Crianças com pés queimados pelos rejeitos do beneficiamento de minério de ferro. Trabalhadores expostos a falhas de segurança e problemas de saúde. Comunidades inteiras em que os direitos à moradia, a um padrão de vida adequado e ao meio ambiente estão sendo violados. São impactos da cadeia produtiva do minério de ferro do projeto Grande Carajás, da Vale S.A, que inclui atividades de mineração, ferrovia, siderurgia e portos e, que agora tem sua cadeia produtiva rastreada e exposta publicamente para cobrança de responsabilidades.
O relatório “Heavy metal – das desumanas minas aos bens de consumo globais, a jornada do ferro brasileiro”, publicado nesta quinta-feira, 24 de fevereiro, aponta os caminhos pelos quais essa matéria-prima extraída na Amazônia atravessa dois estados brasileiros, Pará e Maranhão, e chega até países da Ásia e Europa na forma de produtos das indústrias automotiva, de eletrodomésticos ou de infraestrutura.
“Pessoas em todo o mundo estão consumindo, sem saber, produtos de empresas de mineração e siderurgia que, há mais de três décadas, prejudicam a saúde [das pessoas] e poluem o meio ambiente na Amazônia brasileira”, afirmam a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH) e a Justiça nos Trilhos (JnT), entidades signatárias do relatório produzido a partir de pesquisa realizada pela Repórter Brasil.
Segundo a investigação, a China foi, de longe, o principal destino das exportações de minério de ferro de Carajás, no Pará. Entre janeiro e setembro de 2021, foram 310 carregamentos para o país asiático, a maioria dos 523 analisados. Para a Europa, foram rastreados 76 carregamentos. Porém, o continente europeu também pode estar recebendo indiretamente o ferro de Carajás em produtos de aço provenientes da China. Turquia, Estados Unidos, Argentina, Romênia, Omã, Ilhas Maurício, África do Sul e Egito também compraram o material.
Empresas como ArcelorMittal (Alemanha, França, Espanha e Itália), Tata Steel (Holanda) e Acciaierie Ditalia (Italia) estão entre as compradoras europeias. Na Ásia, o relatório aponta conexões com companhias como Baowu/Baosteel, maior siderúrgica do mundo, e HBIS/Hesteel, ambas chinesas, além da japonesa JFE Steel e Posco e Hyundai na Coréia do Sul. A Malásia, onde a Vale mantém um terminal marítimo próprio, também recebeu cargas originárias da região.
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No Brasil, além da Vale, o relatório nomeia a Siderúrgica Viena S.A. e o Grupo Ferroeste, que inclui a Gusa Nordeste S.A., e a Aço Verde do Brasil.
Entre todas as empresas mencionadas no relatório, apenas a Vale se manifestou, defendendo que suas atividades “contribuem com o crescimento do Pará”. “O setor impulsiona a arrecadação, a geração de empregos e movimenta toda cadeia produtiva de fornecimento de bens, insumos e equipamentos e a prestação de serviços”, justifica a empresa. Os demais pontos dos esclarecimentos da mineradora podem ser conferidos aqui.
Reparação pelos abusos cometidos
O objetivo do relatório, segundo as entidades, “não é sugerir que as empresas da cadeia de valor sejam responsáveis pelos abusos”, mas, sim, fazer um “convite às empresas a realizar a devida diligência para verificação in loco da situação”. Embora as denúncias internacionais sobre violações ao longo desse corredor de produção tenham chegado até o Conselho de Direitos Humanos da ONU, os problemas decorrentes da poluição e tratamento inadequado de rejeitos seguem sendo documentados.
Por isso, as organizações signatárias do relatório elaboraram 11 recomendações à Vale, que extrai o minério de Carajás, e às demais empresas que participam da cadeia produtiva.
Entre as sugestões para as companhias que atuam em solo brasileiro, estão realizar avaliações de impacto sobre os direitos humanos, divulgar a seus acionistas informações precisas sobre questões socioambientais e cumprir decisões judiciais que concedem reparação às pessoas afetadas no Corredor Carajás. “Sem usar de subterfúgios jurídicos para prorrogar a execução das sentenças judiciais favoráveis às vítimas”, complementam os autores. O relatório também indica a necessidade de emissão de um pedido formal de desculpas à comunidade de Piquiá de Baixo, onde os impactos são particularmente graves. Seus moradores devem ser reassentados e indenizados, segundo o texto.
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Já as empresas que compram minério de ferro, ferro-gusa e aço de Carajás, deveriam mapear fornecedores diretos e indiretos e parceiros de negócios “para entender se estão diretamente ligados aos impactos de direitos humanos ocorridos no Corredor Carajás” e tomar providências para que violações cessem, se for o caso.
A ampla divulgação dessa cadeia de fornecimento também é defendida, assim como o uso da influência das companhias “para garantir que as empresas que causam ou contribuem para os abusos (como a Vale S.A.) assegurem a reparação efetiva dos direitos violados”. “As empresas devem considerar a possibilidade de terminar de forma responsável a relação com a empresa” se isso não for possível, complementam os autores.
“É urgente reconhecer as graves violações, para que a reparação integral ocorra de fato. Neste sentido, as empresas da cadeia de aço e ferro também têm a sua responsabilidade”, concluem os autores.