Entidades denunciam fraude em leilões judiciais que tiram terras de agricultores em Pernambuco

Relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos corrobora suspeita de ‘lavagem de terras’ na região da Mata Sul do estado e chama atenção para possível participação de agentes públicos no esquema que beneficia empresários
Marília Parente
 20/04/2023

Com o olhar perdido, o agricultor Reginaldo Félix, de 44 anos, observa o horizonte dos canaviais enquanto tenta responder como as terras que herdou do pai foram vendidas sem seu aval. Em novembro de 2020, seu sítio Sicupira e todo o restante da área pertencente ao Engenho Fervedouro, na Zona da Mata de Pernambuco, foram a leilão sem que ele e as outras 71 famílias moradoras do local fossem consultadas ou recebessem qualquer benefício da venda.

A ordem partiu da Justiça Federal de Pernambuco, que determinou o leilão para saldar as dívidas da Usina Frei Caneca, à qual o engenho pertencia. Importante motor da economia da cana-de-açúcar na região da Mata Sul pernambucana, a Frei Caneca foi desativada no final dos anos 1990 sem acertar as contas com o fisco e com ex-funcionários. Seu patrimônio foi penhorado e colocado à venda para pagar os credores.

Engenho Fervedouro é local de moradia e trabalho de dezenas de famílias de pequenos agricultores que agora temem perder tudo (Foto: Marília Parente/Repórter Brasil)

Mas a Justiça ignorou a existência de agricultores como Reginaldo nas terras – fator agravado pelo fato de que eles estão ali porque seus familiares eram trabalhadores da Frei Caneca. O chão onde moram e de onde tiram o sustento foi dado como indenização quando a usina fechou as portas, dizem.

“Quando a Frei Caneca fechou, muitos camponeses receberam um documento assinado pelo proprietário, que não foi homologado em cartório, recebendo a posse das terras. Foi uma forma de não pagar os direitos trabalhistas aos antigos funcionários”, explica o presidente da Associação de Moradores do Engenho Fervedouro, Adriano Andrade, cujo pai, falecido aos 90, passou 70 anos da vida no lugar, à serviço da usina.

O pai de Reginaldo também era trabalhador da Frei Caneca; a família se mudou para a região três décadas atrás, quando ele era um menino. “Cheguei aqui com sete anos de idade, quando meu pai veio trabalhar na usina. Aí o dono liberou pra a gente plantar nessa grotinha”, explica.

Além de desconsiderar os atuais habitantes do engenho no processo – contrariando uma resolução do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que determina a “escuta e participação dos ocupantes” de áreas em litígio – a Justiça rebaixou o valor mínimo para venda de Fervedouro em duas oportunidades. Com isso, o negócio foi fechado por um preço 85% menor do que a avaliação original, feita em 2016, e incapaz de saldar as dívidas da usina.

Presidente da associação de moradores, Adriano Andrade garante que famílias receberam doação das terras dos antigos usineiros (Foto: Marília Parente/Repórter Brasil)

Uma situação que se repetiu em dezenas de leilões de engenhos realizados nos últimos anos na região – todos foram vendidos com valores depreciados e desconsiderando a existência de posseiros, que em sua maioria receberam as terras como indenização dos ex-patrões falidos.

Além disso, em muitos desses casos, os arrematantes são empresas ou pessoas conhecidas na região por usarem métodos violentos para expulsar essa população do local: são vários os relatos de jagunços que destroem plantações familiares, patrulhas feitas por homens armados, drones vigiando a movimentação dos moradores. Em 2022, um menino de 9 anos foi assassinado dentro de casa em um desses engenhos, em um ato associado pela Comissão Pastoral da Terra a essa realidade de expulsão e silenciamento dos moradores.

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Em uma missão em setembro do ano passado à região, o Conselho Nacional de Direitos Humanos reconheceu que o caso pode estar escondendo uma tentativa de lavagem de terras. “É uma forma de ‘limpar’ Engenhos e Usinas das suas dívidas”, sintetiza o relatório da missão, publicado em dezembro de 2022. De acordo com o texto, o esquema beneficia proprietários e ex-proprietários das empresas falidas, que via terceiros ou “laranjas” recompram os imóveis e se livram das dívidas – e “contaria com a possível participação de agentes públicos e políticos do estado de Pernambuco”.

Procurada, a Justiça Federal de Pernambuco (JFPE) disse apenas que “segue sempre os procedimentos judiciais vigentes” e que as razões que levaram à diminuição de valor constam nos autos do processo. A íntegra da manifestação pode ser lida aqui. A Repórter Brasil entrou em contato com o advogado que consta como representante de um dos sócios da usina Frei Caneca na Justiça do Trabalho, mas ele disse que não se manifestaria pois não representa a empresa. Ele também não forneceu nenhum contato alternativo. O espaço segue aberto para as manifestações e contrapontos.

CPT deu o alerta

O relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos corroborou uma suspeita levantada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) há mais tempo. Ao todo, cerca de 1.200 famílias agricultoras podem perder seus lares e lavouras em razão de leilões já promovidos ou ainda por realizar, segundo estimativa da entidade.

“Se você tem uma dívida de 1 milhão, mas todo o patrimônio foi avaliado em R$ 100 mil, tudo que você pode dar são esses R$ 100 mil. O resto dos credores vai sair frustrado. O que querem é repassar todos os imóveis a um preço muito baixo, se livrando da dívida ao demonstrar que todo o patrimônio que tinham foi vendido”, explica a advogada Mariana Vidal, do departamento jurídico da CPT.

“São muito fortes os indícios de fraudes. Sabemos que o interesse das empresas e dos fazendeiros da região é grande em obter aquelas terras e não podemos admitir que a cobiça desses grupos econômicos tenha o aval da Justiça por meio desses leilões manipulados”, corrobora a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape), que se manifestou em nota (íntegra aqui).

Agricultores se reuniram no final de 2022 com membros da Comissão Nacional de Direitos Humanos para relatar abusos e violência (Foto: Marília Parente/Repórter Brasil)

No caso do Engenho Fervedouro, por exemplo, o desconto de 85% sobre o valor inicial parece inexplicável para uma área cortada pela rodovia PE-126, que dá acesso a municípios vizinhos e, em menos de duas horas, desemboca no Porto de Suape, um dos principais terminais de carga e descarga do país. Além disso, a pecuária de corte está se estabelecendo com força por lá depois que a Masterboi inaugurou na região o maior frigorífico do nordeste – outro fator de recrudescimento da violência, como mostrou uma investigação da Repórter Brasil no ano passado.

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“Foi um valor muito abaixo do mercado”, alerta a advogada Luísa Duque, que integra o departamento jurídico da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que assessora os agricultores. Ela garante que nesta região o hectare custa, em média, de R$ 10 mil a R$ 15 mil. Mas os 527 hectares do Engenho Fervedouro foram arrematados por R$ 632 mil – o que dá pouco mais de mil reais por hectare. “Estamos falando de uma região cada vez mais valorizada, com fontes de água, próxima a estradas e do próprio Complexo de Suape”, complementa.

A primeira avaliação judicial de Fervedouro aconteceu em maio de 2016, quando a área de 527 hectares teve seu valor definido em R$ 4,2 milhões: cada hectare valia cerca de R$ 8 mil. Na ata, o oficial de Justiça Diego de Lima Ludgero destaca que o valor foi atribuído “com base no valor do hectare da região, considerando a localização e o acessos ao bem”.

Em 2020, o mesmo oficial de Justiça fez uma segunda avaliação do imóvel, rebaixando seu valor total para R$ 1,6 milhão – ou R$ 3 mil o hectare. Segundo anotou Ludgero, a razão para a revisão foi “o relevo acidentado da propriedade que dificulta seu aproveitamento” – condição que ele poderia ter observado na visita anterior ao local, mas não considerou relevante na ocasião. O preço de Fervedouro ainda cairia mais antes do martelo ser batido.

O relevo acidentado foi a mesma justificativa usada por Ludgero para reduzir os valores de venda dos engenhos de Laranjeiras e Várzea Velha, ambos também pertencentes à Usina Frei Caneca e que haviam sido avaliados inicialmente por outro oficial de Justiça. Os autos de reavaliação, assinados por Ludgero nos três casos, trazem um texto idêntico, e o valor atribuído, de R$ 3 mil o hectare, também. Além disso, os três imóveis teriam sido avaliados pelo oficial de Justiça em um mesmo dia – 10 de setembro – embora, juntos, somem uma área de mais de mil hectares (como se fossem mil campos de futebol enfileirados).

“O oficial fazer uma reavaliação é legal, porque realmente já havia se passado muito tempo desde a primeira, que foi em 2016. O que é muito estranho é que ele coloca tudo na mesma data e diminui os valores drasticamente e sem fundamentação plausível. O auto de reavaliação dos três imóveis é um copia e cola”, aponta Duque.

A Repórter Brasil solicitou à Justiça Federal esclarecimentos ou o contato de Diego de Lima Ludgero, mas a assessoria de comunicação apenas reiterou o conteúdo da manifestação do judiciário, que pode ser lida na íntegra aqui.

Juiz reduz em 40% valor já rebaixado

Com os valores depreciados pela segunda avaliação, os três antigos imóveis da Usina Frei Caneca foram a leilão, mas apesar do preço vantajoso do hectare, não apareceram interessados nas áreas. “Impressiona porque essa é uma região muito disputada”, ressalta a advogada da CPT.

Na segunda praça – quando os bens foram novamente ofertados – nova surpresa: o juiz Tarcísio Correa Monte, da 26ª Vara da Justiça Federal, autorizou que os imóveis fossem arrematados por até 40% do preço da segunda avaliação. É uma prerrogativa dada ao magistrado pelo Código de Processo Civil, desde que não haja valor mínimo do bem previamente estipulado, o que era o caso.

Desta forma, o Engenho Fervedouro, reavaliado em R$ 1,6 milhão, terminou sendo arrematado por R$ 632 mil, enquanto o Engenho Várzea Velha, avaliado em 1,5 milhão foi comprado por R$ 602 mil e o Laranjeiras, que valia pelo menos R$ 624 mil foi arrematado por R$ 249 mil.

Juntos, os valores obtidos nos leilões das três propriedades da antiga Usina Frei Caneca, não chegam a R$ 1,5 milhão. O montante é muito menor do que a dívida da empresa com a União, de quase R$ 90 milhões. “O que se espera de um devedor é que ele pague pelos imóveis ao melhor valor para que a dívida seja satisfeita. O estado está sendo lesado”, conclui Luísa Duque.

A 26ª Vara Federal, que determinou os leilões, não enviou comentários sobre as decisões do juiz especificamente. A íntegra da nota da justiça pode ser lida aqui.

Novos ou antigos donos

Reforça a desconfiança dos moradores dos engenhos, de que se trata de um negócio de cartas marcadas, o fato de que Fervedouro, Várzea Velha e Laranjeiras tenham sido adquiridos por uma mesma pessoa. Eduardo Jorge Vieira de Lima é sócio de pelo menos três empresas voltadas à criação de bovinos e atividades agropecuárias, que é o novo negócio da moda na região.

Nos processos de execução fiscal que levaram aos leilões, o empresário é representado pelo advogado Júlio César de Andrade, que defende, em outras ações judiciais, a Usina Estreliana, outra usina que está em processo falimentar na região.

A Usina Estreliana, por sua vez, também é cliente do escritório “Advocacia de Massa e Cobrança Maria Fernanda Vilela & Advogados”, cujos sócios também já trabalharam para a Negócio Imobiliária S/A – que desde 2017 é arrendatária de terras da Usina Frei Caneca.

Já a Negócio Imobiliária mudou de nome e agora se chama Agropecuária Mata Sul, firma do empresário José Syllio Diniz de Araújo, que comprou nos leilões os engenhos Taquara e Universo, localizados nos municípios de Ribeirão e Escada, respectivamente. Compras nos leilões também foram executadas diretamente pela pessoa jurídica da empresa.

Todos os advogados foram contatados por e-mail e telefone pela Repórter Brasil para solicitar seus contrapontos e de seus clientes, mas nenhum retornou os pedidos de esclarecimentos. O espaço permanece aberto.

Desde a chegada dos arrendatários na área de Fervedouro, camponeses denunciam uma série de violações de direitos humanos, a exemplo de atropelamentos, chuvas de agrotóxicos sobre as lavouras, vigilância constante com drones, emboscadas à mão armada, destruição de fontes d’água, ameaças e perseguições, além de esbulho de suas posses, por meio do cercamento das terras. A Repórter Brasil teve acesso a pelo menos nove boletins de ocorrência registrados contra a Agropecuária Mata Sul, a Negócio Imobiliária e a empresa de segurança privada Tróia, acusada de promover ameaças à mão armada contra os trabalhadores, bem como de instalar câmeras no Engenho Fervedouro para controlar os deslocamentos dos moradores.

Camponeses denunciam que violência se multiplicou após chegada dos arrendatários das terras de usinas desativadas e falidas (Foto: Marília Parente/Repórter Brasil)

“Meu sítio foi destruído três vezes em dois anos. Primeiro, despejaram veneno nas terras usando um helicóptero. Depois, derrubaram a lavoura. E recentemente, no dia quatro de agosto, usaram um drone pra despejar os agrotóxicos”, relata Reginaldo Félix.

No último ataque, o camponês perdeu cerca de mil pés de bananeira, trinta pés de cajá e dez pés de manga, dentre outras culturas. “Também acabaram com a fonte de água do sítio, que ficou toda amarela por causa do veneno. Agora, só daqui a quatro ou cinco anos para recuperar tudo, começar do zero de novo. O ‘caba’ não vive mais sossegado, né? Destruiu nossa renda”, lamenta Reginaldo. 

Segundo informou o governo de Pernambuco em setembro de 2022, Fervedouro, Laranjeiras e Várzea Velha, em Jaqueira, estão listados como “áreas prioritárias passíveis de desapropriação na Zona da Mata Sul”, mas a gestão que assumiu em 1º de janeiro informou, por telefone, que não iria comentar a questão.


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