 2013 e 2018 (Foto: João Laet/Repórter Brasil e The Guardian)

A cidade de São Félix do Xingu, além de ser a campeã brasileira em número de cabeças de gado – são 18 bois para cada morador –, é também o terceiro município com maior área desmatada na Amazônia entre 2013 e 2018, atrás apenas de Altamira e Porto Velho, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Até o final da década de 1970, era uma vila de pescadores e ribeirinhos à beira do rio Xingu. A chegada dos garimpeiros e dos madeireiros iniciou o ciclo de desmatamento, consolidado com a pecuária. O crescimento do rebanho na cidade foi exponencial. Em 1977, eram 91 cabeças de gado. Vinte anos depois, eram 217 mil até chegar aos atuais 2,2 milhões, de acordo com dados do IBGE de 2017. 

Numa cidade de pecuaristas, uma das principais atrações é a corrida de cavalo. Fazendeiros se reúnem no Clube do Cavalo do Negão em uma tarde de sábado, no início de junho. Alguns exibem bolos de notas de R$ 100 das apostas informais. Já a banca oficial de apostas acumulou R$ 200 mil naquele dia.

Arlindo Rosa (de bigode) e Francisco Torres (de camisa vermelha), presidente e vice, respectivamente, do Sindicato dos Produtores Rurais de São Félix do Xingu.
(Foto: João Laet/Repórter Brasil e The Guardian)

Arlindo Rosa e Francisco Torres são autoridades ali. Presidente e vice, respectivamente, do Sindicato dos Produtores Rurais de São Félix do Xingu, eles vocalizam o discurso dos pecuaristas – e também do presidente Jair Bolsonaro – contrários à fiscalização ambiental.  

“Tem multa aqui que você não paga nunca. Eles [os fiscais do Ibama] não têm dó de meter a caneta”, afirma Rosa, que já foi autuado quatro vezes pelo Ibama por desmatamento, com multas que somam R$ 5,6 milhões.

Os dois líderes do sindicato estimam que 90% das propriedades de São Félix do Xingu têm áreas embargadas pelo Ibama por desmatamento. A reclamação dos produtores rurais é que uma pequena área embargada em uma gigantesca fazenda, por exemplo, já impede  o produtor de comercializar com o frigorífico. “Estamos tendo dificuldade para vender nossos bois, pois o frigorífico não compra de área embargada”, reconhece Rosa. 

A matemática dos pecuaristas, porém, não fecha. Se eles estimam que grande parte dos produtores de São Félix do Xingu não podem vender para frigoríficos por conta dos problemas ambientais, por outro lado listam com desenvoltura os abatedouros que compram o gado das fazendas da cidade. A triangulação entre fazendas ajuda a explicar como o gado da região chega ao abate e aos supermercados. Outro destino, segundo Rosa, é o mercado internacional: “Sai muito boi de navio aqui. Se não fosse a exportação, não teria jeito.”

Com embargo ou sem embargo, na cidade com o maior rebanho do Brasil, vale o ditado popular da região: “Boi não morre de velho.”

Nota da redação: A matéria foi atualizada em 2 de julho às 18h10 para inserir nota da JBS enviada após a publicação da reportagem.

 

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil


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