A adesão da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes) a um protocolo de monitoramento socioambiental para a cadeia da carne, anunciada nesta segunda-feira (05), tem potencial de uniformizar boas práticas entre frigoríficos brasileiros e ajudar no combate ao desmatamento e outros crimes não só na Amazônia, mas em todo o país. A entidade agora é parte do projeto Boi na Linha, desenvolvido pelo Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) que desenhou um passo a passo para empresas do setor verificarem a origem do gado abatido e reduzirem o risco de compras ilegais.
Até agora, o Boi na Linha trabalhava para que seu protocolo fosse aplicado a todas as empresas signatárias do TAC da Carne (Termos de Ajustamento de Conduta que o MPF assina individualmente com frigoríficos, em estados da Amazônia Legal) e do Compromisso Público da Pecuária (CPP).
Ambos pactos preveem uma série de técnicas de verificação de fazendas de gado na Amazônia antes das compras de frigoríficos, de modo a assegurar que animais criados em áreas desmatadas ilegalmente, griladas ou com a utilização de trabalho análogo à escravidão não entrem nos abatedouros. Apesar do objetivo comum, havia critérios distintos entre os compromissos e as desigualdades no monitoramento persistem, mesmo entre as empresas signatárias – algo que pode ser corrigido com o ingresso da Abiec no grupo, já que a entidade passará a exigir que suas 39 empresas associadas adotem um protocolo comum, desenvolvido pelo Boi na Linha, como medida de verificação de suas compras.
Entre os frigoríficos integrantes da Abiec com unidades na Amazônia, há desde plantas que assinam os compromissos e realizam auditorias para comprovar sua aplicação, outras que são signatárias dos pactos mas não são auditadas e ainda aquelas que sequer firmaram algum dos compromissos públicos estabelecidos pela indústria. O portal do Boi na Linha permite a consulta da situação de cada empresa com unidades na região.
“A entrada da Abiec é um avanço. Não adianta você ter uma empresa com critérios de compra forte, recusando comprar de áreas com desmatamento ilegal, trabalho escravo, e, ao lado, ter outra empresa comprando. Além de uma violação à legislação brasileira, é uma concorrência desleal de mercado”, observa o Procurador Federal Daniel Azeredo, que atua no programa “Boi na Linha” desde sua implementação, em 2019.
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Além disso, com a adesão da associação ao Boi na Linha, o protocolo – que até então era aplicado apenas na região da Amazônia – será estendido a todos os biomas do Brasil. A Abiec tem 21 associados com unidades no Cerrado, por exemplo, além de 16 empresas com frigoríficos na Amazônia e outras unidades espalhadas pelo resto do país, segundo o levantamento do Imaflora.
“É um grande passo para diferenciar o produtor que faz direito, que cumpre a lei, daquele que não cumpre. É bom para o pecuarista, para o consumidor, para todos”, celebra Marina Piatto, diretora-executiva do Imaflora, ONG que também integra, junto com a Repórter Brasil, a Aliança pelos Direitos Humanos em Cadeias Produtivas.
Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec, projeta a criação de um banco de dados comum de fornecedores – facilitando o monitoramento da cadeia produtiva – e a realização de mapas de risco da pecuária no país. Mas não há prazos e metas estabelecidos até agora.
A expansão do programa, no entanto, está longe de garantir o fim do desmatamento e de outros crimes socioambientais na cadeia produtiva da pecuária. O Boi na Linha inclui medidas para monitorar os fornecedores indiretos dos frigoríficos e para inibir a “lavagem de gado” – ou seja, as fraudes documentais que permitem a venda de animais de origem desconhecida. No entanto, a iniciativa não se aplica aos fornecedores indiretos, atualmente o principal gargalo de rastreabilidade no setor.
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Um olho no consumidor, outro no investimento
O novo passo da Abiec foi dado mirando as exigências do consumidor e também dos investidores – dois públicos que tem demonstrado preocupação crescente com a origem da matéria-prima da carne brasileira, já que 90% do desmatamento na Amazônia foi feito para dar lugar ao pasto, segundo estimativa do Imazon, organização que monitora a cadeia da pecuária.
A Abiec representa as indústrias responsáveis por quase toda a carne brasileira negociada em mercados internacionais – em 2022, foram 12,97 bilhões de dólares em exportações de carne bovina, equivalente a 2,26 milhões de toneladas, de acordo com dados do Ministério da Economia compilados pela Abiec.
A União Europeia aprovou recentemente uma lei que proíbe a venda, dentro do bloco, de produtos oriundos de áreas desmatadas na Amazônia, o que pode trazer impacto aos negócios, já que sequer os maiores frigoríficos do país conseguem garantir a origem regular de toda a carne que produzem.
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Mas há preocupação também com o crédito bancário, que começa a sofrer restrições. “A transparência no monitoramento é necessária não só para vender mais, mas também como critério para receber investimentos. Queremos nos posicionar no mercado com essa régua”, afirma Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec.
Nesta semana, a Febraban anunciou que os bancos brasileiros irão checar se frigoríficos compraram gado de áreas desmatadas ou usaram trabalho escravo na Amazônia Legal antes de concederem empréstimos. Em 2021, o BNDES se antecipou a esse movimento e endureceu o monitoramento sobre este setor depois que a Repórter Brasil revelou que o banco financiava frigoríficos com alto índice de irregularidades de suas compras, contrariando a política interna do banco.
Mas a nova regulação da Febraban não determina restrição de crédito a fazendeiros desmatadores, por exemplo, o que é motivo de crítica da Abiec. “A indústria ainda está penando para monitorar o fornecedor indireto e é provável que ele tenha um relacionamento com o banco. Então, os bancos também precisam ajudar a fazer esse controle. Esse dinheiro circula no sistema financeiro”, cobra Fernando Sampaio, da Abiec.
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Boi na Linha inspirou Febraban
Procurada pela reportagem, a Febraban informou que o programa “Boi na Linha” foi uma das referências para as novas políticas de monitoramento aos frigoríficos anunciadas nesta semana.
Apesar dessa inspiração, o procurador do MPF Daniel Azeredo assinala que o anúncio da entidade bancária falhou em explicar melhor os critérios do protocolo de verificação que será cobrado dos bancos associados. “É preciso saber em detalhe de qual método de rastreabilidade estamos falando. Não adianta só papel. É preciso contar com a tecnologia, que você não tem como fraudar”, pondera.
Em nota enviada por e-mail, a Febraban defende que “o novo protocolo da Autorregulação Bancária, direcionado às operações de crédito com clientes frigoríficos e matadouros de abate bovino, é uma iniciativa complementar a uma série de iniciativas para a gestão dos riscos de desmatamento nas operações bancárias”, citando como exemplos normas que já estão instituídas por determinação do Banco Central do Brasil. A íntegra da manifestação pode ser lida aqui.
Mapeamento inclui 158 plantas
Em atuação conjunta com o Ministério Público Federal, o Boi na Linha estabelece condutas de transparência e monitoramento para auxiliar empresas produtoras a cumprirem o TAC da Carne e o CPP.
Desde sua implementação em 2019, o programa mapeou 158 abatedouros e frigoríficos em cinco estados da Amazônia Legal: Acre, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia e Pará. Deste total, 111 unidades (70%) possuem TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado com o MPF, de acordo com dados fornecidos pelo Imaflora O CPP foi assinado em 2009 apenas pelos três maiores frigoríficos do Brasil, JBS, Marfrig e Minerva.
A estimativa do procurador Daniel Azeredo é de que, atualmente, entre 70% e 80% do gado produzido nos estados da Amazônia esteja sob a chancela do TAC.