Confira a íntegra do roteiro do episódio Trabalheira #1

Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil, cujo objetivo é discutir o futuro do trabalho
 12/08/2020

Roteiro referente ao programa Trabalheira #1: As máquinas vão mesmo roubar nossos empregos?.

Carlos Juliano Barros

Ana, você tem ideia de quem é esta voz toda poderosa?

Martin Luther King 

There can be no gainsaying of the fact that a great revolution is taking place in the world today. In a sense it is a triple revolution: that is, a technological revolution, with the impact of automation and cybernation; then there is a revolution in weaponry, with the emergence of atomic and nuclear weapons of warfare; then there is a human rights revolution, with the freedom explosion that is taking place all over the world. Yes, we do live in a period where changes are taking place. And there is still the voice crying through the vista of time saying, “Behold, I make all things new; former things are passed away.”

Ana Aranha

Opa, Caju! Essa voz é do Martin Luther King que dispensa apresentações, né. Mas por dever de ofício eu vou dizer que ele foi um pastor evangélico americano e ícone mundial da defesa dos direitos humanos. 

Carlos Juliano Barros

Exatamente, Ana! Esse áudio é de 31 de março de 1968, quatro dias antes do assassinato do Martin Luther King. Esse discurso que ele fez na Catedral de Washington é praticamente uma profecia. De um jeito bem resumido, ele dizia que tinha uma “tripla revolução” acontecendo. E que a humanidade precisaria lidar com três grandes desafios: o respeito aos direitos humanos; a ameaça das armas nucleares; e – por fim – o avanço da automação e da cibernética.

Ana Aranha

Caramba… o Luther King tava preocupado com automação e cibernética já naquela época, no fim dos anos 60? 

Carlos Juliano Barros

Pois é, Ana. O cara era um visionário mesmo. Pra citar as palavras do próprio Martin Luther King, abre aspas, “se uma pessoa não tiver um trabalho e uma renda, ela não tem vida, nem liberdade e nem a possibilidade de encontrar a felicidade. Ela meramente existe”.  

Martin Luther King 

But if a man doesn’t have a job or an income, he has neither life nor liberty nor the possibility for the pursuit of happiness. He merely exists.   

Ana Aranha

Mais de cinquenta anos se passaram desde o brutal assassinato do Dr. King. E hoje essa profecia já tá se realizando: a gente vive a era dos algoritmos, do Big Data, da Inteligência Artificial, da Indústria 4.0. A possibilidade de que os humanos sejam substituídos por robôs em algumas tarefas já é muito plausível – e, em alguns casos, é até bem assustadora. Mas será que as máquinas vão mesmo roubar os nossos empregos?

Carlos Juliano Barros

Pois é… quem sabe daqui a alguns anos a gente possa ouvir um podcast feito por um computador?

Ana Aranha

Mas não vai ser tão bom quanto o nosso!

Carlos Juliano Barros

Que autoconfiança, hein Ana?! É isso aí!

Ana Aranha

Só o tempo dirá! Enquanto isso, seja bem-vindo ao primeiro episódio do Trabalheira, um podcast da Rádio Batente. Eu sou a Ana Aranha. 

Carlos Juliano Barros

E eu sou o Carlos Juliano Barros, o Caju.  

Ana Aranha

A Rádio Batente é a central de podcasts da Repórter Brasil. A cada temporada, a gente vai falar do universo do trabalho com uma pegada diferente. A ideia do Trabalheira é fazer um bem bolado de história, cultura, economia, direito – enfim, de tudo um pouco para discutir o futuro do trabalho. Nessa série de oito episódios, a gente vai responder a uma pergunta provocativa a cada programa: as máquinas vão roubar nossos empregos? Será que algum dia vamos trabalhar menos? O trabalho dignifica ou danifica as pessoas? 

Carlos Juliano Barros

O Trabalheira vai ao ar toda quarta-feira, no feed da Rádio Batente. E fica ligado também nas nossas redes sociais – todas feitas por seres humanos (Pausa) Por enquanto… 

Paulo Feldmann 

Eu acho que realmente a situação de hoje é muito diferente de 30 anos atrás. Há 30 anos atrás eu acho que se aplicava essa frase que eu usei: “Robô: ruim com ele, pior sem ele”. Mas hoje, não mais (…) Porque o problema é completamente diferente.

Paulo Feldmann 

A grande diferença é a seguinte: há 30 anos atrás, a gente sabia que poderiam surgir novos setores na economia, que iam absorver essas pessoas.

Carlos Juliano Barros

Esse é o Paulo Feldmann, professor de Economia da Universidade de São Paulo, a USP. Ele causou polêmica na década de 80 ao defender a automação das linhas de montagem de carros.

Naquela época, ele era um dos poucos pesquisadores que estudavam esse tema no Brasil e uma parte dessa pesquisa virou um livro com esse nome que ele comentou:  “Robôs: ruim com eles, pior sem eles”. 

Claro que essa afirmação não caiu bem entre os sindicalistas, que tinham muito medo de que a entrada desses robôs acabasse em demissões em massa, 

O argumento do Paulo era que a automação era o único jeito de o Brasil não ficar pra trás na corrida pela produtividade. 

Mas hoje ele acredita que as coisas mudaram de figura.

Paulo Feldmann 

Agora a gente está diante de uma situação em que não vai surgir coisa nova. Esse estudo do governo do Canadá é muito sintomático: ele diz que apenas 4% de novos empregos vão surgir decorrentes das novas profissões. É muito pouco frente ao que vai ser eliminado. Agora não tem saída. Agora, tem que criar mecanismos de proteção ao trabalhador que vai perder emprego.

Ana Aranha

É… vamos combinar que o mercado de trabalho mudou “um pouquinho”, né, desde que o Paulo Feldmann começou a estudar a robotização, 40 anos atrás. Vamos fazer um exercício bem didático aqui e comparar, por exemplo, alguns números da indústria automobilística na época em que o Feldmann publicou o livro dele, e a indústria de tecnologia de hoje:

Em 1979, a General Motors, a GM, teve um faturamento de 11 bilhões de dólares. No auge, a montadora chegou a ter 840 mil funcionários. É como se todos os habitantes de Campo Grande, a capital do Mato Grosso do Sul, trabalhassem numa mesma empresa.  

Corta pra 2012. Naquele ano, o Google faturou 14 bilhões de dólares – 3 bilhões a mais do que a GM trinta anos antes. E sabe quantos funcionários o Google tinha em 2012? Apenas, tão somente, 38 mil. E só pra manter o paralelismo aqui, essa é a população de outro município do Mato Grosso do Sul chamado Maracaju. Um beijo pro povo de Maracaju!

Carlos Juliano Barros

Pera aí… Me perdi nessa salada de números. Vamos ver se entendi bem: a GM tinha 840 mil trabalhadores – uma Campo Grande de funcionários – e faturava 11 bilhões de dólares. O Google, com 38 mil – ou uma Maracaju – faturava 14 bilhões?

Ana Aranha

Isso. Traduzindo: o Google conseguiu um faturamento 30% maior com 22 vezes menos funcionários do que a GM. Vou repetir, porque é muito impressionante: faturamento 30% maior com 22 vezes menos funcionários.

E tudo isso num espaço de tempo muito mais curto! A GM levou 70 anos pra atingir esse patamar, uma vida inteira… Já o Google levou só 14 anos, não passou nem da puberdade.

Carlos Juliano Barros

Então, mas aí a gente tem que lembrar que os tempos são outros. Em vários sentidos – e, desta vez, não só por causa da pandemia do novo coronavírus.

Eu tô falando de mudanças estruturais profundas – uma marcha que nem uma crise sanitária que nem essa consegue interromper.

No mundo todo, os empregos migraram da indústria pro setor de serviços – uma transformação importante, e que se acelerou nas últimas décadas. O Paulo Feldmann, que a gente ouviu agora há pouco, tem uma visão que destoa da resposta-padrão dos economistas. Não é que ele acredite que os seres humanos vão ser totalmente substituídos por robôs. Mas ele coloca em xeque essa crença de que, à medida que velhas profissões deixam de existir, outras tantas vão sendo criadas. E que essas novas profissões vão conseguir absorver toda a força de trabalho.

Ana Aranha

Claro, quando a gente vê o desemprego crescendo num ritmo exponencial que nem nessa crise econômica que a gente tá vivendo agora, é difícil até imaginar quais seriam essas profissões do futuro. 

Mas vou colocar mais um dado aqui na balança: quando a gente  olha pra situação do emprego no mundo, a gente percebe que os países com menores taxas de desemprego hoje são justamente os que mais investiram em robotização, a inteligência artificial, etc e tal. 

Carlos Juliano Barros

Exatamente. Isso é verdade mesmo. Os países mais desenvolvidos, com menos gente desocupada, são os mais adiantados em termos tecnológicos. Eu conversei sobre isso com o Herbert Kimura, professor da Universidade de Brasília e pesquisador do Lamfo, um laboratório que pesquisa os impactos da tecnologia sobre a sociedade.

Herbert Kimura 

Esse futuro apocalíptico de poucos empregos acho muito pouco provável porque, apesar de a tecnologia estar avançando, outras demandas vão aparecer. As pessoas vão ter outros tipos de interesse que vão gerar outros tipos de atividades e outros tipos de emprego. 

Carlos Juliano Barros

Na verdade, essa discussão sobre o chamado “desemprego tecnológico” existe desde que o mundo é mundo. 

Em 1589, por exemplo, a rainha da Inglaterra Elizabeth I deu um pito num inventor chamado William Lee, quando ele foi – todo empolgado –  mostrar pra ela o primeiro tear mecânico de tecidos. 

A rainha não gostou nada nada daquela história e despachou o cara! Ela falou: “Você vai fazer os artesãos virarem mendigos”. O coitado do William Lee precisou até fugir do país, de tanta perseguição. 

Ana Aranha

Não acredito, que ironia!

Carlos Juliano Barros

Mas ele deve ter se revirado de alegria no caixão dois séculos depois, quando começou a Revolução Industrial, ali mesmo na Inglaterra.

Ana Aranha

Olha, eu não sei o que o espírito injustiçado do William Lee tem a dizer sobre isso, mas foi justamente a mecanização da indústria têxtil que fez a Inglaterra virar uma potência econômica, né? O resto é história. Quer dizer: com certeza teve gente que perdeu trabalho nessa revolução. Mas vários outros empregos foram gerados. 

Aliás, o historiador Eric Hobsbawm – que nasceu no Egito! <sfx que remeta a Egito> Sabia disso, Caju? – disse que o principal evento do século 20 não foram as duas guerras mundiais, nem o conflito capitalismo versus comunismo (que aliás voltou com tudo, né?) 

Pro Hobsbawm, o acontecimento mais importante do século 20 foi a passagem do mundo rural pro mundo urbano. E, claro, isso não teria sido possível sem as máquinas que destruíram algumas profissões no campo, mas criaram tantas outras nas cidades.         

Carlos Juliano Barros

Mas vamos deixar de lado essa viagem histórica pra voltar à pergunta central desse primeiro episódio do Trabalheira: será que desta vez – com Big Data, Inteligência Artificial, etc – vai ser diferente? 

O Martin Ford, um pesquisador e empresário do ramo de tecnologia americano, acredita que sim, que dessa vez é diferente – ou melhor, vai ser diferente. Ele até brinca dizendo que essa história sobre as máquinas roubarem os empregos parece aquela fábula do “Pedrinho e o lobo”. Lembra dessa fábula, Ana? 

Ana Aranha

Vagamente, Caju. Como era mesmo?

Carlos Juliano Barros

O Pedrinho era aquele menino, pastor de ovelhas, que mentia pra chamar atenção, dizendo que havia um lobo rondando o rebanho. Ele repetiu essa mentira tantas vezes que, quando o lobo de fato apareceu, ninguém acreditou. Mas o ponto do Martin Ford é que, no fim, o lobo realmente aparece.   

O Martin Ford escreveu um best-seller sobre o assunto. O nome do livro, que é mesmo muito bacana (recomendo a leitura), é “The Rise of Robots”, traduzido no Brasil para “Os Robôs e o Futuro do Emprego”.

Martin Ford 

Let me begin by just reviewing what I think is different this time, what’s the difference about today’s technology versus the things we’ve seen in the past. And I have pointed to three things that I really think set today’s technology apart.

Carlos Juliano Barros

Nesse áudio que a gente tá ouvindo, de uma palestra que o Martin Ford deu nos Estados Unidos, ele diz que nós – seres humanos – temos que ter medo da atual revolução das máquinas por três motivos.  

O primeiro deles é a Lei de Moore. A Lei de Moore foi formulada em 1965 pelo cientista americano Gordon Moore, um dos fundadores da Intel. A Intel é aquela companhia que domina o mercado mundial de processadores. Basicamente, a Lei de Moore diz que o poder de processamento dos computadores dobra, em média, a cada dois anos. 

Ana Aranha

Bom, é só comparar a capacidade de armazenamento daqueles disquetes antigos com esses pendrives de vários giga de memória – sem falar na “nuvem”, né? O tanto que a gente consegue guardar de arquivo num Google Drive ou num Dropbox da vida só cresce. E isso não vale só pra chips e processadores. Vale também pra softwares e aplicativos.   

Carlos Juliano Barros

O segundo motivo é o fato de que as máquinas agora têm habilidades cognitivas. Quer dizer: as máquinas já conseguem pensar e tomar decisões por conta própria.

Ana Aranha

Isso é realmente perturbador. Quem aborda esse assunto de um jeito  bem interessante é aquele historiador israelense bastante conhecido, o Yuval Noah Harari. Naquele livro “Homo Deus”, ele desenvolve uma tese que ele chama de “O grande desacoplamento”. 

Carlos Juliano Barros

“Homo Deus”, “O Grande desacoplamento”… Imponente, hein? O que que diz essa tese?

Ana Aranha

Durante muito tempo, os conceitos de inteligência e consciência ficaram meio misturados. As pessoas acreditavam que pra desempenhar algumas atividades complexas – como jogar xadrez ou dirigir um carro, por exemplo – a gente usava não só a inteligência, o raciocínio, mas também a consciência. 

E o conceito do Harari é justamente esse: a inteligência artificial já ganha brincando dos seres humanos num jogo de xadrez, a Uber e a Tesla estão por aí com seus carros na rua – tudo isso sem nenhuma consciência artificial. 

Esse é o “grande desacoplamento”: a inteligência se separou da consciência. Na verdade, a inteligência não precisa da consciência. 

Entendeu? Na vida real, as máquinas não precisam ser que nem o HAL, aquele computador maquiavélico do “2001: Uma Odisseia no Espaço”, do Stanley Kubrick. As máquinas já conseguem, sim, tomar decisões inteligentes, mesmo estando bem longe de terem consciência. 

Carlos Juliano Barros

Interessante mesmo! Mas, voltando aqui pro Martin Ford, o terceiro motivo pelo qual ele acredita que desta vez as máquinas podem realmente roubar os nossos empregos é o fato de que a tecnologia se espalhou por todos os setores, sem exceção. Ela virou uma espécie de “utilitário”, que nem a eletricidade.  

Ana Aranha

Em geral, quando a gente fala de robotização e automação, a gente pensa nos cobradores de pedágio das estradas ou nos ascensoristas de elevador. Profissões que já não fazem qualquer sentido nos dias de hoje. Inclusive, tem casos graves. Quem já viu de perto um cortador de cana trabalhando sabe do que eu tô falando. Algumas tarefas são tão maquinais, degradantes, que nem deveriam ser feitas por seres humanos. Mas já não são só as profissões de trabalho manual pesado ou pouco qualificadas que devem desaparecer com a tecnologia. 

Carlos Juliano Barros

Exatamente. Ouve mais esse trechinho aqui do Paulo Feldmann sobre esse assunto:  

Paulo Feldmann 

Eu acho que o exemplo mais emblemático é o dos médicos. Uma das coisas mais importantes que médico fazia até um tempo atrás era leitura de exame, interpretação de resultado de ressonância, raio-x, exame de sangue. Isso agora não precisa mais. O computador Watson da IBM, dotado de Inteligência Artificial, faz tudo isso com uma velocidade espantosa. Sem errar. O Watson consegue fazer em uma hora o trabalho de mais de 40 médicos em uma semana. Só que esses médicos têm uma taxa de erro muito maior. Não tem por que usar os médicos.

Carlos Juliano Barros

Eu lembro que o primeiro computador da minha família, na década de 90, foi um Aptiva, fabricado pela IBM. Depois de um tempo a IBM deixou de fabricar computador. E eu pensei: “Coitada! A IBM já era!” Que nada… eles saíram do mercado de hardware e caíram de cabeça na inteligência artificial. Que é o negócio do futuro mesmo, né, Ana?

Ana Aranha

Pois é… esse supercomputador Watson, que hoje faz análise de exames, dentre otras cositas más, ficou famoso ao ganhar em 2011 um programa na televisão americana chamado Jeopardy. 

O Jeopardy é bem popular nos Estados Unidos, é um programa de perguntas e respostas… Esse que a gente tá ouvindo é o que teve a participação do Watson.

Carlos Juliano Barros

É como se fosse o “Show do Milhão” deles, né?

Ana Aranha

Tem um formato um pouco diferente, mas é parecido. Mas, voltando ao Watson, além de interpretar exames médicos e ganhar prêmio na tevê, a revista de tecnologia Wired diz que esse supercomputador da IBM também é capaz de prevenir ataques cibernéticos, criar receitas culinárias e escrever roteiros de filmes. Tá bom ou quer mais?

Carlos Juliano Barros

Esse Watson deve fazer podcast também, né? Em português, ainda por cima.

Carlos Juliano Barros

Mas voltando à vaca fria, tem uma série de pesquisas científicas sérias que investigam como a tecnologia substitui empregos. A mais importante delas foi feita por dois pesquisadores da Universidade de Oxford, o Carl Frey e o Michael Osborne, e foi lançada em 2013. 

A principal conclusão do estudo é a de que, em uma ou duas décadas, quase metade dos empregos nos Estados Unidos correm alto risco de serem substituídos  por máquinas. Por exemplo: em 2033, a probabilidade de que algoritmos inteligentes substituam operadores de telemarketing e corretores de seguros é de 99%. 

Ana Aranha

A metodologia usada pelo Frey e pelo Osborne também foi replicada aqui no Brasil em duas pesquisas recentes. Uma delas foi feita por pesquisadores lá da UnB – o professor Herbert Kimura, que apareceu aqui agora há pouco, trabalhou nessa pesquisa. E a outra é do  Laboratório do Futuro, da Coppe – a pós-graduação de engenharia da UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro. A gente conversou com o Yuri de Lima, um dos autores dessa pesquisa.

Yuri de Lima

Um dos resultados do estudo é que 60% das pessoas ocupadas no país estão em atividades com alta probabilidade de automação. 

A gente está criando emprego que vai ser automatizado no futuro. A gente olhou de 2003 a 2016 como isso variou. E a gente vê que nos últimos grupos de automação, e justamente o pior de todos, o que mais vai ser afetado, que são os de 90 a 100% de probabilidade de automação, eles são o que mais tem criação de emprego. 

Entre as ocupações que mais empregam no Brasil, a gente tem seis delas acima de 90% de probabilidade de automação. 

Esses resultados são muito assustadores. Estamos andando na contramão do que a gente deveria, né? 

Ana Aranha

O estudo da UnB chegou a outra conclusão também preocupante: em momentos de  crise econômica, que nem essa que a gente tá vivendo agora, muita gente acaba trocando trabalhos mais complexos, por assim dizer, por ocupações mais simples. É o que o professor Herbert Kimura chamou de “zona”.

Herbert Kimura

Na maioria dos estudos, trabalhos de zonas menores são mais propensas a serem automatizados.

Ana Aranha

No caso brasileiro, tem uma especificidade. Nesses últimos anos de  crise, muita gente que tá numa “zona” superior, que exige maior nível de preparo, talvez esteja migrando pra zonas inferiores, que exigem um nível de preparo menor.

Carlos Juliano Barros

E isso não deve mudar depois da pandemia do novo coronavírus. O professor Herbert Kimura tem dito que o processo de substituição vai continuar, ou até acelerar, no cenário de recessão que vem por aí. Trabalhos repetitivos e que não exigem criatividade continuam sendo os primeiros da lista. Mas o professor Kimura acha que o trabalho dos garçons, por exemplo, também pode ser automatizado. Você vai a um restaurante, senta na mesa e faz o pedido por um tablet.

Ana Aranha

As atividades que exigem menos preparo são de fato as mais facilmente automatizáveis. E aí nessa brincadeira as pessoas que têm menos qualificação podem sofrer duplamente: não só pelo fato de estarem mais suscetíveis à automação, mas também por precisarem competir com aquelas que têm mais preparo – e que vão topar vagas em zonas de trabalho inferiores, por falta de oportunidade.

Carlos Juliano Barros

Que as máquinas vão acabar com alguns tipos de trabalho, isso é um fato. Mas isso também não é necessariamente ruim. O exemplo do cortador de cana-de-açúcar que você deu, Ana, é ótimo. Ninguém merece cortar cana e ponto final! Que novos empregos vão surgir, também não há dúvidas sobre isso. Então, o maior risco, na verdade, talvez nem seja o “desemprego tecnológico”. O grande desafio do mercado de trabalho é a constatação de que a gente caminha rumo a uma perigosa POLARIZAÇÃO. Esse conceito de “polarização” foi popularizado pelo professor David Autor, do MIT. MIT quer dizer – Ana, não vale rir da minha pronúncia! – Massachusetts Institute of Technology. 

Ana Aranha

Boa, Caju! Tá perfeito. Mas voltando aqui à “polarização” do David Autor: esse conceito quer dizer que uma pequena minoria vai ter empregos qualificados, criativos e – principalmente – bem remunerados; enquanto a maioria vai brigar por trabalhos precários e instáveis, tipo bicos e afins.

Carlos Juliano Barros

Exato. O Herbert Kimura falou desse risco. 

Herbert Kimura 

Mas eu também creio que pode haver uma dualização maior nos empregos. Então, o pessoal com mais qualificação, que tenha uma criatividade diferente, que tenha um trato diferente com pessoas, que supere o trato das máquinas. Essas talvez tenham uma atividade melhor remunerada. 

Herbert Kimura 

Vai ter um pessoal que estaria direcionado a atividades menos remuneradas, menos valorizadas, e que no final podem até ser substituídas pelas máquinas. Essas pessoas vão ter que achar outras atividades. E se elas não estiverem preparadas, vão pegar atividades menos remuneradas.

Ana Aranha

O Yuri de Lima, da UFRJ, tem a mesma preocupação  com o futuro dessa maioria que não vai tá preparada pra enfrentar o mercado de trabalho, da forma como ele vem se desenhando.     

Yuri de Lima 

Então a gente tem que tem que pensar de forma séria com relação a isso e tem que entender que existe de fato uma questão ética aí a ser discutida. E cada vez mais visualizar isso como uma responsabilidade moral tanto de empregadores quanto de governantes que têm que fazer algo para ajudar essas pessoas.

Yuri de Lima 

E essa responsabilidade está primeiramente dentro da dos empregadores que estão fazendo esse movimento para colocar mais tecnologia, que é claro a gente sabe que existe um ganho nisso tudo, porque ninguém faria isso à toa. E também num segundo momento está na mão do Estado, que tem que ajudar essas pessoas a conseguir novas oportunidades dentro do mercado de trabalho, sem levar a discussão para o lado leviano de achar que: “Você saiu do setor, você era motorista de caminhão agora você pode ser um desenvolvedor de robôs”.

Ana Aranha

Outra resposta-padrão dos economistas é a de que só investindo pesado em educação e capacitação da força de trabalho é que a gente vai conseguir enfrentar essa bomba social que parece tá sendo armada. Mas a gente já viu que mesmo as profissões qualificadas – como a de médico – não parecem imunes ao avanço da robotização e da inteligência artificial. 

E é por isso que as propostas de Renda Mínima, também chamada de Renda Básica Universal, que voltaram a ganhar força com a pandemia, vêm recebendo cada vez mais atenção. No Vale do Silício, berço das maiores startups do mundo, esse debate tá pegando fogo. E na Europa também.        

Paulo Feldmann

Paulo Feldmann Então, agora não tem saída. Agora você tem que criar mecanismos de proteção àquele trabalhador que vai perder o seu emprego. Não vai ter saída. Ele não vai encontrar um outro emprego. Não vai ter outra alternativa. É o que o Harari fala. Tem que se criar medidas de proteção social. Por isso a renda mínima talvez seja a melhor alternativa.

Pouca gente sabe, mas o Alaska implantou um sistema de renda mínima que funciona muito bem. A população decidiu que a renda do petróleo fosse dividida igualmente pela população.

Carlos Juliano Barros

Renda Básica é mesmo um tema pra lá de instigante. Tem muitas nuances e embalagens diferentes – da esquerda à direita. Aliás, a gente vai ter um programa pra debater esse assunto nessa temporada do Trabalheira. Eu podia revelar esse segredo ou falei demais, Ana?

Ana Aranha

Sem spoilers, Caju! Bora deixar o povo curioso sobre o que vai rolar… Agora, sobre a pergunta desse episódio, se as máquinas vão roubar nossos empregos, só sendo mãe Diná mesmo pra cravar uma resposta. Mas o que parece claro é o seguinte: o risco maior é de que a tecnologia torne o abismo de classe ainda mais profundo do que o que a gente vive hoje. Em outras palavras: o maior risco maior é de que a desigualdade social aumente.

Carlos Juliano Barros    

Acho que é por aí mesmo. E mesmo nas profissões supostamente qualificadas o bicho pode pegar. Uma coisa é ser médico ou advogado, pra citar profissões bem tradicionais, formado na lousa de giz. Outra coisa é ser médico ou advogado usando inteligência artificial pra fazer pesquisa em processos e fazer petições… Não tem comparação… 

Ana Aranha

É isso. Bom, o primeiro episódio do Trabalheira fica por aqui. No próximo programa, a gente vai tentar responder uma pergunta meio maluca: o que o Henry Ford, o cara do capitalismo industrial, diria da Uber? Acho que já dá pra sacar do que o programa vai tratar, né?

Carlos Juliano Barros

Boa, Ana! Vai ser bom.

O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo para a Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.

O roteiro original é de minha autoria, Carlos Juliano Barros, com a colaboração da Ana Aranha. O tratamento de roteiro é da Paula Scarpin e do Vitor Hugo Brandalise.

A edição e a montagem são da Juliana Santana, da Clara Rellstab e da Mari Romano. A nossa música tema é composta pelo João Jabace, que também faz a finalização e a mixagem do programa. A coordenação digital é da Juliana Jaeger, e a distribuição é da Bia Ribeiro.

Valeu, Ana. Um beijo e obrigado.

Ana Aranha

Valeu, Caju! Até a próxima.

FIM

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