PGE aponta grilagem verde em área onde vive comunidade Capão do Modesto

Em maio, 19 fazendas tiveram suas matrículas bloqueadas por incidir sobre território tradicional, mas conflito está longe de acabar. Uma das propriedades fornece soja para multinacionais
Por Gil Alessi
 24/09/2023

Na comunidade do Capão do Modesto, em Correntina, oeste da Bahia, terras utilizadas por famílias de camponeses estão na mira de proprietários rurais que, tendo desmatado inteiramente suas fazendas, querem fazer dos pastos comunais uma área de compensação ambiental. Organizações de direitos humanos apontam o caso como um típico exemplo de um conflito em escalada na região: a chamada “grilagem verde”.

De acordo com a legislação brasileira, fazendas no bioma Cerrado precisam preservar 20% da vegetação nativa intacta – a chamada reserva legal. Quando isso não ocorre, o proprietário pode adquirir outras terras para fazer essa compensação ambiental. Isso é legal, quando feito corretamente.

Mas em Capão do Modesto, a compensação ambiental tem levado à apropriação de terras tradicionais, segundo a Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE). O processo é carregado de violência e traz prejuízo ao modo de vida tradicional, denunciam os camponeses. “Sem o pasto comunitário, estamos presos, perdemos nossa liberdade”, explica Adriano*, liderança comunitária que relatou ter recebido uma ameaça feita por homens armados em motos na semana anterior à entrevista para a Repórter Brasil.

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Uma dessas propriedades sobrepostas às áreas em disputa é a Fazenda Dourados, de Dino Rômulo Faccioni. Ela serve de compensação de reserva legal para o complexo GBC, que inclui as fazendas GBC, GBC I, GBC II e Conquista, e que foi praticamente todo desmatado, segundo registrado no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A Repórter Brasil visitou o complexo no final de junho de 2023 e encontrou uma lavoura de sorgo e restos de milho recém-colhido. Há pelo menos sete silos em duas áreas das propriedades agrícolas.

Complexo de fazendas GBC foi quase inteiramente desmatado para o cultivo de grãos e área destinada à reserva legal da propriedade está sobreposta a território em disputa (Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil / WAP)

Em um processo em que pede o bloqueio das matrículas das propriedades sobrepostas ao Capão do Modesto, a PGE da Bahia conclui que a violência contra a comunidade ocorre “a mando de Faccioni” e de uma empresa de produção de sementes. O órgão estadual também estranha “a quantidade de desmembramentos, além das transmissões das áreas cujos titulares são Dino Rômulo Faccioni e [sua esposa] Roseli Faccioni”, referindo-se a alterações nos títulos de posse das fazendas, conforme a Agência Pública, que acessou a  íntegra da ação judicial. O casal registrou em seu nome e no nome de dois filhos pelo menos 12,5 mil hectares de terras distribuídos em três municípios da região: São Desidério, Correntina e Luis Eduardo Magalhães.

Segundo Adriano*, há pressão para que a comunidade assine documentos que garantam a posse das terras para os invasores. “Estamos monitorados 24 horas por dia. Eles têm olheiros, pistoleiros e informantes”, afirma. Relatos semelhantes ocorrem em outras comunidades tradicionais da região.

Procurado pela Repórter Brasil, Dino Faccioni disse que está na área há mais de 30 anos e que nunca soube que houvesse “posseiros” na região. Também afirmou que não usou ou autorizou uso de violência. “Sempre em minha vida pautei pelo justo e correto e jamais tive interesse em prejudicar alguém”, explicou. A íntegra pode ser lida aqui.

Conflito respinga em gigantes do agronegócio

Em maio deste ano, a Justiça deu parecer favorável para os moradores, e bloqueou a matrícula de 19 propriedades que incidem sobre o terreno coletivo, incluindo a Fazenda Dourados. Segundo a Agência Pública, a PGE vê “indícios robustos de grilagem” no caso e aponta “a origem irregular dos títulos” de terra que os fazendeiros utilizam para reivindicar a posse.

Em novembro de 2021, Dino Faccioni declarou à Global Witness que parte de sua produção é vendida para as multinacionais ADM e Bunge – esta empresa, por sua vez é uma das principais fornecedoras de farelo de soja para a Seara, braço aviário da gigante JBS, conforme mostrou a Repórter Brasil no ano passado.

Envolvidos no conflito fundiário, como Dino Faccioni, fornecem grãos para gigantes do agronegócio como ADM e Bunge, apontam investigações (Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil / WAP)

A Bunge opera uma unidade esmagadora de soja no município de Luis Eduardo Magalhães, perto das operações agrícolas de Dino Faccioni. Funcionários da empresa e caminhoneiros consultados na região confirmaram o envio de cargas regulares da fazenda GBC para a Bunge de Luís Eduardo Magalhães, e farelo de soja de lá para para a Seara de Feira de Santana (BA). “Chega durante toda a época da safra”, ilustrou um empregado da Bunge em Luis Eduardo Magalhães.

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Em nota, a Bunge informou que “alegações plausíveis de abuso aos direitos humanos ou outras formas de exploração não são toleradas”, e que “fazendas que forem identificadas pelas autoridades como envolvidas em casos de abuso aos direitos humanos são imediatamente bloqueadas em nossa cadeia de suprimentos”. Ela não informou se Faccioni foi ou será bloqueado.

A JBS apenas disse que a fazenda GBC não é fornecedora do frigorífico, sem detalhar se se refere a uma relação direta ou indireta de fornecimento – por exemplo, através da Bunge. A JBS tampouco comentou sua relação com a trading mundial de grãos. 

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Dino Faccioni não comentou relação específica com nenhuma das companhias, mas informou que vende “soja e milho para diversas empresas”. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.

Segundo moradores, há pressão para que a comunidade assine documentos que garantam a posse da terra aos invasores (Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil / WAP)

Enquanto aguardam os próximos capítulos judiciais do imbróglio, os moradores seguem relatando encontros tensos na região. “Outro dia fui ali nas gerais pegar o gado e cruzei com pistoleiros que me perguntaram de onde eu vinha e disseram que era proibido andar por lá”, prossegue. “Eu disse ‘moço, eu passo aqui desde criança. Essa terra é nossa’”, observa Adriano*.

“Parece que cada vez esse pessoal tá com mais raiva das comunidades”, concluI.

* nome alterado para preservar a identidade do camponês


Expediente Faroeste Baiano
Reportagem: Gil Alessi
Fotografia: Fernando Martinho
Edição e checagem: Naira Hofmeister
Pesquisa: André Campos e Poliana Dallabrida
Coordenação: André Campos
Redes sociais: Tamyres Matos e Beatriz Vitória

Este especial foi produzido com o apoio da World Animal Protection (WAP)


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Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil / WAP