Trabalho escravo

Contrariando resolução nacional, PM fala em deportação de bolivianos libertados de trabalho escravo

Norma prevê que estrangeiros em situação vulnerável devem ser amparados. Fiscalização teme que informação equivocada gere pânico e desestimule novas denúncias
Por Stefano Wrobleski
 17/10/2014

Após a libertação de quinze bolivianos que trabalhavam como escravos em uma oficina de costura em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, Mauro Rocha de Oliveira, o 1º tenente da Polícia Militar (PM) de São Paulo que comandou a operação, afirmou que os que estivessem em situação irregular poderiam ser deportados. A declaração foi dada em entrevista à Globo News (clique aqui para assistir ao vídeo).

A informação contraria a Resolução Normativa 93 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que determina que trabalhadores imigrantes em situação vulnerável devem ser amparados pelas autoridades, podendo inclusive requerer o visto de permanência no Brasil. Tal norma foi criada em 2010 justamente porque muitos estrangeiros vítimas de tráfico de pessoas e trabalho escravo deixam de denunciar seus exploradores por temerem ser forçados a deixar o país ao contatar autoridades brasileiras. A garantia de proteção para quem está vulnerável visa fortalecer denúncias e preservar direitos básicos dos que foram submetidos à exploração.

Oficina onde vítimas trabalhavam Oficina em São Paulo onde bolivianos trabalhavam (Foto: Reprodução/GloboNews)
Oficina onde vítimas bolivianas trabalhavam. Elas relataram jornadas de mais de 16 horas com salários e retenção de documentos. Libertação aconteceu no último domingo, dia 12. Foto: Reprodução/GloboNews

A Repórter Brasil procurou as assessorias de imprensa da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para ouvir representantes da instituição sobre o caso, mas a reportagem foi orientada a procurar a Polícia Federal, para onde os trabalhadores resgatados foram encaminhados. De Brasília, o chefe nacional do Serviço de Repressão ao Trabalho Forçado da PF, delegado Érico Barboza Alves, afirmou que a informação divulgada pela PM está equivocada e garantiu que as vítimas não correm o risco de serem forçadas a deixar o país. “Se for verificada a condição de escravidão, existe um amparo que é feito, independente de ser estrangeiro ou não”, afirma, garantindo que os trabalhadores em questão não terão de pagar qualquer multa.

A reportagem tentou por três dias também contato com o delegado da Polícia Federal que ficou diretamente responsável pela ocorrência, mas a assessoria de imprensa da instituição em São Paulo não informou seu nome e disse que não seria possível entrevistá-lo. A PF afirmou que todos os trabalhadores vítimas de escravidão foram liberados após prestar depoimento e que foi aberto um inquérito para apurar o caso, que é de competência federal por envolver estrangeiros. As vítimas disseram que trabalhavam 16 horas por dia e recebiam somente 500 reais por mês. Além disso, relataram também a retenção de documentos, o que as impedia de sair do local.

Despreparo
O posicionamento institucional do representante da Polícia Militar preocupa as autoridades responsáveis pelas políticas nacionais de combate à escravidão. “Imagine os bolivianos que estão vendo a TV. Já pensou o pânico desnecessário? É uma informação errada que o policial militar passou na TV”, ponderou o auditor fiscal do trabalho Renato Bignami, que coordena o Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) – braço paulista do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Imagine os bolivianos que estão vendo a TV. Já pensou o pânico desnecessário?

De acordo com a Polícia Federal, o MTE será chamado para se colocar sobre o caso durante as investigações do inquérito. “Infelizmente, como a SRTE apenas soube do caso posteriormente e pela imprensa, não pôde atuar porque o flagrante já havia sido desnaturado”, disse Renato. O auditor do trabalho explica que, sem a atuação da repartição no momento da fiscalização, as vítimas passam por uma “dificuldade adicional” para receber seus direitos trabalhistas, como verbas de seguro desemprego e do fundo de garantia (FGTS). Dentre outros, esses valores são garantidos a vítimas de trabalho escravo em libertações feitas com participação de auditores fiscais.

Sem o mapeamento da cadeia produtiva indicando quem se beneficia da produção, a equipe do 39º Batalhão da Polícia Militar que efetuou o resgate limitou-se a prender um dos bolivianos, que foi considerado o responsável pela situação dos demais imigrantes. Sua detenção aconteceu com base no artigo 149 do Código Penal, que tipifica o crime de trabalho escravo e prevê pena de dois a oito anos de prisão. O representante do MTE lamentou que a falta de informações sobre a produção em si impossibilitou a punição dos demais responsáveis pela situação encontrada. “Não há a responsabilização civil e trabalhista de eventuais empresas beneficiárias”, afirmou.

Não é o primeiro caso em que vítimas de escravidão acabam ameaçadas de ter de deixar o país por autoridades que deveriam acolhê-las. A própria Polícia Federal atuou de maneira equivocada em pelo menos dois casos envolvendo imigrantes. Em fevereiro de 2013, no Paraná, treze trabalhadores paraguaios foram multados por estarem em situação irregular e acabaram forçados a deixar o Brasil. No mês seguinte, no Mato Grosso do Sul, 34 vítimas da mesma nacionalidade – entre elas, sete adolescentes – passaram pelo mesmo constrangimento. Os casos, noticiados pela Repórter Brasil, motivaram críticas por parte de deputados federais integrantes da CPI do Trabalho Escravo, e levaram a Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (Conatrae) a publicar uma série de recomendações técnicas para a PF sobre a questão migratória.

Falta de articulação
O caso acontece em um momento em que a Polícia de São Paulo passa a dar mais atenção ao trabalho escravo. Na quinta-feira, 16, a Secretaria de Segurança Pública anunciou uma segunda libertação, esta de 20 bolivianos pela Polícia Civil, também feita sem o MTE.

Na avaliação do auditor fiscal Renato Bignami, falta coordenação entre as autoridades paulistas que combatem o crime, o que poderia ser resolvido pela aprovação do Plano Estadual para Erradicação da Escravidão. “É fundamental que a fiscalização do trabalho esteja presente. A PM deveria ter feito contato com os auditores fiscais do trabalho e a Coetrae [Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo] deveria articular-se com a Secretaria de Segurança Pública”, lamentou.

Cartaz exibido durante a última marcha de migrantes em São Paulo. Foto: Lisa Carstensen
Cartaz exibido durante a última marcha de migrantes em São Paulo. Foto: Lisa Carstensen

A minuta do plano, entregue em agosto de 2013 ao Governo do Estado, prevê, dentre outras coisas, a capacitação de policiais sobre o trabalho escravo. Um ano e três meses depois, o documento ainda tramita nas secretarias do governo paulista. De acordo com Juliana Armede, integrante da comissão executiva da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-SP) e responsável pelo Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado, o plano encontra-se há cerca de um mês na Secretaria da Casa Civil – a última repartição por onde deve passar.

“É preciso que a polícia tenha mais conhecimento sobre normas internacionais. Não só a polícia, como todas as instituições que trabalham com imigrantes”, diz Juliana. Ela diz que a Secretaria de Justiça Estadual tem trabalhado com a Diretoria de Policiamento Comunitário e Direitos Humanos da PM sobre o tema: “Eles [a PM] vão soltar um relatório para todos os PMs do Estado sobre refugiados e imigração” para orientá-los sobre o que deve ser feito em operações como a do dia 12 de novembro.

A exemplo dos planos já ratificados em oito estados, o Plano Estadual para Erradicação da Escravidão prevê uma série de ações dos poderes Executivo e Judiciário para combater o trabalho em condições análogas às de escravos. O documento é resultado do trabalho da Coetrae-SP, frente criada em 2012 e composta por secretarias estaduais, tribunais das justiças do trabalho e federal, entidades do governo federal e da sociedade civil, da qual a Repórter Brasil participa como representante civil.

Em São Paulo, migrantes têm se mobilizado por direitos e, a exemplo do que aconteceu no ano passado, preparam uma nova marcha este ano. A manifestação está prevista para o próximo dia 25, às 16h, próximo ao Metrô Armênia.

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Esta matéria foi produzida com o apoio da Catholic Relief Services (CRS)

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