Ambev e Prefeitura de Salvador são responsabilizadas por trabalho escravo de ambulantes no Carnaval

Fiscalização no circuito Barra-Ondina tomou depoimentos de vendedores e constatou jornadas de até 20 horas diárias, além de condições precárias de higiene
Por Leonardo Sakamoto e Diego Junqueira
 12/03/2025

A AMBEV E A PREFEITURA DE SALVADOR (BA) foram responsabilizadas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) pela exploração de trabalho análogo ao de escravo de 303 vendedores ambulantes de bebidas durante o Carnaval da capital baiana neste ano. A empresa e a administração municipal foram notificadas nesta quarta-feira (12).

A fiscalização foi realizada por uma equipe no circuito Barra-Ondina entre os dias 19 de fevereiro e 4 de março, e coletou documentos, tomou depoimentos de vendedores e verificou condições de trabalho.

A empresa de bebidas, na avaliação da fiscalização, não foi apenas patrocinadora e fornecedora, mas era de fato empregadora dos vendedores, devendo arcar com salários e direitos. Eles não possuíam autonomia para realizar a atividade econômica por causa da forma desenhada pelo município e pela Ambev para a venda de bebidas, colocando-os “em situação de total subordinação”.

Já administração municipal foi corresponsabilizada pelo trabalho escravo por ter firmado contrato com a empresa de bebidas, cedendo-lhe exclusividade, e assumindo não só a seleção dos trabalhadores, mas também a fiscalização da execução da atividade. Mas isso teria ocorrido em benefício da empresa, pois esse microgerenciamento não atuou para impedir a submissão a condições degradantes.

Em nota, a empresa afirmou que “toda a comercialização de produtos durante o Carnaval na cidade é realizada por ambulantes autônomos credenciados diretamente pela Prefeitura, seguindo as regras estabelecidas em edital de patrocínio, e sem qualquer relação de trabalho ou prestação de serviços com a Ambev”.

Ainda segundo a nota, a empresa sustenta que está prestando esclarecimentos ao MTE, fornecendo toda a documentação solicitada. “Seguimos à disposição para colaborar com qualquer informação necessária. Nosso compromisso com os direitos humanos e fundamentais é inegociável e não aceitamos qualquer prática contrária a isso”, diz a nota.

A Prefeitura de Salvador informou que tem adotado nos últimos anos “diversas medidas para melhorar as condições de trabalho dos ambulantes durante as festas populares”. A gestão municipal disse ainda que “não foi autuada pelo Ministério do Trabalho e Emprego em relação a esse assunto”. Veja a íntegra da nota ao final do texto.

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Segundo a Secretaria Municipal de Ordem Pública, 2,5 mil vendedores de bebidas foram selecionados a atuar no Carnaval. O governo federal configurou situação de trabalho escravo entre essas 303 pessoas em pontos de venda fixos. Avalia que o número poderia ser ainda maior, ou seja, o que foi constatado foi apenas um recorte do problema.

“Configurou-se o trabalho dos vendedores aqui listados como realizado em condições análogas às de escravizados, tendo como responsáveis por essa conduta as pessoas jurídicas notificadas: Ambev S.A. e Município de Salvador”, afirma o relatório. A prefeitura é comandada por Bruno Reis (União Brasil).

Nas últimas semanas, reportagens na imprensa trouxeram reclamações de denúncias quanto às péssimas condições desses trabalhadores.

‘Jornada de 14 a 20 horas por dia’

De acordo com a fiscalização, os vendedores foram submetidos a condições de trabalho que afrontavam os princípios da dignidade da pessoa humana. Para garantir pontos de venda, vendedores passaram a residir ao relento dias ou mesmo semanas antes das festas, sem infraestrutura para descanso, higiene ou segurança, expostos à violência urbana, intempéries e privação de sono e com jornadas exaustivas.

“A maioria dos vendedores entrevistados repousavam sobre pedaços de papelão encharcados pelas chuvas, ou em pedaços de espuma e colchões, sob lonas improvisando barracas ou barracas de camping sempre ao lado dos respectivos pontos de vendas”, diz o relatório de fiscalização.

As jornadas iam de 14 a 20 horas de trabalho por dia, sem intervalos para descanso e alimentação adequados. Não havia condições sanitárias e de higiene mínimas para realização das necessidades fisiológicas, além de ausência de fornecimento de água potável em quantidade suficiente e em condições higiênicas.

“Muitos relataram não conseguir adormecer, mesmo pela manhã, após o encerramento do movimento de foliões, fosse por receio de furtos e violência, fosse pelos barulhos de passantes e testes de sons em trios elétricos ou camarotes, pelo calor do sol pleno do dia ou pelas chuvas constantes no período da festa”, aponta o relatório.

“A gente faz o Carnaval acontecer e somos escravizados”, afirmou um dos ambulantes à fiscalização.

Trabalhadores vão receber seguro-desemprego

Os auditores fiscais avaliam que os vendedores de bebidas estão obrigados a cumprir regras laborais impostas por um empregador. “O contrato em questão, ainda que firmado entre poder municipal e Ambev, gera obrigações específicas a serem cumpridas pelos trabalhadores atuantes no comércio de rua, quanto aos meios de trabalho e objeto da execução dos seus serviços”, afirmam.

E avaliam que o trabalho dos vendedores faz parte da atividade econômica da empresa, não sendo apenas patrocínio ou apoio. Tampouco, segundo a fiscalização, são apenas revendedores, pois não exerceriam livre iniciativa de sua atividade, com preços e padrões determinados e fiscalizados.

“Sanções rígidas são impostas ante o descumprimento das regras, chegando à perda do direito de o trabalhador laborar no comércio de rua”, aponta o relatório.

Uma audiência foi convocada na manhã de 26 de março com os envolvidos. Por enquanto, os trabalhadores terão acesso a três parcelas do seguro-desemprego pago a vítimas de trabalho escravo.

Escravidão, do carnaval ao rock

Não é a primeira vez que a fiscalização encontra trabalho escravo entre trabalhadores de festas e eventos. Em um dos casos mais recentes, auditores fiscais do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho no Rio de Janeiro e procuradores do Ministério Público do Trabalho da 1ª Região concluíram, em dezembro passado, operação que resultou no resgate de 14 pessoas na edição 2024 do Rock in Rio. A empresa organizadora foi diretamente responsabilizada, mas negou as acusações.

Parte dos trabalhadores eram levados a dobrar a jornada por dias seguidos na esperança de receber mais, chegando a trabalhar por 21 horas em um único turno e descansando por apenas três horas. Os fiscais do trabalho encontraram os 14 trabalhadores precariamente sobre papelões, sacos plásticos ou lonas, alguns com cobertores, demonstrando que havia um planejamento prévio para pernoitar no local. As vítimas atuavam como carregadores de grades, equipamentos, bebidas e estruturas metálicas, na montagem do festival e na limpeza de alguns espaços.

Em nota, a Rock World negou as acusações de trabalho escravo e disse que as autoridades “lançaram sérias acusações contra a Rock World, de maneira precipitada, desrespeitando o direito constitucional ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência, já que os fatos ainda estão sob o crivo de um processo administrativo recém iniciado”. Veja mais informações sobre o caso aqui.

O que é trabalho escravo contemporâneo

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.


*Leia a íntegra dos posicionamentos enviados pela Ambev e pela Prefeitura de Salvador

Ambev

Em 2025, a Ambev foi patrocinadora do carnaval organizado pela Prefeitura de Salvador. Toda a comercialização de produtos durante o Carnaval na cidade é realizada por ambulantes autônomos credenciados diretamente pela Prefeitura, seguindo as regras estabelecidas em edital de patrocínio, e sem qualquer relação de trabalho ou prestação de serviços com a Ambev.

Assim que tomamos conhecimento da notificação, imediatamente prestamos esclarecimentos ao MTE, fornecendo toda a documentação solicitada. Seguimos à disposição para colaborar com qualquer informação necessária. Nosso compromisso com os direitos humanos e fundamentais é inegociável e não aceitamos qualquer prática contrária a isso.

Prefeitura de Salvador

A Prefeitura de Salvador informa que tem adotado ao longo dos últimos anos diversas medidas para melhorar as condições de trabalho dos ambulantes durante as festas populares da cidade, incluindo o Carnaval. A gestão municipal comunica ainda que não foi autuada pelo Ministério do Trabalho e Emprego em relação a esse assunto.

Entre as ações relativas aos trabalhadores ambulantes realizadas pela gestão municipal no Carnaval, estão a isenção de todas as taxas anteriormente cobradas e o cadastramento 100% on-line, que acabou com as filas e trouxe mais transparência ao processo e conforto para os trabalhadores.

Também houve cursos de capacitação para os ambulantes, entrega de cestas básicas e kits de higiene, instalação de banheiros equipados com chuveiros e pontos para carregamento de celular e máquina de cobrança. Além disso, a Prefeitura acolhe durante o período do Carnaval os filhos de ambulantes cadastrados pela Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) para trabalhar na festa. O programa Salvador Acolhe tem capacidade para atender até 600 crianças e adolescentes e foi conhecido este ano pela ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo.

Os avanços no ordenamento do comércio ambulante também foram reconhecidos pela população soteropolitana. Uma pesquisa realizada pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult), em parceria com a Ouvidoria Municipal, aponta que 96% das pessoas aprovam as ações da Prefeitura nessa área. O levantamento ouviu 5.892 pessoas.

Por entender o Carnaval como um período em que os trabalhadores ambulantes têm uma oportunidade para incrementar a renda ou até mesmo garantir seu sustento nos meses seguintes, a Prefeitura tem atuado continuamente para garantir a cada ano melhores condições para esta categoria. Mais de 4,3 mil ambulantes foram licenciados para o Carnaval, movimentando um contingente de mais de 20 mil pessoas envolvidas na comercialização de produtos nos circuitos.

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