O BRASIL RESGATOU 2.004 trabalhadores de condições análogas às de escravo em 2024, segundo dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O número é menor que os 3,2 mil de 2023 e os 2,5 mil de 2022. Com isso, o país ultrapassou 65 mil trabalhadores desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base da política antiescravista do país, que completam 30 anos em 2025.
A divulgação dos números faz parte da celebração, nesta terça (28), do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi escolhida por causa da Chacina de Unaí, quando quatro servidores públicos foram executados no noroeste de Minais Gerais, durante uma fiscalização trabalhista, a mando dos fazendeiros Antério e Norberto Mânica, há exatos 21 anos. Norberto, o último dos condenados pelo crime que estava foragido, foi preso no último dia 15.
O total de 2024 é um pouco menor do que a prévia divulgada aqui no início do mês devido à chegada de informações de operações que, como informado por esta coluna na época, ainda estavam sendo totalizadas.
A atividade de onde mais trabalhadores foram resgatados foi a construção civil (293 pessoas), seguida pelo cultivo de café (214), o cultivo de cebola (194) e serviços de preparação da terra para cultivo e colheita (120).
Desses 293, 163 eram operários chineses encontrados nas obras da fábrica de automóveis da BYD em Camaçari (BA) em dezembro – o maior resgate do ano.
No total, foram 19 pessoas resgatadas do serviço doméstico em 2024, como uma trabalhadora negra, de 61 anos, encontrada na casa de uma vereadora em Minas Gerais com a mesma família há 28 anos.
Minas Gerais, aliás, foi o estado com o maior número de resgatados (500), acompanhado por São Paulo (467), Bahia (198), Goiás (155) e Pernambuco (137). E encabeça a lista dos que foram palco do maior número de operações de resgate: Minas (42), São Paulo (29), Pernambuco (14), Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul (12) e Bahia e Goiás (10).
As operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel são coordenadas pela Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regionais do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.
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Resgate nas obras da BYD foi o maior de 2024
A Jinjiang, prestadora de serviços para construção civil da BYD e a própria empresa foram responsabilizadas pelos auditores fiscais do trabalho e notificadas pelo grupo móvel em 23 de dezembro. Após a operação, a montadora rompeu o contrato com a terceirizada e atendeu as demandas do poder público quanto a alojamentos, pagamentos e retorno dos operários de volta à China. Também afirma que regularizou as condições de trabalho dos demais empregados em seu canteiro de obras na Bahia.
“A BYD Auto do Brasil reitera seu compromisso com o cumprimento integral da legislação brasileira, em especial no que se refere à proteção dos direitos dos trabalhadores. Por isso, está colaborando com os órgãos competentes desde o primeiro momento e decidiu romper o contrato com a construtora Jinjiang”, afirmou Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da BYD Brasil, em nota à imprensa logo após o resgate.
Contratos analisados pela fiscalização previam jornada de dez horas por dia, seis dias por semana, com possibilidade de extensão, o que levava a uma jornada semanal de 60 a 70 horas — muito maior do que o limite legal no Brasil de 44 horas. A jornada exaustiva criava um ambiente propício a acidentes de trabalho – houve pelo menos quatro, inclusive com amputação de membros e perda de movimentos nos dedos.
Um dos alojamentos registrava 31 trabalhadores para um único vaso sanitário, levando os operários a terem que acordar às 4h para enfrentar uma fila e começar o dia. Muitos dormiam sem colchões, outros com produtos tão finos que era como se dormissem sem nada. As cozinhas estavam em condições precárias de higiene.
Além das condições degradantes, a fiscalização também configurou trabalho forçado, que ocorre quando são impostas condições que impedem que as vítimas se desvinculem de seus patrões e do serviço por medo de não receberem pelo tempo trabalhado e terem que arcar com os custos de retorno.
Vereadora manteve doméstica negra em escravidão por 28 anos
Em outra operação, conduzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal, uma trabalhadora doméstica, negra, de 61 anos, foi resgatada de uma situação análoga à escravidão da casa da então vereadora Simone Rezende Rodrigues da Silva (União Brasil), conhecida como Simone Cabral, de Além Paraíba (MG). De acordo com a fiscalização, ela estava há 28 trabalhando para a família.
A vítima é uma mulher pobre, oriunda da zona rural de Leopoldina (MG). Sem acesso à educação formal, ela nunca aprendeu a ler ou a escrever. Durante a inspeção, realizada em dezembro, foi constatado que ela trabalhava sem descanso e não tinha direito a lazer ou vida social.
“As violações encontradas no presente caso vão além da simples negação de direitos à trabalhadora. Ao lado da ausência de condições justas, do não-pagamento de salários, da usurpação dos períodos de descanso e lazer, à trabalhadora foi negado o básico para a sua existência como pessoa”, afirma o relatório de fiscalização, coordenada pelo auditor fiscal Luciano Pereira de Rezende. A coluna tentou contato com a vereadora na época do resgate, mas não teve sucesso.
A vereadora, que está em seu terceiro mandato, durante depoimento presente no relatório de fiscalização, negou a exploração e disse que a trabalhadora era uma “pessoa da família”.
Chacina de Unaí e Dia de Combate ao Trabalho Escravo
Os auditores fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira realizavam uma fiscalização rural de rotina em fazendas de feijão da região Noroeste de Minas Gerais quando foram atacados em 28 de janeiro de 2004.
O motorista Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, não resistiu e faleceu. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel parou o carro da equipe e homens fortemente armados desceram e cometeram um massacre. Os auditores fiscais morreram na hora.
Os irmãos Antério e Norberto Mânica, que estavam entre os maiores produtores de feijão do país, foram apontados como os mandantes pela Polícia Federal. Mas levou quase 21 anos para que ambos estivessem cumprindo pena.
Para entender a força política dos Mânica, mesmo após ser vinculado à chacina, Antério foi eleito prefeito de Unaí, em 2004, com 72,37% dos votos válidos. Aguardando o processo em liberdade, ele pediu votos à reeleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2022, através de um vídeo que circulou pelas redes sociais.
A história desse caso se confunde com a trajetória recente do combate à escravidão contemporânea no país, apesar de os quatro funcionários do então Ministério do Trabalho e Emprego não estarem fiscalizando esse tipo de exploração no momento de sua execução. Tanto que o 28 de janeiro tornou-se, desde 2009, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
Em 2004, a votação em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com escravos e sua destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos, ocorreu sob forte comoção pública gerada pela execução. Isso pressionou a decisão dos deputados, que aprovaram o texto.
Em 2014, a Emenda Constitucional 81 foi aprovada no Senado Federal e promulgada pelo Congresso Nacional, mas – desde então – aguarda regulamentação.
Trabalho escravo contemporâneo
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.
No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
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