Se em agosto os incêndios criminosos na Amazônia triplicaram, agora uma nova ameaça paira sobre a floresta: o sinal verde para o plantio de cana-de-açúcar. O governo revogou, na semana passada, um decreto que há dez anos vetava a expansão canavieira na floresta amazônica e também no Pantanal. A medida abre caminho para o cultivo da cana e, segundo pesquisadores, para mais desmatamento, queimadas e conflitos por terra.
Ao trancar os portões da Amazônia e do Pantanal para a cana-de-açúcar, o decreto 6.961 de 2009 ajudou não apenas a manter os biomas livres dessa ameaça, mas também a valorizar o etanol brasileiro no mercado externo, já que a plantação de cana para produzi-lo não estava atrelada ao desmatamento.
Tanto que todas as vezes que a ideia de autorizar cana na Amazônia vieram à tona no passado, a indústria do etanol se posicionou contra a liberação. Como aconteceu em março de 2018 durante a discussão do PLS 626/2011, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que autorizava canaviais nos dois biomas. A União da Indústria de Cana de Açúcar (UNICA) criticou o projeto, alegando que ele mancharia a reputação do etanol brasileiro e colocaria em risco os mercados internacionais já conquistados.
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Mas isso foi em 2018. Na semana passada, após a revogação ser assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministro Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura), a medida encontrou o apoio da UNICA. Em nota, a entidade elogiou a revogação e afirmou que hoje considera o decreto ultrapassado, “servindo apenas como mais um dos tantos arcabouços burocráticos brasileiros”.
A mesma linha é adotada pelo governo, que também considera o decreto desnecessário porque “atualmente o país dispõe de instrumentos muito mais eficazes para o controle ambiental”, segundo informou à Repórter Brasil o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em referência ao Código Florestal. A pasta afirmou ainda que “não haverá impacto nos biomas citados”.
A expectativa de organizações de direitos ambientais, cientistas e ex-ministros do Meio Ambiente, no entanto, é bem diferente.
Mais desmatamento
“A revogação é uma tragédia ambiental”, afirma Carlos Minc, ministro do Meio Ambiente quando o zoneamento foi criado, em 2009, e atualmente deputado estadual (PSB-RJ). “Cria-se um risco adicional ao se abrir as portas da Amazônia e do Pantanal para novos desmatamentos, queimadas e uso de mais agrotóxicos.”
A medida pode incentivar o desmatamento porque geraria uma espécie de efeito cascata sobre o gado, com uma migração de culturas. “Pode haver uma corrida por aquisição de terras hoje cobertas com pastagens para plantar cana e isso empurraria a pecuária para as áreas onde ainda existem florestas”, afirma Mauro Armelin, diretor executivo da ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira. “E empurrar a fronteira agrícola para as áreas florestais vai agravar a especulação imobiliária e os conflitos por terra, aumentando o desmatamento e encorajando grileiros a invadirem e abrirem novas áreas.”
Um paralelo pode ser traçado entre a medida do governo de liberar a cana na Amazônia e no Pantanal com o que acontecia com plantações de soja em estados como Mato Grosso e Pará, antes da moratória da soja – um pacto firmado em 2006 entre os produtores de soja, ambientalistas e o governo para que tal cultivo não avançasse na Amazônia e pelo qual compradores se comprometem a não adquiri-la de áreas desmatadas.
‘Efeitos desastrosos’
Esse risco de o desmatamento se infiltrar floresta adentro, segundo a UNICA, não existe. “Desmatou, está fora do Renovabio”, afirmou em nota o presidente da associação, Evandro Gussi, se referindo à nova política de biocombustíveis que entra em vigor em 2020 e se baseia no desmatamento zero. Ele acredita que, com ela, o próprio setor se autorregulará porque suas vendas estão calcadas na sustentabilidade.
“Se o setor fosse tão capaz de se autorregular e respeitar a lei, nós não teríamos visto o desmatamento explodir este ano, com quase 10 mil quilômetros quadrados de desmatamento”, afirma Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, uma rede de 37 entidades que discute as mudanças climáticas no contexto brasileiro.
O mesmo alerta serve, segundo Rittl, para o Pantanal, onde a situação é igualmente “dramática” e os riscos da revogação também. Os focos de queimadas no Pantanal de 1º janeiro a 11 de setembro de 2019 subiram 334% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Os efeitos [de se derrubar o veto] serão desastrosos. E no Pantanal e na Bacia do Alto Rio Paraguai, devem ser imediatos por suas características físicas particulares”, afirma Alcides de Faria, diretor-executivo da Ecoa – Ecologia e Ação, ONG que atua na região. Ele explica que a parte alta da bacia drena para o Pantanal, uma grande planície com quase 200 mil km2. “A cana na parte alta aumentará o desmatamento e o transporte de sedimentos e venenos agrícolas para a planície. O plantio na planície, por sua vez, levará o deserto verde que é a cana para o coração do Pantanal”.
A criação de uma nova “fonte” de desmatamento, segundo os especialistas, complicaria ainda mais a já deficitária fiscalização em ambos os biomas – a derrubada da floresta nas áreas do ‘Dia do Fogo’, por exemplo, continua mesmo após a atenção que os incêndios atraíram dentro e fora do Brasil. Além disso, as queimadas usadas durante o cultivo da cana também trazem mais um risco que pode resultar em alastramento de incêndios.
O que está por trás da revogação?
A revogação do decreto, portanto, pode gerar graves impactos ambientais, segundo os especialistas. Pode também causar prejuízo na comercialização da cana e do açúcar brasileiro no mercado internacional, já que o cultivo na Amazônia afasta compradores internacionais. Além disso, o avanço para essas áreas também seria desnecessário, pois o país já conta com uma ampla área degradada agricultável, suficiente para expandir a produção.
Segundo o Observatório do Clima, não há necessidade de um único hectare de terra amazônica ou pantaneira para cana-de-açúcar, já que a área necessária para dobrar a produção até 2030 (11 milhões de hectares adicionais) é menor do que a que estava prevista no zoneamento demarcado pelo decreto de 2009 (19 milhões).
“O Brasil vem aumentando sua produção pela produtividade, pela intensificação e pelas novas tecnologias. Não precisa ampliar em milhões de hectares a área do plantio de uma cultura – o que vai trazer perdas tanto do ponto de vista da biodiversidade quanto em aspectos econômicos”, afirmou o ex-ministro Minc.
Se a medida acarreta prejuízos ambientais e econômicos, qual seria então a motivação para essa decisão do governo? E quem são os verdadeiros interessados?
Há dez anos uma investigação da Repórter Brasil feita na época em que o zoneamento foi promulgado mostrava o interesse do setor em implementar usinas na região do Pantanal e entorno, na Bacia do Alto Paraguai e na Amazônia.
As usinas já existentes na Amazônia e Pantanal, inclusive, carregam um pesado histórico de situações de trabalho análogo à escravidão, por variados motivos, entre eles a vastidão do território e as dificuldades de fiscalização. É o caso de usinas como a Gameleira (posteriormente Destilaria Araguaia), em Confresa (MT), e a Alcopan, de Poconé (MT), que se tornaram presenças habituais na chamada “lista suja” do trabalho escravo do governo federal.
“Essas medidas se explicam por uma questão ideológica – ou seja, pelo ambiente de vale tudo e de desprezo pelo meio ambiente e pelas condições de trabalho que, cada vez mais, está imperando em algumas organizações patronais da agricultura”, afirma Ricardo Abramovay, professor do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP).
Para ele, também há também razões patrimoniais envolvidas, pois desmatamento é hoje na Amazônia um caminho para se incorporar patrimônio – sobretudo a partir da invasão de terras públicas.
Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e que também teve papel importante na elaboração do Zoneamento, acrescenta que a medida não interessa nem ao meio ambiente nem ao país. “Essa medida do governo Bolsonaro fragiliza nossa imagem internacional e, do ponto de vista econômico, prejudica o agronegócio”, diz. “Proteger o Pantanal e a Amazônia é estratégico para o Brasil. Ou deveria ser.”
Nota da redação: a matéria foi atualizada no dia 13 de novembro de 2019 às 13h45 para alteração da atual sigla partidária do ex-ministro Carlos Minc.