Camponeses baleados no oeste da Bahia denunciam grilagem de terras

No último ano, ao menos seis pessoas foram alvejadas ou tiveram suas casas destruídas em quatro comunidades visitadas pela Repórter Brasil, ataques atribuídos a grileiros
Por Repórter Brasil | Fotos: Fernando Martinho/Repórter Brasil/WAP
 24/09/2023

Uma escalada de violência contra comunidades tradicionais do oeste da Bahia fez, no último ano, pelo menos seis vítimas em quatro vilarejos diferentes, segundo relatos colhidos pela Repórter Brasil em uma incursão de duas semanas na região. Os conflitos são motivados pelo avanço do agronegócio na área conhecida como Matopiba – sigla formada pelas iniciais dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que têm parte de seus territórios como principal eixo da nova fronteira agrícola brasileira.

Em abril de 2023, quatro homens foram baleados quando retornavam para suas casas na comunidade rural do Cupim. Uma das vítimas ainda tem a bala alojada no corpo. Em outubro do ano passado, outro morador do Cupim sofreu uma emboscada – e por isso, só sai de casa com colete à prova de balas.

Na comunidade de São Marcelo, uma casa foi incendiada em julho do ano passado. E, no Arroz de Salú, moradores dizem ter sido torturados por policiais a mando de fazendeiros, em 2021. Em todas essas localidades, os habitantes apontam vigilância permanente por parte dos agressores.

Formalmente chamadas de comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, esses grupos relatam estarem estabelecidos há séculos na região. Seu modo de vida tradicional inclui levar rebanhos de subsistência para pastar em áreas de vegetação intocada do sertão baiano que eles chamam de “gerais” – daí se auto-identificarem como “geraizeiros”. Mas essas terras passaram a ser cobiçadas com a expansão veloz das lavouras na região. Enquanto a área de soja cultivada em todo o Cerrado brasileiro (incluindo Mato Grosso, o maior produtor nacional de grãos) cresceu 170% entre 2000 e  2021, no Matopiba, o salto proporcional foi cinco vezes maior.

Com isso, muitas fazendas acabaram registradas irregularmente dentro do perímetro dos territórios pleiteados por comunidades tradicionais. Recentemente, a Procuradoria Geral do Estado da Bahia conseguiu bloquear as matrículas de 19 propriedades rurais que incidiam sobre a área da comunidade do Capão do Modesto – “um dos casos mais graves de grilagem na Bahia”, segundo o órgão. Nesta localidade, nossa reportagem ouviu relatos de um atentado a facão e ameaças.

Desmatamento avança no bioma

O modo de vida centenário das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto ajuda a preservar o Cerrado, que está ameaçado. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), nos primeiros seis meses de 2023 o desmatamento no Cerrado cresceu 21% – sendo que três quartos dessa destruição aconteceu no Matopiba.

Enquanto a área de soja cultivada em todo o Cerrado brasileiro cresceu 170% entre 2000 e 2021, no Matopiba, o salto proporcional foi cinco vezes maior

Quando levado para os retiros, o gado criado pelos camponeses se alimenta de capim dourado e outras plantas nativas nas “gerais”, e têm a seu dispor água abundante das veredas. Estudos apontam que esta é  uma pecuária de baixíssimo impacto ambiental.

“As comunidades de Fundo e Fecho de Pasto atuam como guardiães de uma área do Cerrado. A presença delas na região é benéfica para toda a sociedade”, afirma Cloves dos Santos Araújo, professor de Direito da Universidade Estadual da Bahia. “A área permanece intacta, sem desmatamento”, completa.

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Mas as áreas de pasto coletivos são afastadas, podem estar a 20 quilômetros de distância das vilas onde a comunidade mora. O gado é “tocado” por estradas de areia e terra por horas até chegar ao local do pastoreio. É neste trajeto que os ataques e ameaças acontecem, o que tem levado a uma mudança nos hábitos tradicionais. No Cupim, por exemplo, os moradores relatam que deixaram de usar o pasto coletivo por medo.

Justiça e polícia agem para frear violência

A Constituição da Bahia reconhece o direito à posse das terras para os moradores de Fundos e Fechos de Pasto. Em 2021, o governo do Estado certificou 146 destes territórios. Mas as áreas visitadas pela Repórter Brasil ficaram de fora da lista, o que as deixa mais expostas à violência agrária. “A maior parte das terras do oeste da Bahia são devolutas [terras públicas sem destinação], e neste cenário, com o Estado sem atuar, a grilagem se prolifera”, afirma o professor Araújo.

As áreas de pasto coletivo, uma das marcas das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, são distantes das vilas de moradores. É neste trajeto que as ameaças acontecem

Ações policiais e decisões da Justiça recentes trazem algum alívio para as comunidades no plano institucional. Além do bloqueio das matrículas de fazendas que incidem irregularmente sobre a comunidade do Capão do Modesto, em abril o TJ da Bahia proibiu uma empresa agrícola de bloquear a passagem de moradores da vila de São Marcelo até sua área de pasto, que é reivindicada pela companhia. Em julho, a Polícia Civil prendeu sete suspeitos e apreendeu 13 armas de fogo em duas fazendas suspeitas de promover os ataques ao Fecho de Pasto do Cupim.

Este especial da Repórter Brasil dá voz aos camponeses, que contam como se equilibram entre a violência sofrida e a resistência. “Os caras que moram longe vem querer desalojar os pobres ribeirinhos. Vocês acham que não é triste não, gente?”, indaga Amarolina Alves da Chaga, moradora septuagenária da comunidade de São Marcelo.


Leia os relatos de cada comunidade:

Sobrevivente de emboscada se protege usando colete a prova de balas: ‘estou sozinho aqui’

Empresa instala guarita com cancela e afasta camponeses de seu território tradicional

PGE aponta grilagem verde em área onde vive comunidade Capão do Modesto

Disputa por território se arrasta por 40 anos na Justiça e Arroz de Salú sofre com violência


Expediente Faroeste Baiano

Reportagem: Gil Alessi
Fotografia: Fernando Martinho
Edição e checagem: Naira Hofmeister
Pesquisa: André Campos e Poliana Dallabrida
Coordenação: André Campos
Redes sociais: Tamyres Matos e Beatriz Vitória

Este especial foi produzido com o apoio da World Animal Protection (WAP)


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