PMs que já foram acusados de extorquir garimpeiros receberam promoção e aposentadoria de R$ 14 mil

Policiais Militares receberam promoções em série do governo de Roraima, enquando corria o processo por suposto esquema de propina em garimpo ilegal na TI Yanomami; oficiais foram absolvidos após caso ser repassado para Justiça Militar
Por Gisele Lobato
 21/03/2023

Uma canoa descia o rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima, quando foi abordada por uma operação de combate ao garimpo ilegal. O então servidor da Funai Paulo Gomes da Silva teria se dirigido a um garimpeiro que viajava na embarcação. “Cadê o ouro que você tem aí? Tem sim, eu sei que você tem. Passa rápido o ouro, para o pessoal não ver.” Diante da intimidação, o garimpeiro teria colocado dois pacotes de ouro, com 216,5 gramas, no bolso da jaqueta de “Paulão”. Dois policiais militares acompanhavam a cena, que aconteceu em 2014, mas não impediram a extorsão, segundo o Ministério Público Federal (MPF).

O episódio foi revelado pelo próprio garimpeiro e confirmado por uma mulher que estava na canoa, em depoimentos à Companhia Independente de Policiamento Ambiental (Cipa), da Polícia Militar de Roraima, obtidos pela Repórter Brasil. O caso entrou na mira do MPF e da Polícia Federal, que inclui o relato no inquérito de investigação que fez parte da operação Korekorema II, de combate ao garimpo ilegal, em 2014. Funai e governo de Roraima, contudo, encararam de forma distinta as denúncias contra seus servidores. Enquanto o órgão indigenista afastou o funcionário, o poder estadual promoveu os dois policiais militares.

Área de garimpo com dezenas de barracões às margens do rio Uraricoera, na TI Yanomami, que foi alvo da operação Korekorema II, em 2014 (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Os sargentos da PM Francisco Inaldo Silva Costa e Ranildo Brandão progrediram na carreira poucos dias após o MPF denunciar os dois à Justiça, em 2017. Outras promoções ocorreram nos anos seguintes, enquanto corria o processo por extorsão, o que ajudou a turbinar as aposentadorias recebidas por ambos: R$ 14.407,40 brutos, no caso de Costa, e R$ 17.240,06, no de Brandão. Os valores se referem a dezembro de 2022.

Após a promoção de Costa e Brandão por “mérito intelectual”, em janeiro de 2018, os dois receberam nova progressão na carreira quatro meses depois, alcançando o posto de 1º tenente. Costa se aposentou nesse cargo naquele ano, mas Brandão ainda receberia mais uma promoção, ao posto de capitão, antes de deixar a ativa em 2020.

Após o MPF ter apresentado a denúncia contra os dois policiais, o processo tramitou na Justiça Militar e eles foram absolvidos. Porém, as testemunhas que relataram a suposta extorsão à Polícia Militar não foram ouvidas no processo.

O caso foi identificado após a Repórter Brasil cruzar os nomes de todos os denunciados pelo MPF entre 2013 e 2020 por ligação com garimpo ilegal na TIY com as listas de servidores federais e beneficiários de auxílios sociais, segundo a base do Portal da Transparência, do governo federal. O levantamento mostrou que, entre os 80 acusados, há pelo menos 6 servidores ou ex-servidores recebendo salários ou aposentadorias pagas com dinheiro público. No grupo também estão 28 beneficiários do auxílio emergencial.

A Repórter Brasil procurou o governo de Roraima e a Secretaria de Segurança Pública do estado para saber se houve investigação administrativa sobre a conduta dos dois policiais e para pedir um posicionamento sobre as promoções, mas não obteve resposta. Já a PM de Roraima informou que foi aberta uma sindicância, e que o processo foi concluído ao “constatar a improcedência dos fatos”.

O advogado de Brandão, Erick do Valle, disse que a denúncia é caluniosa e que as provas eram infundadas. Ele afirmou que nada impedia a promoção do oficial, “porque até o trânsito em julgado ele é inocente, como foi comprovado.” A reportagem também entrou em contato com Francisco Inaldo Silva Costa, que não quis se pronunciar.

A Funai, por outro lado, afastou do cargo não apenas “Paulão”, que estava no episódio da canoa, como também seu chefe, o então coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami-Yekuana, João Batista Catalano, ainda em 2015, por suspeita de cobrança de propina para manter o funcionamento do garimpo ilegal na TIY.

Por e-mail, Catalano disse que não participou de qualquer esquema ilegal de cobrança de propina de garimpeiros e que ele foi perseguido por órgaos como PF, MPF e CGU durante sua atuação como coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Yekuana. “Essa denúncia contra mim partiu dos garimpeiros, que falam num único coro que eu pegava muito ouro, pelas contas deles algo em torno de uns R$ 5 milhões. Mas eu não tenho isso, meu patrimônio é condizente com o meu salário”, disse ele em entrevista à Amazônia Real, em 2015. Ele também afirmou que sempre combateu os invasores do território, que conseguiu reduzir em 80% o garimpo na TI e que um dos motivos pelos quais se diz perseguido é o fato de ter desmantelado negócios de grandes empresários de Roraima.

A reportagem não conseguiu contato com Paulo Gomes da Silva, por meio dos telefones informados no processo nem por seus advogados. Veja na íntegra todos os posicionamentos enviados para esta reportagem.

‘Cadê o ouro?’

Incentivado pelo governo Bolsonaro, o garimpo ilegal destruiu 1.226 hectares de floresta amazônica na TIY até 2022 (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Além dos depoimentos dos garimpeiros, registros da própria PM de Roraima relatam abusos por parte de policiais da corporação, mas sem mencionar nomes. Após o episódio da canoa, o então PM Ranildo Brandão teria sido alvejado por um garimpeiro durante outra missão de combate aos invasores, ainda em 2014. Uma equipe do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) foi enviada à região para dar segurança a policiais e servidores da Funai, bem como para prender o responsável pelo disparo que feriu Brandão. A missão tinha como objetivo também destruir balsas e equipamentos utilizados e concluir a retirada dos garimpeiros da terra indígena.

Segundo relatório do Bope, obtido pela Repórter Brasil, o batalhão especial, que também é vinculado à PM de Roraima, “recebeu elogios” dos garimpeiros pois eles estariam sofrendo abordagens abusivas de policiais militares e agentes da Funai. O comandante do Bope improvisou uma mesa e colheu depoimentos sobre as acusações. Foram ouvidos 12 moradores da comunidade garimpeira, dos quais 8 eram mulheres.

Das testemunhas ouvidas, dez relataram que PMs e agentes da Funai à frente da primeira operação estavam atrás de ouro. Todos os depoentes narraram ter sido tratados com violência, e duas mulheres disseram que foram obrigadas a ficar nuas após ouvirem a intimação: “cadê o ouro?”. Segundo consta no relatório do Bope, os garimpeiros também acusaram os servidores da Funai Catalano e “Paulão” de cobrarem propina e disseram que a operação antigarimpo seria uma punição por não terem reunido a quantidade de ouro exigida como suborno.

O comandante do Bope destacou em seu relatório de forma negativa a “forma [com] que policiais da Cipa e agentes da Funai abordaram as pessoas, com a intenção principal de pegar o ouro delas”. O comandante pediu que as acusações fossem esclarecidas, para que não configurasse um caso de impunidade na PM-RR, “pois aqui nessa honrosa corporação só cabem técnicos em segurança e defensores da sociedade”.

Labirinto na Justiça

As denúncias dos moradores não mencionaram o nome ou a descrição de nenhum policial em particular, ao contrário dos depoimentos colhidos com o garimpeiro e a passageira da canoa abordada no rio Uraricoera. A mulher relatou especificamente que, ao lado de “Paulão”, estavam “o sargento que foi alvejado e outro policial mais velho” e que “um dos que estavam pegando ouro era o policial que foi baleado”, em referência a Brandão. Interrogado pela PF, “Paulão” confirmou que estava ao lado dos sargentos Costa e Brandão quando o grupo interceptou uma canoa em novembro de 2014, mas negou qualquer tentativa de extorsão.

A investigação da PF levou a Funai, em 2015, a afastar “Paulão” e Catalano dos cargos de chefia que ocupavam. Catalano continuou a trabalhar como indigenista para a fundação até junho de 2020, quando foi demitido após processo administrativo. No mesmo dia da demissão de Catalano, uma portaria do Ministério da Justiça destituiu “Paulão” do cargo comissionado que ocupava. Procurada pela Repórter Brasil, a Funai não esclareceu se as punições tiveram relação com as suspeitas de envolvimento com o garimpo ilegal.

Em 2017, o MPF apresentou denúncia contra os dois policiais e Catalano pelo episódio da canoa. Catalano foi absolvido, já que, segundo os interrogatórios, ele não estava presente na ocasião da suposta extorsão, mas sim seu subordinado, “Paulão”. Constatado o erro, a Procuradoria apresentou nova denúncia em 2019, agora contra “Paulão”, mas a ação está suspensa desde 2020 porque o réu não foi encontrado.

Catalano foi candidato a deputado federal nas eleições de 2018 e de 2006, e tentou concorrer a vereador de Boa Vista (RR) em 2020, mas teve a candidatura indeferida.

Em relação aos PMs, a Justiça entendeu que o caso deveria ser julgado pela Justiça Militar, uma vez que os agentes não eram civis e teriam cometido o ato no exercício de suas funções. A acusação passou, então, a ficar sob a responsabilidade do Ministério Público do Estado de Roraima (MP-RR), em substituição ao MPF, voltando quase à estaca zero e reduzindo as chances de esclarecer o caso.

Em 2021, os dois policiais foram absolvidos, pois os testemunhos colhidos em juízo não confirmaram a participação dos agentes no ato, segundo a decisão. O garimpeiro e a passageira da canoa, que haviam relatado o caso em depoimento à Cipa (órgão da PM de Roraima), não foram ouvidos pela Justiça Militar, e o MP-RR não recorreu da decisão.

Em fevereiro deste ano, a TIY voltou a ser palco de ações de combate ao garimpo. A Operação Libertação, como é chamada a nova tentativa de retirada dos invasores do território, conta com a participação de agentes do Ibama, Funai, Força Nacional de Segurança Pública e Forças Armadas. A previsão de duração é entre seis meses e um ano.

O cenário na região, porém, é ainda mais grave do que no final de 2014. Estimulado pelo governo Bolsonaro, o garimpo ilegal explodiu nos últimos anos. Conforme a Repórter Brasil revelou, a atividade destruiu 1.226 hectares de floresta amazônica na TIY até 2022 e alcançou regiões que antes estavam intactas. Das 305 aldeias no território, 104 têm desmatamento por mineração a menos de 10 quilômetros.

A proximidade do garimpo provocou uma emergência de saúde pública entre os Yanomami. Só em 2022, foram registrados mais de 11 mil casos de malária. Cenas de crianças indígenas em estado grave de desnutrição, divulgadas pela Sumaúma, chocaram o país e correram o mundo. Os cerca de 20 mil garimpeiros que viviam ali começaram a deixar o território pelo mesmo rio Uraricoera onde, anos antes, uma canoa foi parada em uma operação de fiscalização.

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