QUATRO MESES depois de o governo federal anunciar a retirada dos ocupantes irregulares da Terra Indígena Apyterewa, no sul do Pará, um grupo do povo Parakanã denuncia ter sido ameaçado e mantido refém por dez pistoleiros.
Eles estavam colhendo cacau no dia 10 de julho quando afirmam ter sido abordados por homens fortemente armados, com rostos cobertos por capuzes. Antes da remoção dos não-indígenas, a área era uma fazenda ilegal.
Ainda segundo o relato dos Parakanã, os pistoleiros teriam fugido antes de os servidores da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) chegarem ao local, acompanhados por uma equipe da Polícia Federal e por agentes da Força Nacional. “Eles agrediram, humilharam e gritaram com os parentes, dizendo que a terra era deles”, relatou à Repórter Brasil uma das lideranças do povo Parakanã.
A Apyterewa é reconhecida como território indígena desde 1982, mas foi homologada apenas em 2007. Mesmo antes da homologação, o território já convivia com invasões, situação agravada nos últimos anos. Com 773 mil hectares de área, o equivalente a cinco municípios de São Paulo, a Apyterewa teve cerca de 100 mil hectares destruídos, tornando-se a terra indígena mais desmatada do Brasil.
A floresta foi devastada, principalmente, para a criação de gado, mas também para a plantação de cacau na porção do território próximo ao rio Xingu. A operação de desintrusão (retirada dos ocupantes irregulares), realizada pelo governo federal após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), teve início em outubro de 2023 e foi concluída em fevereiro deste ano.
Os indígenas reclamam da falta de forças de segurança nas três bases da Funai que circundam o território. A proteção policial, segundo eles, é fundamental para evitar que a Apyterewa seja novamente invadida.
A Funai confirmou que recebeu a denúncia sobre o ataque de pistoleiros e que servidores foram ao local acompanhados da Polícia Federal e da Força Nacional. O órgão não respondeu ao questionamento sobre a falta de efetivo policial nas bases.
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Insegurança persistente
Uma equipe da Polícia Federal acompanhou os servidores da Funai até o local onde teria acontecido o ataque, mas afirma não ter encontrado vestígio da situação descrita pelos indígenas. A denúncia foi considerada improcedente e não foi aberto inquérito, de acordo com a PF.
Na quarta-feira (17), a Associação Indígena Tato’a, que representa o povo Parakanã, enviou uma denúncia por escrito à Secretaria-Geral da Presidência da República, ao Ministério dos Povos Indígenas, à Funai, ao Ministério da Justiça e ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente). O documento relata a situação de “insegurança persistente” na TI Apyterewa e solicita a realização de uma reunião de emergência.
O ofício informa que o ataque de pistoleiros aconteceu no dia 10 de julho e foi precedido de outros episódios de violência. Segundo a associação, demonstram a falta de segurança do território e o acirramento das tensões.
Uma semana antes, jovens Parakanã estavam caçando, quando se depararam com um grupo de não-indígenas em um acampamento, resultando em troca de tiros. Quatro dias depois, invasores furtaram três cascos de barcos, além de três motores usados em expedições regulares de caça pelos indígenas.
Ainda segundo o ofício, no dia 09 de julho, um grupo de indígenas acompanhados de servidores da Funai encontrou acampados dentro da terra indígena e houve uma discussão com agressões verbais.
Na denúncia, a associação relata que o território tem sido invadido com frequência para a colheita do cacau e que a região concentra grande quantidade de lavouras. “O alto valor de mercado do produto tem incentivado a ocupação não-índigena e dificultado a implementação de ações de reocupação pelo povo parakanã”, diz trecho do documento.
Os órgãos do governo responderam a denúncia e entraram em contato com a associação, mas não definiram a data da reunião por enquanto.
Para Tarcísio Feitosa, articulador da coalizão internacional Florestas & Finanças, que acompanha a situação da Apyterewa, os Parakanã seguem sem poder usufruir do território devido à presença de não-indígenas, mesmo após o governo federal ter concluído o processo de desintrusão. “Há 35 anos o estado brasileiro não deixa que eles usem a própria casa”, afirma Feitosa.
A coalizão Floresta & Finanças analisa investimentos de instituições financeiras em commodities com risco de desmatamento e apoia o Parakanã nas cobranças para reflorestar a Apyterewa.
Em abril, lideranças do povo Parakanã cobraram o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) pelo desmatamento causado pela criação ilegal de gado dentro da área e pediram que a instituição arque com os custos da recuperação florestal.
O banco estatal é cobrado por ser o segundo maior acionista do frigorífico JBS, com 20,81% de participação. Controlada pela holding dos irmãos Joesley e Wesley Batista, a empresa recebeu animais de pastagens ilegais abertas na Apyterewa, conforme mostraram investigações da Repórter Brasil.
As matérias revelaram estratégias usadas por criadores de bois para driblar as políticas de frigoríficos que restringem a compra de animais oriundos de locais proibidos, como terras indígenas e reservas ambientais.
Em nota enviada pela assessoria de imprensa, na época da publicação da reportagem, a JBS afirmou que bloqueou em 2022 as fazendas localizadas no interior da TI Apyterewa, apontadas como fornecedoras da empresa. Segundo a companhia, a rastreabilidade dos bois é um desafio de todo o setor. A JBS diz estudar o tema há 15 anos e defende a implantação de um programa nacional para tratar da questão.
Operação de guerra
Em outubro de 2023, a equipe da Repórter Brasil acompanhou o início da operação de desintrusão da terra indígena. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal obrigou o governo federal a preparar uma operação de guerra para expulsar os invasores.
Durante a operação de desintrusão, políticos bolsonaristas e também aliados do governador Helder Barbalho (MDB), apoiador do presidente Lula (PT), pressionaram para que a operação fosse abortada.
No momento de maior tensão, a Força Nacional matou um dos invasores com um tiro de fuzil. O episódio quase levou ao fim da operação, gerando uma disputa entre Flávio Dino, então ministro da Justiça, e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
A tensão, contudo, permaneceu. Áudios atribuídos a um grupo de WhatsApp chamado “Máfia da Tora” revelam dois homens conversando sobre a compra de armas que seriam usadas contra agentes da Força Nacional e de outros órgãos envolvidos na desintrusão. “A vontade que dá é estar bem localizado com uma [arma] 357, entendeu, ‘catar’ um por um e dar na cabeça, um satanás desse aí”, afirmou um deles.
A operação seguiu com a saída de cerca de 60 mil cabeças de gado da terra indígena e dos invasores, que se concentravam, principalmente, na Vila Renascer. O local tinha cerca de 2.000 moradores, que construíram suas casas a partir de 2016, vizinha a uma base de operações da Funai. Todas as residências foram destruídas.
Em março, uma comitiva do governo federal foi à Terra Indígena para uma cerimônia para celebrar o encerramento da operação de retirada dos invasores. Na ocasião, a ministra Sônia Guajajara assinou uma carta de compromisso para a implantação de um Plano de Gestão Ambiental e Territorial que prevê recursos de R$1,5 milhão para as ações na TI.
Procurado para detalhar o plano e se há recursos previstos para a recuperação da área, o Ministério dos Povos Indígenas disse que participa do plano de recuperação promovido pela Associação Tato’a e que, para isso, R$ 1,5 milhão serão arrecadados em acordos de cooperação internacional.
Nota da redação: a matéria foi atualizada às 12h30 do dia 19 de julho para incluir posicionamento da JBS.
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