As filiais brasileiras das seguradoras Sompo, do Japão, e Mapfre, da Espanha, assinaram contratos para cobrir perdas em lavouras cultivadas por não-indígenas dentro da Terra Indígena (TI) Ivaí, no Paraná, segundo dados divulgados pelo Ministério da Agricultura com as coordenadas geográficas das áreas seguradas.
As apólices de seguro rural foram parcialmente pagas com dinheiro público, por meio do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), mantido pelo Ministério da Agricultura. Através dele, produtores rurais obtêm auxílio do governo para proteger seus plantios de perdas decorrentes de fenômenos climáticos adversos, como secas ou geadas.
Os contratos foram assinados em 2020 com dois produtores que, sete anos antes, foram incluídos em uma lista de arrendatários não-indígenas em uma ação judicial movida pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O processo apontava que dos 7 mil hectares do território onde vivem indígenas Kaingang, Guarani e Xetá, 1,2 mil hectares eram cultivados ilegalmente por pessoas externas à comunidade, por meio de arrendamentos considerados ilegais. Em 2014, a Justiça já havia determinado a retirada dos invasores do local.
Situada entre os municípios de Pitanga e Manoel Ribas, a TI Ivaí é homologada desde 1992 e, nesse caso, a produção agropecuária de não-indígenas é proibida.
Procurado, Jeverson Willemann – um dos produtores beneficiados pelo seguro agrícola – admitiu o plantio em terra indígena no passado, mas disse que já não produz nesta área, apesar da coordenada geográfica do seguro agrícola contratado com a Sompo estar dentro dos limites da TI. “Eu não tenho terra própria, mas faço contratos com outras pessoas e planto na terra deles. É perto, mas não entra [nos limites da TI Ivaí]”, diz ele.
Já a seguradora Sompo não comentou o caso específico e tampouco explicou porque as coordenadas geográficas da apólice incidem dentro do território indígena. A informação, divulgada pelo Ministério da Agricultura, baseia-se em dados repassados pela própria seguradora ao órgão. Apesar disso, a empresa informou à Repórter Brasil que recusa qualquer proposta de seguro de plantações que, no ato da avaliação, sejam identificadas como sobrepostas a áreas indígenas.
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Num outro caso, o produtor Márcio Marcelino firmou quatro contratos com a seguradora espanhola Mapfre para proteger um total de 106 hectares de trigo entre abril e outubro de 2020. As coordenadas das lavouras informadas ao Ministério da Agricultura estavam todas sobrepostas à terra indígena.
O produtor não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil até o fechamento desta reportagem. A Mapfre, por sua vez, informou que o caso está em apuração interna, e que, se confirmadas as alegações, serão tomadas medidas “apropriadas e cabíveis”.
Também procurado, o Ministério da Agricultura afirmou que “está em fase de testes” um sistema de verificação socioambiental para checar se o dinheiro público está sendo corretamente aplicado. A iniciativa irá cruzar informações de bases de dados públicas – como, por exemplo, sobre as áreas indígenas do Brasil – e a expectativa é que ela seja “concluída e disponibilizada no ano de 2024”. A pasta informou que não tinha conhecimento dos casos relatados nesta reportagem.
Já a Funai confirmou que o cultivo de trigo por não-índios dentro da TI Ivaí é ilegal, e que possíveis contratos de arrendamentos devem ser considerados nulos. A íntegra de todas as respostas pode ser lida aqui.
Seguros para fazendas em área em disputa
Num outro caso identificado pela Repórter Brasil, dois produtores conseguiram seguros rurais com subvenção estatal para áreas localizadas dentro da Terra Indígena Guyraroká, território habitado pelas etnias Guarani e Kaiowá em Caarapó, no Mato Grosso do Sul.
Essa TI não teve ainda seu processo de homologação concluído. Ela foi delimitada pela Funai em 2004 e declarada como de ocupação tradicional indígena pelo Ministério da Justiça em 2009, mas uma ação judicial movida por um fazendeiro da região conseguiu anular a demarcação em 2014. A decisão, no entanto, foi revertida em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – o que abriu caminho para a conclusão do processo de demarcação.
Mesmo sem a homologação definitiva, segundo a Funai, atividades agrícolas devem ser suspensas nas etapas de identificação e demarcação de territórios indígenas. “Áreas em processo de regularização fundiária devem ser suspensas [em] seu uso, sendo que caso se confirme como terra indígena, o ocupante não indígena será indenizado se comprovada boa fé”, afirma o órgão.
Em 2020, o casal Bernardino Franco e Luiza das Dores Guinami Franco, donos da Fazenda Santa Cecília, assinou dois contratos de seguro com a Brasilseg e um outro contrato com a canadense Fairfax cujas coordenadas geográficas incidem sobre a TI. Na ocasião, a demarcação ainda estava suspensa por decisão judicial.
Mas outros quatro contratos com a Brasilseg foram assinados depois da decisão do STF que reconheceu o direito dos indígenas – os últimos já em 2023. A Brasilseg, fruto de uma parceria entre Mapfre e a BB Seguros, empresa de capital aberto do Banco do Brasil, detém quase 20% do mercado de seguros no país.
Leia o relatório completo “Irregularidades Seguradas”
Bernardino Franco e a Fazenda Santa Cecília aparecem no relatório de identificação da TI, de 2004. O levantamento fundiário diz que o produtor é ocupante da área há cerca de 32 anos.
A reportagem tentou contato com os produtores Bernardinho e Luiza Franco, mas recebeu uma mensagem por e-mail, assinada por uma pessoa que se identificou como filho do casal, informando que Bernardino Franco é falecido e que Luzia Franco “é idosa e não participa ativa/e dos negócios”. Ele disse não haver interesse da família em comentar o assunto.
A seguradora Brasilseg afirmou que “possui processos de monitoramento e análise de riscos com uso de tecnologia de ponta e especialistas de campo” e que “repudia e não admite quaisquer iniciativas que impliquem violação aos direitos humanos ou prática de crime ambiental”. Já a Fairfax se limitou a dizer levar em consideração “questões sócio-ambientais” no processo de subscrição ao seguro rural, mas que está proibida de falar sobre situações envolvendo dados pessoais de seus segurados. Leia as respostas, na íntegra, aqui.
Indígenas vivem em “confinamento territorial”, diz CIDH
Segundo Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e dos indígenas que vivem na TI Guyraroká, os casos revelam lacunas de monitoramento de gigantes multinacionais da área de seguro que operam no Brasil, assim como do próprio governo federal, que subsidia as apólices sem verificar a regularidade socioambiental das fazendas beneficiadas. “A oferta de seguros nessas áreas está sendo feita contra a previsão legal e constitucional. Fazendeiros estão utilizando subsídio do governo, pagando menos pelo seguro, e fazendo uso indevido de terras indígenas”, condena.
Para Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Dourados, no Mato Grosso do Sul, segurar lavouras em terras indígenas, ainda que em processo de demarcação, também lança dúvidas sobre as políticas de sustentabilidade das próprias empresas seguradoras. “Não é coerente com padrões legislativos e corporativos internacionais, especialmente de instituições que se comprometem a cumprir a Convenção 169 e a seguir princípios de ESG [sigla para Ambiental, Social e de Governança]”, observou Almeida em reportagem publicada pela Repórter Brasil que identificou problemas semelhantes em seguros concedidos pela multinacional suíça Swiss Re.
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Em 2015, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos classificou a situação dos povos Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul como uma “grave situação humanitária” em razão do “confinamento territorial” a que estão expostos: “apesar de corresponder à segunda maior população indígena do país, 80% de sua população vive em menos de 27 mil hectares há mais de 100 anos”, pontuou a CIDH em um relatório. Em 2019, a comissão solicitou ao Estado brasileiro que tomasse medidas para garantir a integridade pessoal e o direito à vida dos integrantes da TI Guyraroká.