Confira a íntegra do roteiro do episódio Trabalheira #7

Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil, cujo objetivo é discutir o futuro do trabalho
 23/09/2020

Roteiro referente ao programa Trabalheira #7: Quais são os mitos sobre o direito do trabalho?.

Jair Bolsonaro

Quantas vezes eu disse durante a campanha que eu não quero ser patrão num Brasil, num país com esse emaranhado de leis e legislações. Eu tenho dito, desde há muito, que um dia os trabalhadores vão ter que decidir entre todos os direitos e desemprego ou menos direitos e emprego. 

Carlos Juliano Barros

(Imitando Bolsonaro) Ana, no tocante a essa questão de voz, a do nosso Presidente da República é inconfundível, talkey? 

Ana Aranha

Caju, eu tô impressionada com a sua desenvoltura nas imitações aqui no nosso podcast! Nessa temporada você já imitou o Totó do “Cinema Paradiso” (pausa) [sfx – Caju falando “Alfredo! Alfredo” do EP 02] e agora é como se eu estivesse ouvindo o Marcelo Adnet…

Carlos Juliano Barros

Foi boa a minha imitação, vai? Daqui pra frente vou me apresentar como Carlos Juliano Adnet. Ou Caju Adnet, para facilitar. Que tal?

Ana Aranha

Só rindo pra encarar algumas declarações do nosso Presidente. E essa que abriu o programa foi bem emblemática, ela foi feita já faz um tempo, né?  

Carlos Juliano Barros

Sim, sim. Esse comentário, especificamente, é de agosto de 2019. Aconteceu tanta coisa desde lá que parece muito mais de um ano…

Ana Aranha

Ela  me lembrou uma declaração feita pelo nosso vice-presidente, o General Mourão, ainda na época da campanha. O Mourão jogava no ar, como quem não queria nada, “críticas” – vamos chamar assim – à lei trabalhista.

Carlos Juliano Barros

É a história da “mochila”, né?

Ana Aranha

Exato. Ele disse que o décimo terceiro salário era uma “mochila nas costas” do empresariado. Só que décimo terceiro é um direito que a Constituição prevê. Tem gente que diz até que é uma espécie de “cláusula pétrea”, ou seja, não pode ser mexida. Depois disso, o Mourão até levou um puxão de orelha do Bolsonaro, que ainda tava tentando vender uma imagem de moderação.

Carlos Juliano Barros

Nossa, podicrê… De qualquer forma, não é fácil guardar na memória todo o arsenal de declarações bizarras do pessoal da linha de frente desse governo, né?

Ana Aranha

Eu aguardo ansiosamente a retrospectiva das declarações mais bizarras no fim desse governo. Essa vai ser pra guardar pra mostrar pros filhos e netos.

Carlos Juliano Barros

Ou não, né? E aqui vai mais uma. Depois que foi eleito, o Bolsonaro fez outro comentário que deu o que falar sobre as leis trabalhistas… 

Jair Bolsonaro 

No que for possível, sei que está engessado no artigo sétimo, mas tem que se aproximar da informalidade. 

Ana Aranha

Nossa, desse eu também lembro: ele abertamente defendeu a informalidade, ou seja, a total ausência de regras, o vale tudo, como um bom parâmetro pra lei trabalhista. 

Carlos Juliano Barros

Pois é, Ana. Eu resgatei essas falas do presidente pra puxar o mote do nosso programa de hoje: mito! 

Ana Aranha

Mito? Sério?

Carlos Juliano Barros

Não, calma, não é nesse sentido que você tá pensando… Na verdade, é no plural: mitos! Eu tô falando do outro sentido que essa palavra tem: de narrativa falsa, sem fundamento. E quando a gente pensa no mundo do trabalho esses mitos são vários. Por exemplo: direitos trabalhistas atrapalham a geração de emprego? Aliás, direitos trabalhistas existem só pra proteger empregados e atrapalhar a vida dos empregadores? E os Estados Unidos só são a principal potência do mundo porque lá não tem Justiça do Trabalho e lei trabalhista? Mas a gente também vai falar de alguns mitos bem brasileiros. A CLT é mesmo uma cópia da Carta del Lavoro do fascismo italiano? E o Brasil é o campeão mundial de processos trabalhistas?  

Ana Aranha

Esse último é um dos meus preferidos! E tem várias versões, a mais exagerada é que no Brasil têm mais processos trabalhistas do que em todos os países do mundo somados. E já que a gente recuperou a campanha de 2018, eu lembro desse argumento na boca do Flávio Rocha – o dono da Riachuelo, que aliás chegou a se lançar pré-candidato à Presidência.

Flávio Rocha 

O Brasil produz mais ações trabalhistas do que todo o resto do mundo. Alguma coisa está errada aí…

Carlos Juliano Barros

Muito bem lembrado! Pra quem não conhece o Flávio Rocha, além de ser herdeiro da Riachuelo, ele também era um dos líderes daquele movimento de empresários liberais chamado Brasil 200, que defendiam uma série de reformas do Estado brasileiro. Mas ele picou a mula desse grupo agora em maio. E só voltando rapidinho à campanha presidencial de 2018, o jingle da campanha dele, que no fim das contas acabou não vingando, era cantado pelo Latino – aquele mesmo do festa do apê com bundalelê.

Jingle

Ana Aranha

Putz, vai ficar na cabeça… Vender a ideia de “arrocho” como uma virtude tava super em alta na eleição de 2018. E tem tudo a ver com a construção dos mitos sobre as leis trabalhistas, que tem consequências diretas sobre o presente e o futuro do trabalho.

Seja bem-vinda, seja bem-vindo a mais um episódio do Trabalheira, um podcast da Rádio Batente. Eu sou a Ana Aranha.

Carlos Juliano Barros

Eu sou Carlos Juliano Adnet… quer dizer, Carlos Juliano Barros, o Caju. A Rádio Batente é a central de podcasts da Repórter Brasil. O Trabalheira é uma série de oito episódios que vai ao ar toda quarta-feira, no feed da Rádio Batente no seu tocador de podcasts, ou no YouTube. E fica um convite pra você visitar o nosso site. Dá pra conferir lá os textos dos roteiros e as referências de livros, vídeos e filmes que a gente cita nos episódios. Então vai lá: reporterbrasil.org.br/radiobatente

Carlos Juliano Barros

O mito fundador, o mito dos mitos, talvez seja a ideia de que direitos trabalhistas são custos que impedem a geração de emprego. Você sabe que até mesmo alguns economistas respeitados pelo mercado, e totalmente insuspeitos de “esquerdismo”, reconhecem que essa ideia é quase uma “lenda urbana”. Vou citar aqui dois economistas que são carne de vaca nos principais jornais do país: o Marcos Lisboa e o Alexandre Schwartsman. Em setembro de 2019, o Marcos Lisboa deu uma entrevista pro jornal Valor Econômico, comentando o plano do governo federal de desonerar a folha de pagamentos das empresas em troca da recriação da CPMF.  Esclarecendo que, nesse contexto, desoneração da folha significa  cortar gastos – por exemplo: reduzir a pagamento do FGTS ou a contribuição que o empregador faz pra Previdência. 

Ana Aranha

É, a ideia de desonerar, enxugar a folha sempre vem acompanhada da promessa de que isso vai gerar mais empregos. 

Carlos Juliano Barros

Pois é. Sobre essa proposta, o Marcos Lisboa foi curto e grosso quando falou pro Valor. Abre aspas: “Desonerar a folha é aumentar o emprego? A resposta é não”. Fecha aspas.

Ana Aranha

Mas então qual seria a consequência da desoneração da folha?

Carlos Juliano Barros

Tem duas possibilidades: A primeira é o aumento dos salários, da parte que fica com empregado; E a segunda é o aumento das margens de lucro, da parte que fica com o empregador. 

O outro economista que eu citei, o Alexandre Schwartsman, também escreveu um artigo pro Infomoney, aquele site de notícias bancado pela corretora XP Investimentos, criticando a proposta do nosso ministro da Economia, Paulo Guedes, de desonerar a folha pra gerar emprego. Abre aspas: “A tese de Guedes presume que encargos trabalhistas recaiam principalmente sobre as empresas, elevando o desemprego. Mas, como visto, isso requereria que a oferta de trabalho fosse muito sensível ao salário. Até onde eu sei, a evidência aponta no sentido contrário, mas, de qualquer forma, caberia ao ministro trazer estudos que embasassem a sua conclusão”. Fecha aspas. Só uma explicação rápida: quando o Alexandre Schwartsman escreve que “a oferta de trabalho não é muito sensível ao salário”, ele quer dizer em português claro que, na prática, as pessoas muitas vezes topam receber um salário baixo porque precisam trabalhar pra sobreviver. 

Ana Aranha

Ainda mais em tempo de crise, a galera “Topa Tudo Por Dinheiro” mesmo… O importante é que geração de emprego depende de muitos outros fatores, né?

Carlos Juliano Barros

Exatamente. Mas, em nome da honestidade intelectual, Ana, isso não quer dizer que o Marcos Lisboa e o Alexandre Schwartsman sejam contrários, por exemplo, a mudanças nas leis trabalhistas ou à Reforma de 2017. Como economistas liberais que são, eles sempre vão defender leis mais flexíveis. E também vão dizer que a burocracia precisa ser reduzida, que as regulações duras espantam investidores, que os chamados “encargos trabalhistas” podem reduzir o valor dos salários ou estimular a informalidade… De qualquer forma, o que precisa ficar claro é que a ideia de que os direitos trabalhistas por si só inibem a geração de novos postos de trabalho é um mito.

Ana Aranha

Enquanto você falava, eu lembrei que a Dilma testou exatamente essa receita da desoneração da folha de pagamentos pra tentar gerar emprego, no momento em que a economia começava a patinar. E o resultado foi que os empregos não apareceram e o governo perdeu receita, o que agravou a crise fiscal. Eu acho que esse episódio mostra bem que pra estimular a geração de empregos num país como o Brasil é preciso combinar uma fórmula extremamente complexa. A gente não vai resolver em uma tacada só.

Carlos Juliano Barros

E a Dilma foi muito criticada por essa medida – inclusive, pelos economistas que a gente citou.

Ana Aranha

E uma outra coisa: antes dessa crise que se arrasta há mais de meia década, o Brasil chegou a viver uma situação praticamente de “pleno emprego”, com a menor taxa de informalidade da história. E tudo isso acontecendo quando ainda tava em vigor a antiga CLT, a CLT pré-reforma. Mas, também em nome da honestidade intelectual, eu preciso fazer uma ressalva. Em 2009, a taxa de informalidade medida pelo IBGE – apesar de ter sido a mais baixa da história – ainda era bem alta: 28%. 

Carlos Juliano Barros

Só pra fazer uma comparação, de acordo com o IBGE, hoje a informalidade tá acima de 50% em 11 estados do país. No Brasil como um todo, está na faixa dos 40%. 

Ana Aranha

É muita coisa….  A informalidade é um dos maiores desafios pra quem pensa sobre trabalho e é parte estrutural do nosso mercado, como a gente já falou aqui em outros episódios do Trabalheira. E sem falar que, mesmo nessa época pré-crise, grande parte dos empregos formais gerados era de até dois salários mínimos. São muitas ressalvas que a gente precisa fazer pra qualificar esse debate, que é gigantesco. Mas, como você disse bem Caju, o ponto que a gente levantou aqui na nossa conversa é bem específico: abrir os dedos da suposta mão pesada das leis trabalhistas não vai necessariamente gerar empregos. 

Carlos Juliano Barros

Acho que a gente pode passar pros próximos mitos, né?

Ana Aranha

Bora!

Rodrigo Carelli 

Uma das funções principais do direito do trabalho é a regulação da concorrência. Uma regulação em três níveis: internacional, que a OIT faz, a OIT tenta impor padrões mínimos para que as nações concorram entre si. Há um segundo nível que é entre as empresas: as empresas devem cumprir alguns padrões mínimos de proteção aos seus trabalhadores para que não concorram umas com as outras até o fundo do poço em relação a seus trabalhadores. E uma terceira dimensão dessa concorrência é entre os próprios trabalhadores. É preciso o direito do trabalho para que os trabalhadores não concorram cada vez mais numa corrida para o fundo do poço. Para isso existe o direito do trabalho. 

Carlos Juliano Barros

Esse foi o Rodrigo Carelli, professor da faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e procurador do Ministério Público do Trabalho. 

Em geral, as críticas que são feitas ao direito do Trabalho têm a ver com o mito de que ele serve só pra proteger o trabalhador… de que ninguém para pra pensar em como é difícil a vida do empregador, etc e tal. Só que o direito trabalhista não se limita a essa função protetiva. Existe um outro papel, o da REGULAÇÃO DA CONCORRÊNCIA – esse papel também é essencial, como enfatizou o Rodrigo Carelli.

Ana Aranha

É, Caju. O Carelli falou da OIT – essa sigla de três letras que é muito citada sempre que se fala de trabalho. É a Organização Internacional do Trabalho. Aproveitando o gancho, eu vou dar uma viajada rápida pra falar da importância dessa organização que foi criada em 1919. 

Carlos Juliano Barros 

Caramba! Então, a OIT completou 100 anos no ano passado.

Ana Aranha

Isso! A OIT foi sonhada – digamos assim –  durante os debates do Tratado de Versalhes – o acordo de paz assinado em Paris e que colocou fim à Primeira Guerra Mundial. Se você não cabulou as aulas de história, Caju, você vai lembrar que uma das principais razões que provocaram a Primeira Guerra Mundial foi justamente a disputa entre as potências europeias por colônias na África e na Ásia. E essa briga não era só por recursos naturais, mas também por mão de obra barata. Nesse contexto, a criação da OIT foi uma tentativa de criar padrões globais mínimos de justiça social. O diretor do escritório da OIT no Brasil, o alemão Martin Hahn, falou sobre isso com a gente. 

Martin Hahn 

Temos na nossa constituição da OIT já a ideia de que trabalho não é uma commodity. É realmente muito diferente de outros fatores da produção. E sabemos que empresas que tratam bem os trabalhadores e asseguram que eles tenham condições dignas de trabalho vão se sair muito melhor. E no contexto das negociações da Conferência de Paris, em Versalhes, realmente foi muito claro que, para criar um sistema que seja um sistema que consegue conquistar a paz e assegurá-la, seria necessário também que essa paz se baseia em justiça social e numa competição entre países, claramente, no contexto capitalista, mas que essa competição não seja feita na forma de um “race to the bottom”, de uma constante degradação de direitos trabalhistas.

Carlos Juliano Barros

Agora, tem uma peculiaridade da OIT que sempre me chamou a atenção. Você sabe que existem várias convenções internacionais da OIT, sobre os mais variados temas – de salário mínimo a trabalho escravo?

Ana Aranha

Sim… e um adendo: em geral, quando uma convenção é ratificada por um país, ela ganha força de lei. 

Carlos Juliano Barros

Isso… mas você sabia que – ao contrário da Organização Mundial do Comércio, a OMC, que é uma irmã bem mais nova da OIT, já que ela só foi criada oficialmente em 1995 – a OIT não tem instrumentos de punição?

Ana Aranha

Como assim?

Carlos Juliano Barros

Você já deve ter lido alguma notícia sobre algum tipo de sanção aplicada pela OMC a um país que descumpriu regras comerciais… Por exemplo: um tempo atrás eu vi que os Estados Unidos brigaram por 15 anos com países europeus pra que eles parassem de subsidiar a Airbus, a fabricante de aviões. Daí, a OMC autorizou que os Estados Unidos aplicassem tarifas sobre as importações de alguns produtos pra compensar a perda. 

Ana Aranha

Ah… entendi,  de fato a OIT não tem mecanismo pra punir um país que descumpra as suas convenções. É tudo na base do diálogo. Mas vamos retomar o fio da meada e voltar pros mitos do direito do trabalho?

Carlos Juliano Barros

Isso… qual vai ser agora?

Ana Aranha

Então, eu queria voltar para aquele assunto que a gente falou no comecinho: o Brasil é mesmo o campeão mundial de processos trabalhistas? Esse mito é interessante porque tem vários desdobramentos. Primeiro, aquela fake news de que Justiça do Trabalho só existe no Brasil. Aí também rolam umas comparações esdrúxulas com os Estados Unidos que dizem que eles só são o que são porque lá não tem leis trabalhistas, porque lá os empreendedores não são incomodados pelos “tentáculos” do Estado…

Carlos Juliano Barros

E por que são “esdrúxulas”?

Ana Aranha

Primeiro porque, no geral, o sistema jurídico dos Estados Unidos é totalmente diferente do nosso. Mas, pra não cometer nenhuma gafe, eu vou pedir ajuda pros universitários – no caso, pra professora Paula Freitas, do Mackenzie.  

Paula Freitas 

O direito nos EUA é de outra ordem. São sistemas jurídicos completamente distintos. Lá eles partem do fundamento do common law, que é um tipo de direito que vai se estabelecer a partir das decisões judiciais, no caso a caso. Não é como o nosso, que temos aqui a origem no civil law, que é essa coisa de um direito codificado. Um código que estabelece as premissas para que os fatos olhem o código para entender o que se aplica a eles.   

Carlos Juliano Barros

Pois é… assim como os Estados Unidos não têm um Código Trabalhista, como a nossa CLT, eles também não têm um Código Civil ou um Código Eleitoral. 

Ana Aranha

Mas isso não quer dizer que lá não existam leis trabalhistas. O Fair Labor Standards Act, a lei trabalhista mais importante dos Estados Unidos, proibiu o trabalho infantil, criou o salário mínimo e fixou a jornada básica semanal de 40 horas, entre outras coisas. E sabe de quando é essa lei, Caju?

Carlos Juliano Barros

Não faço a menor ideia.

Ana Aranha

1938! Ou seja, anterior à nossa CLT, que é de 43. E o fato de não ter uma Justiça especificamente para o Trabalho, como nós temos, não quer dizer que não existam instâncias com competência pra julgar os conflitos entre empregados e empregadores. É surreal que as pessoas achem que um trabalhador americano não possa recorrer à Justiça caso seja prejudicado pelo seu patrão. 

Carlos Juliano Barros

Sem falar nas indenizações, né?

Ana Aranha

Exato! Esse lance da indenização lembra aqueles julgamentos de filme de Hollywood. Nos Estados Unidos, os processos às vezes geram condenações astronômicas, porque os valores se estendem a todas as vítimas. Na verdade, segundo o Cássio Casagrande, que é professor da Universidade Federal Fluminense e procurador do Ministério Público do Trabalho, a ação trabalhista típica nos Estados Unidos é uma class action, ou seja, uma ação coletiva. 

Carlos Juliano Barros

Se a ação trabalhista típica é coletiva, isso deve reduzir bastante o número de ações individuais na Justiça, né?

Ana Aranha

Sim, de fato. Mas isso não quer dizer que não haja casos individuais, embora os coletivos ganhem mais notoriedade porque viram precedente. O Cássio Casagrande publicou um artigo no site Jota, reunindo casos que ficaram famosos. Em 2014, por exemplo, o Walmart foi condenado pela Suprema Corte da Pensilvânia em nada mais, nada menos que 188 milhões de dólares por não pagar horas-extras e por não remunerar as pausas no meio do expediente – eram benefícios que a direção do Walmart tinha resolvido eliminar. Você se lembra de alguma condenação pesada assim aqui no Brasil, Caju?

Carlos Juliano Barros

Ana, aqui tem trabalhador que perde dedo porque a máquina tava fora das regras de segurança, aí o cara tem que se afastar, fica no INSS, e ganha sabe quanto de indenização? Cinco, dez mil reais, por um dedo amputado. Eu sei disso porque já fiz matéria sobre casos assim.  

Ana Aranha

Agora voltando à questão do número de ações na Justiça… O Cássio Casagrande escreveu outro artigo desmascarando uma série de notícias falsas que comparavam Brasil e Alemanha. Ele mostrou que, na Alemanha, a cada cem trabalhadores, entre um ou dois procuram a Justiça. Já aqui no Brasil, pros mesmos cem trabalhadores, três ou quatro procuram a Justiça. Quer dizer: aqui existem, sim, mais ações trabalhistas do que na Alemanha. Mas nem de longe é esse absurdo todo que os mitos que rolam na internet e pelo WhatsApp tentam emplacar.

Carlos Juliano Barros  

Ana, o curioso é que não é só leigo que passa pra frente esse tipo de mentira. Até o Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, já embarcou nessa onda. Ele já chegou a dizer numa palestra na Inglaterra que o Brasil responde por 98% das ações trabalhistas do mundo.

Luís Roberto Barroso 

“A gente na vida tem que trabalhar com fatos e não com escolhas ideológicas prévias. O Brasil, sozinho, tem 98% das reclamações trabalhistas do mundo.” 

Carlos Juliano Barros

Quando o Barroso disse isso, o Brasil tinha cerca de 4 milhões de ações trabalhistas. Se elas correspondiam a 98% do total, então, fazendo aqui uma conta de padeiro, sobrariam só 81 mil ações trabalhistas no mundo todo! Não dá pra levar esse dado a sério, né, Ana? Só pra voltar ao exemplo dos Estados Unidos, em 2015, a Boeing fez um acordo de 57 milhões de dólares num processo que envolvia 190 mil trabalhadores e ex-trabalhadores. Taí mais uma prova de que esse mito de que o Brasil concentra quase todas as ações trabalhistas do mundo é uma lorota que não resiste a um debate sério.

Ana Aranha

Por fim, a gente tem o mito de que a CLT brasileira é uma cópia descarada da Carta del Lavoro da Itália fascista. Esse mito é fácil de demolir. Em primeiro lugar, vamo lembrar que CLT quer dizer “Consolidação das Leis do Trabalho”. Ou seja, é uma compilação, uma reunião de leis anteriores. A professora Paula Freitas, do Mackenzie, falou com a gente sobre isso.

Paula Freitas 

A gente tem já um discurso doutrinário que reconhece o marco da CLT como a grande estruturação da legislação trabalhista no Brasil. Porém, a CLT é resultado já da consolidação de uma série de dispositivos anteriores e que foi reunida em um diploma. Depois, ao longo das décadas que se seguiram, ela foi sendo revisitada e atualizada. Existe um discurso muito bem construído de que teria sido algo dado por Getúlio Vargas, numa compreensão de reafirmação aqui de valores do fascismo daquele tempo. Mas em verdade a gente teve uma construção social prévia. As disputas, mesmo a partir do processo de ruptura com a escravidão, já iam construindo as diversas faces do mercado de trabalho brasileiro. 

Carlos Juliano Barros

Mas e de onde vem essa história de que a CLT é uma cópia do código trabalhista da Itália fascista?

Ana Aranha

Então, na verdade, a tal da Carta del Lavoro não é nem sequer uma lei trabalhista. Ela é basicamente um programa de governo do Partido Nacional Fascista, comandado pelo Mussolini. Esse documento diz que na Itália existiria, entre aspas,”liberdade sindical”, mas que só os sindicatos reconhecidos pelo Estado poderiam representar os trabalhadores. Isso inclui, por exemplo, celebrar os acordos coletivos com os patrões.

Carlos Juliano Barros

Mas nesse ponto a nossa CLT diz algo bem parecido, né?

Ana Aranha

Nesse ponto, sim, com certeza. Mas mesmo essa história de os sindicatos serem “supervisionados” pelo Estado aqui no Brasil é mais antiga do que o fascismo italiano. Por aqui, já na década de 30, o Lindolfo Collor – avô do ex-presidente Fernando Collor de Mello – foi ministro do Trabalho e soltou um decreto que criava a figura do sindicato único controlado pelo Estado.

Carlos Juliano Barros  

O avô do Collor foi ministro do Trabalho na década de 30? Impressionante essas dinastias políticas que resistem ao tempo, né…

Ana Aranha

Pois é. E pra concluir esse assunto: uma coisa é dizer que um ou outro artigo da CLT têm semelhanças com a Carta del Lavoro da Itália fascista. Outra bem diferente é dizer que o conjunto da CLT é fascista. A CLT limitou jornada, regulamentou férias e repouso semanal, trouxe normas de saúde e segurança, definiu o salário mínimo, criou um sistema de inspeção do trabalho… Enfim, consolidou no Brasil uma série de direitos que países desenvolvidos e liberais já adotavam. Dizer que o código como um todo é fascista é ultrapassar qualquer limite de bom senso, né?    

Carlos Juliano Barros  

É que bom senso hoje é cada vez mais um artigo raro na praça, Ana. Mas pelo menos com esse episódio a gente tá mais equipado pra interagir nos grupos de Whatsapp da família e quem sabe até contribuir no combate à desinformação. E com isso a gente termina o episódio de hoje. Depois de desvendar  os mitos sobre o Direito do Trabalho, no próximo episódio a gente vai falar sobre os trabalhadores que não têm nenhum direito, zero. É o povo do crowdsourcing…

Ana Aranha

Não vamos nem explicar o que é crowdsourcing pra deixar a galera curiosa. Até porque vai ser o gran finale dessa temporada do Trabalheira. E vai ser legal porque a gente vai misturar tudo o que a gente vem discutindo ao longo desses dois meses de programa: inteligência artificial, precarização, novas formas de trabalhar… Então é isso, né, Caju? A gente fica por aqui! Vamos pros créditos… O Trabalheira é uma produção…

Carlos Juliano Barros  

Pera, Ana. Vamo terminar o programa ao som do jingle da campanha do Flávio Rocha cantado pelo Latino? Acho que é uma bela trilha sonora pra ajudar o pessoal refletir sobre tudo que a gente falou hoje… Arrocha, DJ! 

Jingle

Ana Aranha

E aí, o que você achou deste episódio? Tá gostando dos podcasts da Rádio Batente? Então deixe a sua avaliação lá no seu aplicativo de podcasts preferido. A gente vai adorar saber a sua opinião!

Carlos Juliano Barros  

O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo pra Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.

O roteiro original é de minha autoria, Carlos Juliano Barros, com a colaboração da Ana Aranha. O tratamento de roteiro é do Vitor Hugo Brandalise.

A edição e a montagem são da Juliana Santana, da Clara Rellstab e da Mari Romano. A música do programa é composta pela Mari Romano e pelo João Jabace, que também faz a finalização e a mixagem do programa. A coordenação digital é da Juliana Jaeger, e a distribuição é da Bia Ribeiro.

Obrigado pela companhia, Ana. Até a próxima!

Ana Aranha

Valeu, Caju! Até quarta que vem!

FIM.


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