AO VOLTAR DE UMA CAÇADA, o pai de Mydjere contou que nunca tinha visto a floresta tão seca. “Debaixo das árvores as folhas estão muito secas, meu filho. Se pegar fogo aqui, vai queimar tudo”, previu. Não deu outra. Duas semanas depois, a Terra Indígena Baú, no sul do Pará, viu as chamas destruírem parte do território. Era final de agosto.
“Eu nunca tinha visto uma queimada como aquela. A gente ficou até assutado”, relata Mydjere Kayapó Mekrangnotire, liderança do povo Kayapó Mekrãgnotí, que vive entre os rios Xingu e Tapajós e próximo da BR-163, uma das regiões mais queimadas do país neste ano.
Ele conta que ficou surpreso ao ver como o fogo queimava a floresta por baixo, poupando as árvores mais altas, mas levando tudo o que via pela frente. “Perdemos muito pé de açaí, pequi, castanheiras, coqueiros, nossas roças, remédios medicinais, tudo”, descreve Mydjere, que também é relações públicas do Instituto Kabu, organização que representa os Kayapó Mekrãgnotí. “Em 2024, a queimada saiu do controle”, afirma.
O incêndio descrito por Mydjere chamou atenção também de pesquisadores do ISA, o Instituto Socioambiental. Ao analisarem os impactos das queimadas sobre as terras indígenas (TIs), eles constataram que os incêndios consumiram uma parte da floresta que não costuma pegar fogo, o chamado sub-bosque.
Um dos estratos de uma floresta tropical, o sub-bosque é formado por árvores menores que crescem abaixo do dossel florestal – o teto da floresta, composto pelas espécies mais altas. No sub-bosque, além da vegetação mais baixa, há ainda uma mistura de mudas e plantas jovens que irão crescer e formar a floresta no futuro.
“É uma região da floresta que não deveria pegar fogo [por geralmente ser úmida]. Com a perda do sub-bosque, a floresta perde a capacidade de manter a umidade do solo e fica mais suscetível a novas queimadas”, explica o antropólogo Tiago Moreira, um dos autores da nota técnica “Queimadas em Terras Indígenas”, divulgada nesta sexta-feira (1º) pelo ISA e assinada também por Luiza de Souza Barros, William Pereira Lima e Isabela Maeda Otsuki.
As queimadas na Amazônia geralmente estão associadas ao desmatamento, segundo os pesquisadores. Mas, nas terras indígenas, a derrubada da vegetação teve menor participação nos incêndios em 2024, prevalecendo a queima de áreas de savana ou pastagens e das matas de sub-bosque.
Para chegar às conclusões, o estudo analisou dados do monitor Amazon Fire Dashboard (“Painel de Queimadas na Amazônia”), iniciativa ligada à Nasa (agência espacial norte-americana) e à Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).
O painel considera a localização, a intensidade, a duração e a taxa de propagação das chamas para classificar as queimadas em quatro tipos: incêndio de desmatamento; incêndio florestal de sub-bosque; pequenos incêndios agrícolas; e incêndios de savana ou pastagens.
As informações foram cruzadas com os dados de focos de calor e de desmatamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e com o Monitor do Fogo, do MapBiomas. O período analisado foi o de 1º de janeiro a 16 de setembro.
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O estudo ressalta que a maior parte das queimadas está fora de áreas protegidas, com apenas 13% dos incêndios em TIs e 7% em unidades de conservação, enquanto que as áreas privadas com CAR (Cadastro Ambiental Rural) respondem por 56% dos focos de calor.
Nas terras indígenas, o que preocupa é que um terço do que foi queimado “eram áreas de vegetação nativa, degradando zonas de sub-bosque e colocando as florestas em risco”, diz o documento. A TI mais afetada pelo fogo é a Kayapó, também no sul do Pará, onde os incêndios de sub-bosque representaram quase 70% da área queimada.
“Essas queimadas afetam a capacidade das florestas de reciclar água, renovar o solo e armazenar carbono, funções essenciais para a saúde do ecossistema e para a mitigação dos impactos climáticos”, destaca a análise do ISA.
O aumento da queima de sub-bosque ocorre em um ano que vai entrar para a história como o de maior número de queimadas em terras indígenas, com mais de 28 mil focos de calor detectados até o final de outubro, segundo o painel BDQueimadas, do Inpe. Isso é quase três vezes mais do que o registrado nesses territórios em 2023 inteiro, ano já marcado por tempo seco e queimadas.
Fogo encontrou floresta muito seca após vários meses de El Nin̈o
Quando o fogo entra em uma floresta fechada, ele caminha rasteiro e devagar. As chamas percorrem inicialmente a serrapilheira, uma camada de folhas e galhos sobre o solo que pode chegar a vários centímetros de altura.
Como a serrapilheira geralmente é úmida, ela apaga o fogo. Mas se o grau de ressecamento é alto, como ocorre em 2024, o fogo consome essa camada e sobe pela floresta. “Essa queima compromete as plantas mais baixas, que geralmente são mais novas em idade e mais sensíveis ao fogo do que as árvores já formadas, que possuem a casca mais grossa”, explica Kátia Ono, ecóloga e pesquisadora do ISA.
As árvores maiores também são afetadas. Elas não serão consumidas pelo fogo, mas podem morrer durante ou após a queimada, afirma Ane Alencar, especialista em monitoramento de incêndios e diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
“Uma vez que isso acontece, essa floresta fica muito mais suscetível a outros incêndios, porque várias árvores vão morrer e cair depois [da queima]. Elas vão machucar outras árvores, e assim vai ter mais material combustível para queimar. O dossel fica mais aberto. O interior da floresta vai ser mais seco. E na próxima estação seca, se o fogo entrar, vai ser mais alto, podendo até ter fogo de copa [das árvores]”, diz Alencar.
Embora os incêndios de sub-bosque sejam incomuns em uma floresta úmida como a Amazônia, eles se tornaram possíveis graças à ação humana, que deixou o bioma mais seco por meio de incêndios e desmatamentos criminosos.
Essa perda florestal acaba provocando alterações no microclima, ao deixar a floresta menos úmida. “Grande parte da chuva na Amazônia é gerada pela própria floresta tropical, mas conforme as árvores desaparecem, a precipitação diminui”, diz o relatório do ISA.
Outra parte da explicação se deve ao El Niño, fenômeno climático caracterizado pelo aquecimento da superfície do Oceano Pacífico, registrado de junho de 2023 a junho de 2024 na atual temporada. “É no final do ciclo do El Niño que fica pior, pois acumula a seca durante todo o período”, diz Ono.
“É muito difícil a gente ter incêndios florestais em um ano úmido ou mais ou menos úmido”, reforça Ane Alencar, do Ipam.
Rodovias como vetor do fogo
A expansão e o asfaltamento das rodovias na Amazônia também contribuíram para o aumento das queimadas em 2024, convertendo-se em vetores do fogo, segundo a análise do ISA.
Mais de 30% dos focos de calor na Amazônia Legal se concentraram no entorno de três rodovias federais: a BR-163 (Cuiabá-Santarém), a 319 (Porto Velho-Manaus) e a 230 (Transamazônia). “É possível ver o traçado da rodovia pelo caminho do fogo”, diz Tiago Moreira, do ISA.
Considerando 40 km para cada lado da pista, o entorno das rodovias federais na Amazônia Legal foi responsável por 8 milhões de hectares destruídos até setembro, segundo dados do MapBiomas, o que representa quase metade (44%) do total de área queimada no bioma.
Para os pesquisadores, a pavimentação da BR-163, ocorrida há cerca de 10 anos, é um exemplo de como grandes obras de infraestrutura podem impactar profundamente o uso da terra. “A pavimentação de uma grande rodovia como essa desperta interesses locais pela abertura de novas [estradas] vicinais, de onde também começam a ser criados novos ramais e estradas secundárias. As áreas mais acessíveis se tornam mais valorizadas, levando à grilagem de novas áreas, mais distantes, mas acessíveis através dos novos ramais. Por esses caminhos, a floresta é derrubada e depois queimada”, diz o texto.
Os especialistas alertam ainda que a destruição da vegetação nativa pode acelerar um processo de degradação das TIs, o que seria um risco para a preservação da Amazônia, já que as terras indígenas estão se tornando ilhas de conservação: sem ligações entre elas, e rodeadas de pastos e lavouras.
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