“Hoje trouxemos comida, amanhã não vai ter”. A ameaça foi feita por um militar a indígenas venezuelanos do povo Warao que vivem em um abrigo para refugiados em Boa Vista (Roraima), segundo um cacique que relatou o caso sob condição de anonimato. Essa e outras intimidações feitas nas últimas semanas foram motivadas pela resistência dos indígenas à decisão da Operação Acolhida e da Acnur de mudá-los do abrigo atual para o Rondon 3, o maior abrigo para refugiados e migrantes da América Latina. Ninguém foi consultado previamente, um direito previsto na Convenção 169, tratado internacional da Organização Internacional do Trabalho do qual o Brasil é signatário. O prazo final para a mudança é no final de março.
Na quarta-feira (dia 16), os indígenas contam terem sido surpreendidos por oficiais do Exército dentro do abrigo Pintolândia, onde a Repórter Brasil já divulgou denúncias de maus-tratos por parte dos militares. Itens de artesanato, vendidos na cidade, foram confiscados. Cordas das redes, que fazem a vez de camas, cortadas. Um homem foi agredido, e indígenas que trabalham com instituições internacionais, ameaçados de perder o emprego. Tudo na frente das crianças. Aos presentes, diz o cacique, foi avisado: a luz também estava com os dias contados. Quem quisesse ficar no abrigo, estaria à própria sorte.
Os Warao temem que a mudança para outro abrigo os deixem em uma situação ainda mais vulnerável e relatam problemas como insegurança e dificuldade de acesso a escolas. Organizações que trabalham com os venezuelanos na região classificaram a ação do Exército como “truculenta” e criticaram as autoridades envolvidas não apenas pela falta de consulta aos indígenas, mas também pela ausência de soluções de moradia dignas e fixas, em contraposição aos abrigos, que deveriam ser temporários.
Procurados, Operação Acolhida e Acnur enviaram uma nota conjunta, afirmando que a mudança de abrigo foi notificada em novembro de 2021, uma vez que foram identificados “problemas irreparáveis de infraestrutura”. Desde então, foram realizadas consultas por meio de diagnósticos participativos, e que a mudança é voluntária. Os documentos, dizem, foram entregues à Defensoria Pública da União. Das denúncias de pressão, remoção forçada, confisco do artesanato e ameaça de perder o emprego, afirmam que a Força-Tarefa Logística Humanitária “não está ciente de nenhuma denúncia” e que “todos os abrigados são tratados dignamente e com respeito.” Sobre o transporte escolar, afirmam que o novo abrigo está em região “próxima de escolas” e que o Acnur levantou recursos para apoiar a locomoção de crianças afetadas pela transferência. (Veja nota na íntegra)
“Vivo aqui há mais de quatro anos porque fugi da miséria na Venezuela, como muitos parentes aqui. O abrigo deveria ser temporário, não para a vida toda. Mas virou a única opção. Agora, querem que a gente vá para outro lugar. Eu estou com medo”, diz o cacique. A pressão que ele e os outros 300 indígenas do Pintolândia vêm sofrendo soa inverossímil para quem vive em condição de refugiado ou migrante e, portanto, deveria justamente ser protegido pela Operação Acolhida e pelo Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). “A Acnur e Exército estão forçando a gente a sair do abrigo”, disse o líder Warao.
A Operação Acolhida é uma força-tarefa humanitária que reúne governo federal, agências da ONU, Exército e outras entidades. A nota do Acnur e da Operação Acolhida diz que a “Força-Tarefa Logística Humanitária faz uma gestão da segurança, logística e apoio a infra-estrutura em todos os abrigos da Operação Acolhida” e que o “ACNUR, em parceria com organizações da sociedade civil, por meio de memorando de entendimento assinado com o Ministério da Cidadania, apoia a gestão dos abrigos da Operação Acolhida em Roraima.”
‘Sem dignidade’
Mudar de abrigo não é só uma mudança de CEP. É abandonar, diz o cacique, o lugar que você criou laços depois de fugir de casa para tentar fugir da miséria. É obrigar as crianças a trocarem de escola, uma vez que, segundo ele, o transporte escolar não foi garantido na mudança; e a praça, localizada à frente do abrigo atual, que faz a vez de espaço de recreação. É mudar para uma região mais violenta. É seguir vivendo em um ambiente militarizado e, por vezes, de abusos. “É viver sem dignidade”, diz o líder Warao.
O advogado e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Cípio, afirmou à Repórter Brasil que a remoção forçada deve ser paralisada, “É mais uma ação truculenta da Operação Acolhida com aval de uma agência da ONU”. Nas redes sociais, o CIR, que acompanha a crise migratória, repudiou “a ação truculenta da Força Tarefa da Operação Acolhida durante o processo de remoção dos indígenas Warao dos abrigos.”
“Dizer que essa população tem opção [ir para o Rondon 3] não é verdade. Porque ficar na rua não é opção. Deveriam ser construídas alternativas a partir da consulta”, diz Yuri Costa, vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Para Costa, não é possível dizer que não houve tempo para ouví-los. “A gente não está mais falando daquele grande fluxo migratório de 2018, mas de pessoas em abrigos há quase cinco anos. Não é uma questão de dar opção e livre escolha, mas de impor política de abrigamento como estrutura definitiva, o que é inapropriada e ilegal.”
O registro da mudança dos indígenas, sem consentimento, para um superabrigo, com capacidade para até três mil pessoas, está no relatório do CNDH sobre violações de direitos humanos e crise migratória na região, publicado em 17 de março, mesma semana do avanço dos militares no abrigo Pintolândia. “Os relatos são alarmantes sobre a prevalência de um sentimento de pressão, medo e desinformação entre a população indígena migrante e a reestruturação dos abrigos”, diz o documento. Também consta no relatório a denúncia, feita pela Repórter Brasil, da criação do Cantinho da Vergonha, espaço de confinamento involuntário onde eram detidos, sem mandado judicial, indígenas venezuelanos em condição de alcoolismo.
“Nem o Acnur nem a Operação Acolhida apresentaram alternativas. Nem o estado de Roraima e a cidade de Boa Vista pensaram em políticas públicas para essa população”, afirma Gilmara Fernandes Ribeiro, coordenadora do projeto de apoio às populações venezuelanas em deslocamento em Boa Vista no Conselho Indigenista Missionário.
Acnur e Operação Acolhida afirmaram atuar em conjunto com órgãos públicos para que, junto à comunidade abrigada, seja construída uma “estratégia diferenciada”. O documento, no entanto, não menciona datas, atores envolvidos nem em que fase o processo está. A reportagem procurou os governos de Roraima e de Boa Vista e os questionou sobre as políticas públicas para a população abrigada, mas não teve retorno.