Grandes frigoríficos compraram do pecuarista Maurício Pompéia Fraga, um dos 19 empregadores incluídos na atualização da “lista suja” do trabalho escravo, divulgada nesta segunda (5) pelo Ministério da Economia. Desde 1995, quase 56 mil pessoas foram resgatadas no país.
A Repórter Brasil analisou a movimentação do rebanho de Fraga e constatou que o pecuarista vendeu gado para a JBS e para a Marfrig mesmo após a fiscalização trabalhista constatar o trabalho escravo, em junho de 2018.
Com os 19 empregadores incluídos no cadastro, responsáveis por submeter 231 trabalhadores a condições análogas à escravidão, a lista suja tem agora 92 integrantes – que exploraram 1.736 pessoas.
Além de Fraga, outros quatro pecuaristas entraram na lista. Um deles por submeter trabalhadores paraguaios a condições degradantes e outro por manter funcionários em regime de servidão por dívida. Também integram o cadastro donos de garimpo de ouro no Amapá e no Pará, construtoras em Minas Gerais e na Bahia e mineração de caulim no Piauí.
O cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, conhecido como “lista suja”, existe desde novembro de 2003 e é atualizado a cada seis meses pelo Ministério da Economia. Veja aqui a lista completa.
Os auditores fiscais do trabalho flagraram 30 funcionários de Maurício Pompeia Fraga, entre eles um adolescente de 16 anos, transportando gado a pé em um trajeto de 900 quilômetros. Eles partiram de Uruará com destino a Xinguara, ambas no Pará – em uma viagem que, se não fosse interrompida pela fiscalização, levaria quatro meses: sem folga, sem local apropriado para dormir, sem água potável nem banheiro e muito menos com carteira assinada, como determina a legislação trabalhista.
Por conta dessas e de outras violações, da situação degradante e da jornada exaustiva, os auditores consideraram que os trabalhadores estavam sujeitos a condições análogas à escravidão e autuaram Fraga por 33 infrações trabalhistas.
A entrada do pecuarista na “lista suja” do trabalho escravo ocorreu 33 meses após a fiscalização. No período, Fraga pôde recorrer em duas instâncias administrativas no Ministério da Economia (que herdou as tarefas do extinto Ministério do Trabalho), mas não teve sucesso. Nesse intervalo de mais de dois anos e meio, gigantes brasileiras do setor de processamento de carne seguiram negociando com o pecuarista. É o caso da JBS – a maior empresa de proteína animal do mundo, dona de marcas como Seara, Friboi Swift, Doriana e Delícia – e a Marfrig, maior produtora de hambúrguer do planeta.
O gerente regional da Friboi, Rodrigo Fagundes, chegou a elogiar Fraga em entrevista ao programa Giro do Boi, do Canal Rural, em março de 2019, nove meses após o flagrante de trabalho escravo. “O Maurício Fraga faz um trabalho singular no Pará”, afirmou o empresário ao canal, que pertence à holding J&F, dona da JBS desde 2013.
A JBS informou, em nota, que assim que soube que o nome de Fraga entrou para a lista suja do trabalho escravo, bloqueou o pecuarista “e todas as suas propriedades” da sua relação de fornecedores. “Como o pecuarista mencionado pela reportagem passou a figurar na referida lista nesta segunda-feira (5/4), o seu CPF e todas as propriedades vinculadas a ele foram imediatamente bloqueados para a compra de gado pela JBS”. A empresa esclarece ainda que realiza esses bloqueios após a entrada no cadastro do governo, já que “bloquear com base nas inspeções significaria deslegitimar a Lista Suja, uma conquista histórica do combate ao trabalho escravo”.
A Marfrig afirmou que também bloqueará o fornecedor. “Quando detectada qualquer não conformidade aos critérios de compra, incluindo inserção na lista de trabalho escravo, o sistema bloqueia automaticamente o respectivo fornecedor, impedindo o fornecimento”. A companhia reitera que “à época da compra, o produtor Maurício Pompeia Fraga não constava na lista e preenchia todos os critérios de compra. Importante ressaltar que esse produtor foi incluído na data de hoje (05/04/2021)”. Em nota, a empresa afirma que suspendeu atividades no Pará em março de 2020. Confira aqui a íntegra das respostas.
Os advogados de Fraga foram procurados pela Repórter Brasil para comentarem – este texto será atualizado assim que recebermos a resposta.
‘Vida de gado’
Os 30 funcionários que Fraga submetia a condições análogas à escravidão faziam o transporte do gado divididos em três grupos. Durante o trajeto, eles dormiam em barracas improvisadas com lona na beira das estradas e, em alguns momentos, diretamente no chão, sobre as espumas que usavam na montaria de animais. Além disso, consumiam água de rios e igarapés e não tinham acesso a banheiros. Para comer, contavam com uma carroça de apoio com um fogão, mas sem refrigeração dos alimentos.
Aos trabalhadores foi prometido o pagamento de diárias entre R$ 45 e R$ 60, que seriam quitadas somente ao final dos quatro meses percorridos, quando o gado chegasse em segurança na fazenda de Fraga, em Xinguara.
Cada um dos três grupos era comandado por um “comissionário” ou condutor, que assinaram um contrato com Fraga prevendo uma indenização de R$ 1.800 por cada animal morto no trajeto, após ultrapassar a margem de perda de 2% de cada comitiva, segundo informações levantadas durante a fiscalização. Ao todo, os três grupos transportavam 3.850 animais.
No momento da fiscalização, em junho de 2018, os auditores fizeram contato com Fraga, para que ele fosse até o local pagar as indenizações dos trabalhadores resgatados e providenciar o transporte dos animais, mas foram informados que o pecuarista estava na Itália, em um passeio em um cruzeiro marítimo.
Fraga é um grande produtor rural de Bauru (SP) e tem fazendas no sul do Pará desde 1973. O seu filho (que o acompanhava no cruzeiro no Mediterrâneo), Maurício Pompeia Fraga Filho, preside a Associação dos Criadores do Pará (Acripará), que em setembro de 2020 produziu um vídeo dizendo que as queimadas na Amazônia eram uma mentira. Com dados falsos e a imagem de um mico-leão dourado (animal da Mata Atlântica e não da Amazônia), o vídeo chegou a ser compartilhado pelo vice-presidente Hamilton Mourão e pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, mas depois de revelada a mentira, foi apagado.
Sediada no parque de Exposições Presidente Médici, em Belém, a Acripará tem como uma de suas bandeiras um sistema para regularizar propriedades com áreas desmatadas ilegalmente, fruto de um acordo com o Ministério Público Federal em março de 2020. No site da associação, há um esquema mostrando como legalizar propriedades multadas por desmatamento e explicando que, caso o produtor faça parte da associação, poderá negociar com as indústrias. A página exibe o logotipo de diversos frigoríficos, com a JBS entre eles.
Os compradores do gado de Fraga, como JBS e Marfrig, são gigantes multinacionais que assinaram, em 2009, o TAC da Carne — acordo com o Ministério Público em que se comprometem a não comprar gado diretamente de fornecedores multados por desmatamento ilegal ou autuados por trabalho escravo. Além de não cumprirem o prometido, conforme revelam reportagens da Repórter Brasil, os frigoríficos alegam ter controle sobre seus fornecedores, mas na prática fomentam o desmatamento da Amazônia, como mostra o relatório “Filé no supermercado, floresta no chão” publicado pela Repórter Brasil em fevereiro. Além do desmatamento, a JBS já foi apontada por comprar bois de fazendas com trabalho escravo, como revelou uma investigação conjunta com o jornal inglês The Guardian.
Mais da metade dos casos de trabalho escravo flagrados no país entre 1995 e 2020 aconteceram na pecuária, de acordo com outro relatório da Repórter Brasil, o “Trabalho escravo na indústria da carne”. A pecuária também é o setor de onde mais trabalhadores foram resgatados: o setor respondeu por 31% dos resgatados em 25 anos, um total de 17.253 trabalhadores.
Fraga tem três propriedades no Pará registradas por ele no Cadastro Ambiental Rural (CAR). As fazendas Sinhá Moça e Rita de Cássia, em Eldorado dos Carajás, e Porangaí, em Xinguara. Somadas chegam a 23 mil hectares, equivalente ao tamanho de Recife (PE).
Antes da criação da “lista suja” em 2003, Fraga já havia sido apontado por explorar mão de obra escrava em 1994, em denúncia feita pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). A fazenda Sinhá Moça também foi alvo, em 2012, da fiscalização dos auditores fiscais do trabalho, quando foram encontradas 13 irregularidades trabalhistas, mas que não configuraram trabalho análogo à escravidão.
Ironicamente, o nome da fazenda é uma referência a personagem da novela de Benedito Ruy Barbosa exibida em 1986, na TV Globo. Interpretada por Lucélia Santos, Sinhá Moça era filha de um escravagista apaixonada com um advogado abolicionista na trama que se passa em 1886, dois anos antes da promulgação da Lei Áurea.
A ‘lista suja’
Prevista em portaria interministerial, a lista suja inclui nomes após os empregadores poderem se defender administrativamente em primeira e segunda instâncias.
Os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos do cadastro. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.
Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.
Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da lista suja, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. O ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso, afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade e que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial. O relator destacou que um nome vai para a relação apenas após um processo administrativo com direito à ampla defesa.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de se desligar do patrão); servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas); condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida); ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Nota da redação: Este texto foi atualizado às 21h36 para incluir posicionamento da JBS e às 22h22 para inclusão das respostas da Marfrig.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil