Um dos maiores frigoríficos do planeta, a brasileira JBS comprou 8.785 cabeças de gado de três fazendas que desmataram a Amazônia em Rondônia. As compras irregulares ocorreram durante pelo menos quatro anos, entre 2018 e 2022, sem que os sistemas de monitoramento da empresa barrassem os negócios. Todas as fazendas pertencem à mais famosa quadrilha de infratores ambientais do estado, cujo líder, Chaules Volban Pozzebon, está preso por extração ilegal de madeira e é considerado o maior desmatador do país, além de ter sido condenado por usar mão de obra escrava. É o que revela uma investigação inédita feita pela Repórter Brasil, em parceria com o Greenpeace Brasil e o Unearthed, braço jornalístico do Greenpeace.
A JBS confirmou os dados obtidos pela reportagem e admitiu não apenas as compras irregulares como a participação de seus funcionários no esquema. Segundo a companhia, essas compras foram registradas em seu sistema como tendo origem em uma outra fazenda, do mesmo grupo, que estava liberada pelos critérios socioambientais. “A partir das informações apresentadas pela Repórter Brasil, ficou claro que o grupo mencionado vinha, de má-fé, se valendo da conivência de funcionários da Friboi [que pertence à JBS] para burlar o sistema e enviar gado produzido em fazendas com irregularidades socioambientais”, informou o frigorífico, que diz ter demitido funcionários envolvidos e que pretende “buscar reparação na Justiça pelos danos sofridos”.
No entanto, a JBS tinha meios para checar essa informação, visto que os nomes das fazendas de origem estão registrados nas Guias de Trânsito Animal das transações. As GTAs são um documento obrigatório na compra e venda de gado e formam a base dos sistemas de monitoramento dos frigoríficos brasileiros.
A JBS ainda informou que decidiu excluir de seu cadastro de fornecedores a empresa que intermediava os negócios, a Agropecuária Rio Preto Eirelli, pertencente à família Pozzebon, bem como seus sócios e todas as pessoas a eles associadas.
A defesa de Chaules Volban Pozzebon nega “qualquer tipo de fraude ou crime nas vendas realizadas” para os frigoríficos. “Não existe organização criminosa, mas sim um grupo empresarial regularmente constituído e com atividades lícitas e autorizadas pelos órgãos competentes”, explica o advogado Aury Lopes Jr. O representante legal da família Pozzebon e da empresa Agropecuária Rio Preto acrescenta que não houve desmatamento criminoso, “mas manejo autorizado de madeira” e que todas as atividades são lícitas e regulares, sem qualquer fraude ou desacordo de pactos setoriais da carne.
As compras irregulares da JBS viraram peças de carne das marcas do frigorífico vendidos no Brasil e podem ter sido exportadas para várias partes do planeta. Mas os consumidores brasileiros não tiveram nenhuma chance de saber, já que no sistema de transparência da empresa, onde é possível consultar a origem da carne comprada no supermercado, as remessas oriundas das fazendas irregulares aparecem apenas sob o nome genérico “Fazenda”.
A Minerva, outra gigante do setor de carnes no Brasil, também adquiriu 672 animais de uma das fazendas com desmatamento ilegal dos criminosos. Os repasses ocorreram ao longo do ano de 2021, embora o frigorífico tenha confirmado que a fazenda estava bloqueada em seu sistema desde 2018, “por apresentar irregularidades em 2014, 2016, 2018, 2019 e 2020 e, também, por apresentar sobreposição de polígono de embargo do Ibama”. Apesar disso, a Minerva preferiu não comentar o caso e disse apenas que está “apurando o ocorrido com base nos dados que estão públicos e legalmente disponíveis para uso”. A íntegra das manifestações pode ser lida aqui.
Comandos de dentro da prisão
Chaules Volban Pozzebon se tornou uma figura conhecida por ser o chefe de uma milícia armada que roubava terras, extorquia e cobrava pedágio de moradores de um assentamento rural em Rondônia, segundo autoridades policiais e judiciárias. Condenado a 99 anos de cadeia por extração e beneficiamento de madeira retirada ilegalmente de dentro de terras protegidas, comandou suas atividades ilegais de dentro da prisão, segundo as investigações. A defesa recorreu da condenação.
Apesar de todas as transações ilegais de madeira na Amazônia, eram as vendas de gado para a JBS, Minerva e outros frigoríficos que formavam uma das principais fontes de receita da quadrilha comandada por Pozzebon. Segundo documentos que integram a investigação da Polícia Federal aos quais a reportagem teve acesso, o grupo do desmatador recebeu da JBS R$ 47 milhões, apenas entre 2015 e 2019 – em três anos neste período, o frigorífico foi a principal fonte de receitas do bando.
A companhia confirma os pagamentos feitos desde 2015, que “se referem à compra de gado” – admitindo que os negócios com os infratores ambientais são anteriores aos dados de compra rastreados pela Repórter Brasil.
A Minerva também aparece como financiadora da quadrilha em 2018, quando foi sua 11ª maior fonte de receitas, com R$1,3 milhões repassados – igualmente revelando a existência de relações anteriores às compras feitas em 2021. Distriboi e Frigorífico Tangará integram a lista de financiadores do grupo – a reportagem entrou em contato com as duas empresas, mas não obteve retorno.
Quinze anos sem floresta
As vendas de gado para os frigoríficos eram intermediadas pela Agropecuária Rio Preto, empresa registrada em nome da mãe do chefe da organização criminosa, Maria Salete Pozzebon, a principal laranja do filho, segundo o Ministério Público Federal – título que o advogado Aury Lopes Jr. também rejeita: “absolutamente fantasioso e inverídico”, informa o representante legal da família, cuja manifestação na íntegra pode ser lida aqui.
A empresa dos Pozzebon leva o nome da propriedade rural na qual a maioria dos animais ilegais repassados para a JBS pastou nos meses antes do abate: a Fazenda Rio Preto, também identificada nas Guias de Trânsito Animal como LH B-90, em Cujubim, Rondônia. A Repórter Brasil rastreou 3.880 cabeças de gado repassadas pela Agropecuária Rio Preto, com origem nesta propriedade, diretamente para o abate nas unidades da JBS de Porto Velho, São Miguel do Guaporé e Vilhena – todas no estado de Rondônia.
Há 15 anos o Ibama luta para que Pozzebon faça o reflorestamento dos 2,6 mil hectares de Amazônia que destruiu na Fazenda Rio Preto. O órgão move, desde 2008, uma ação contra o desmatador pedindo, além da recomposição da área, o pagamento de indenização por danos materiais e morais coletivos. “Os danos causados ao meio ambiente pela ação predatória […] atingem não apenas a flora, destruída diretamente pelo infrator, alcançando, por extensão, também a fauna, as bacias hidrográficas e o equilíbrio climático”, apontou o Ibama no processo.
Ainda em 2008, a Justiça deu razão ao órgão ambiental, mas o criminoso nunca cumpriu a determinação.
Na verdade, ao invés de reflorestar a área, o infrator segue criando gado na fazenda, conforme revelaram imagens de satélite de outubro de 2021 inseridas na ação judicial. O Greenpeace Brasil sobrevoou a área em 2022 e também fotografou animais pastando. “Não houve respeito ao embargo, nem à determinação judicial, pois a área continua em uso até hoje, o que comprova que o infrator jamais pretendeu efetuar a recuperação ambiental da área. Afinal, se apenas tivesse isolado a área, esta já teria sofrido regeneração natural há muito tempo”, aponta o órgão ambiental em manifestação feita em abril de 2022 no processo.
Por isso, agora o Ibama cobra do desmatador, que está preso, R$ 24,6 milhões.
Tem mais: Segundo o Ministério Público de Rondônia, a área da fazenda Rio Preto pode ter sido grilada, assim como dezenas de outras propriedades registradas em nome de Chaules Volban Pozzebon na divisa entre os municípios de Cujubim e Itapuã do Oeste, em, Rondônia, “cujas áreas somadas perfazem um total de 5.993,1727 (cinco mil novecentos e noventa e três vírgula mil setecentos e vinte e sete hectares). “Fazem parte de um projeto de assentamento realizado pelo Incra, o que leva a presumir terem sido negociadas com o demandado, de forma, ilegal e irregular, com os antigos posseiros”, aponta a procuradoria estadual, que também move uma Ação Civil Pública contra o desmatador.
Condenação por trabalho escravo
Em abril de 2018, Chaules Volban Pozzebon foi condenado a 6 anos e 9 meses de prisão, em regime semiaberto, por submeter 22 trabalhadores à condição análoga à de escravo em outra de suas fazendas, a Pedra Preta. Três deles eram menores de idade. A defesa de Chaules recorreu também neste processo, e diz que não houve “qualquer participação de Chaules [no crime], pois era um trabalho terceirizado”. A íntegra pode ser lida aqui.
Um mês antes da condenação, a propriedade começou a enviar gado para as unidades da JBS de São Miguel do Guaporé e Porto Velho.
Ao todo, até julho de 2019, foram 1.316 bois abatidos pela companhia com origem nesta fazenda.
O Greenpeace analisou imagens de satélite e concluiu que a área também foi alvo de desmatamento de 79 hectares entre 2008 (após agosto, portanto, não anistiados pelo Código Florestal) e 2011 – ambos em desacordo com o que estabelece o protocolo de monitoramento.
Na fazenda de Pozzebon, os empregados dormiam em um alojamento feito de lona, um curral e uma casa de alvenaria – e mesmo estes não tinham colchões, conforme registrado na sentença. Uma cozinheira repousava no quarto ao lado do depósito de agrotóxicos.
A maioria precisava se banhar em córregos e igarapés e as necessidades fisiológicas eram feitas no mato, já que não havia banheiros para todos. Ninguém tinha contrato de trabalho ou carteira assinada.
O caso foi revelado em uma fiscalização do Ministério do Trabalho em 2011, e em 2012, ele foi condenado administrativamente e passou a integrar a ‘Lista Suja’ do Trabalho Escravo, o que veda negócios com frigoríficos signatários dos protocolos de monitoramento pelo período de dois anos, enquanto o nome permanecer listado.
O caso descumpre o Termo de Ajuste de Conduta assinado pela JBS em 2013 com o Ministério Público Federal, no qual a empresa se comprometeu a não adquirir gado de fazendas na Amazônia Legal cujos proprietários “tenham condenação judicial de primeiro grau, em ações criminais e civis ajuizadas pelo Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e/ou Ministério Público do Trabalho e recebidas pelo Poder Judiciário contra seus respectivos proprietários, posseiros, gestores e empregados pela prática de trabalho escravo”.
No sistema do Incra, a Fazenda Pedra Preta aparece registrada no nome de Chaules Pozzebon, com uma observação: “Parcela Sem Título de Domínio”. Isso quer dizer que ele não conseguiu demonstrar o direito sobre a propriedade ao órgão fundiário brasileiro.
Minerva compra de fazenda bloqueada
Em setembro, a Repórter Brasil perguntou à Minerva se o frigorífico havia abatido animais criados da Fazenda Rio Branco, de Chaules Volban Pozzebon, onde o Greenpeace constatou desmatamento ilegal de 165 hectares entre 2016 e 2018, uma área maior que o Parque do Ibirapuera, que tem 158 hectares.
A resposta foi clara: “A Minerva Foods não adquiriu gado fornecido pela Agropecuária Rio Preto Eirelli, oriundo da Fazenda Rio Branco. A propriedade encontra-se bloqueada em nosso sistema interno de monitoramento de fornecedores diretos desde 2018”. O motivo, de acordo com o frigorífico, seriam sucessivas irregularidades ambientais entre 2014 e 2020. “Esse é o procedimento padrão da Minerva Foods e a comercialização com a propriedade está diretamente condicionada à sua efetiva regularização junto aos órgãos públicos”, concluiu o frigorífico.
Apesar disso, a reportagem conseguiu comprovar que em 2021, 672 bois saíram dessa fazenda para serem abatidos na planta de Rolim de Moura da Minerva. O frigorífico disse que investiga o caso.
A JBS abateu 3.589 animais provenientes dessa propriedade.
Conexões internacionais
Entre os frigoríficos que compraram animais ilegais de Pozzebon, a JBS é a única signatária dos Termos de Ajustamento de Conduta em Rondônia. Esse instrumento garante a aplicação de um protocolo de verificação da origem dos animais que abate, mas embora a empresa tenha sido alvo de auditorias independentes nos anos de 2017, 2018 e 2021, as compras irregulares não apareceram nestes levantamentos. As auditorias contemplam uma amostra de 10% do total de compras e, no universo de todas as plantas da Amazônia auditadas, o percentual de irregularidades detectadas foi mínimo.
Como também falharam os sofisticados sistemas de monitoramento que as empresas dizem ter desenvolvido na última década para fazer valer seus rigorosos critérios socioambientais, entre eles não produzir em fazendas embargadas, é possível que os produtos da JBS e da Minerva feitos com a carne proveniente de áreas desmatadas tenham ido parar nas prateleiras de consumidores internacionais.
De 2018 a 2022, segundo dados de comércio internacional a que a reportagem teve acesso, os EUA importaram 12.389 toneladas de carne bovina JBS dos três municípios onde estão as plantas envolvidas com a ilegalidade (em Porto Velho, Vilhena e São Miguel do Guaporé). Somente Hong Kong e Egito, país que sedia esta semana a Conferência do Clima das Nações Unidas, a COP 27, compraram mais carne bovina JBS destas unidades durante este período.
Por outro lado, investidores de todo o mundo têm sustentado essas operações, mesmo que a atividade dos frigoríficos seja uma das mais expostas ao desmatamento – e que isto esteja em desacordo com as suas políticas de investimento. No Brasil 90% das árvores que tombam na Amazônia cedem lugar ao pasto, segundo o Imazon.
Em 1º de novembro, a JBS anunciou ter recebido financiamento de 1,5 bilhões de dólares provenientes do Bank of Montreal.
Atualmente, instituições financeiras norte-americanas detém US$ 246 milhões em ações e títulos da JBS, levando os EUA ao posto de segundo maior investidor no frigorífico depois do Brasil. As gestoras de ativos Vanguard, Fidelity Investments e BlackRock detinham os maiores volumes de investimento.
Já bancos e outras instituições financeiras da União Europeia detêm 53 milhões de dólares na JBS. A União Europeia está avançando para aprovar uma nova lei anti-desmatamento que, pela primeira vez, proibiria que produtos ligados à destruição de florestas e violações dos direitos humanos fossem colocados à venda no mercado europeu. A legislação abrange instituições financeiras europeias, cujas carteiras de investimento precisarão ser examinadas para evitar vínculos com projetos e empresas relacionados ao desmatamento.
A JBS disse que era “oportunista e inapropriado” ligar as informações apuradas pela reportagem sobre vendas da Agropecuária Rio Preto Eireli aos investidores internacionais. Todos os investidores citados foram contatados e, para aqueles que responderam, suas considerações podem ser lidas, na íntegra, neste link.
*Correção: Esta reportagem foi atualizada em 15/11/2022, às 17h20, para corrigir uma informação. Em uma versão anterior, esse texto informava que os três abatedouros da JBS que compraram gado da família Pozzebon exportaram carne bovina para a Europa. Segundo a JBS, as três fábricas de Rondônia mencionadas no relatório não exportam para a Europa.
*Correção: Esta reportagem foi atualizada em 10/11/2022, às 22h22, para corrigir uma informação. Não houve exportações das plantas de Rondônia da JBS para a Noruega no período entre 2015 e 2022, ao contrário do que a versão anterior deste texto informava.
Leia também