O painel na parede do plenário da Câmara Municipal de Itaituba, no Pará, tem o desenho de um indígena ao lado de um garimpeiro e de toras de madeira. Boto, tartaruga e onça compõem a imagem. A pintura passa a impressão de uma possível harmonia entre a floresta e o garimpo, aludida pelas cores amenas. Se fosse uma obra realista, contudo, o tom dominante seria o ocre da lama que assoreia a floresta para dar lugar às valas em busca de ouro, com toques de vermelho do sangue indígena derramado há séculos.
É do legislativo de Itaituba, cujo apelido é “cidade pepita” (em referência ao ouro abundante), que a Repórter Brasil parte para entender como funciona o lobby que quer legalizar o garimpo nas terras indígenas dos Munduruku. Políticos locais selam alianças com deputados, senadores e empresários em uma articulação que conta com apoio de um corpo técnico formado por pelo menos um advogado, um antropólogo e um engenheiro.
Numa ponta desse lobby estão indígenas cooptados pelo garimpo, que ganham poder em associações e em cargos executivos, como o de vice-prefeito da vizinha Jacareacanga — que viveu dias de terror, em maio, com garimpeiros incendiando casas e fazendo um cerco à cidade. No outro extremo do esquema, estão ministros do governo Bolsonaro e até o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que abrem as portas de seus gabinetes em Brasília para receberem os lobistas. Tudo isso com a benção do presidente Jair Bolsonaro, defensor declarado do garimpo em terras indígenas.
“Há uma articulação inédita de garimpeiros que atuam junto aos indígenas aliciados nas terras dos Munduruku”, explica a antropóloga Luisa Molina, que coordenou o estudo “O cerco do Ouro: garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, usado como base para a Repórter Brasil investigar o lobby. Esse grupo, segundo a antropóloga, quer passar um aspecto de “pseudo legalidade” com o argumento de que os indígenas concordam com o garimpo. Mas não é bem assim. Investigações mostram que alguns indígenas são ‘comprados’ para darem esse apoio à atividade ilegal, gerando divisões internas nas comunidades.
Outra estratégia dos lobistas é uma antecipação ao projeto de lei que regulamenta o garimpo em áreas de reserva e terras indígenas. Ao arregimentar indígenas, esse grupo quer passar para a sociedade a ideia de que o garimpo é um desejo dos Munduruku e não de empresários que faturam com a atividade, deixando o rastro de lama e destruição para os próprios indígenas. A pressão dos lobistas é justamente para aprovação do Projeto de Lei 191 de 2020, de autoria do Executivo. A aprovação do PL está entre as 35 prioridades do governo federal, entregues por Bolsonaro ao Congresso Nacional em fevereiro.
Patrocinado pelo presidente Bolsonaro, o projeto prevê permissão para lavra garimpeira em terras indígenas desde que haja consentimento das comunidades afetadas — caso aprovado, no entanto, os indígenas não mais teriam poder de veto. De acordo com a Constituição, atividades econômicas nas reservas indígenas só podem ser realizadas com prévia autorização do Congresso Nacional e mediante consulta aos indígenas.
O Ministério Público Federal (MPF) aponta a inconstitucionalidade do projeto de lei, destacando que os mais de “4 mil procedimentos minerários incidentes em 216 terras indígenas demonstram que não são os interesses dos indígenas ou da União que motivam a proposta de regulamentação dessa atividade, mas sim o interesse econômico de determinados grupos”.
Esses grupos estão cada vez mais sedentos e violentos. Em maio, diversos ataques a tiros foram disparados em direção às comunidades indígenas na Terra Indígena Yanomami. No final do mês, foi a vez dos Munduruku serem os alvos, quando garimpeiros e indígenas aliciados promoveram um levante contra a presença da Força Nacional de Segurança e da Polícia Federal em Jacareacanga — que estavam ali justamente para remover garimpeiros ilegais. Durante o motim, queimaram a casa da liderança indígena Kabaiwun Munduruku (antes conhecida por Leusa) e da sua mãe.
“Políticos, empresários e garimpeiros pensam que podem fazer o que quiserem só porque o presidente Bolsonaro é favorável ao garimpo”, lamenta a líder indígena Alessandra Korap Munduruku.
Áudios enviados pelo Whatsapp apontam a participação do vice-prefeito de Jacareacanga, o índigena Valmar Kaba Munduruku (Republicanos) nos ataques à aldeia. Vinte dias depois dos levantes, o político, um dos expoentes dos indígenas pró garimpo, foi alvo de operação da Polícia Federal e está foragido. Ao lado dele, está o presidente da Associação Índigena Pusuru, Francenildo Kaba — outro que foi cooptado pelos garimpeiros.
Em abril, Francenildo esteve em Brasília para tentar falar com o presidente Bolsonaro. Ele estava em companhia de Edward Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas”, que atua para reverter demarcações de terras indígenas, sempre com um discurso conservador e de ataque a ONGs.
Luz assessora a organização presidida por Francenildo, que publicou uma nota, em abril, defendendo o PL 191. “Chega de sermos manipulados por ongueiros que só querem nos usar como cobaias ou escudos humanos contra o nosso próprio desenvolvimento”. O vice-prefeito, o presidente da associação e o antropólogo foram procurados pela Repórter Brasil, mas não responderam aos pedidos de entrevista.
Sete dias após a manifestação de Francenildo, 72 caciques Munduruku contestaram a legitimidade da Associação Indígena Pusuru. Na carta que escreveram, declaram ser contrários ao PL, que chamam de “projeto de morte”. Eles atribuem ao projeto a divisão dos Munduruku, a violência e o ataque às mulheres e lideranças que defendem o território. “Nenhum senador, deputado ou vereador pode falar pelo povo Munduruku, e nem dizer que representa o povo”, afirmam os caciques.
Em Brasília, Francenildo foi acompanhado pelo advogado Fernando Brandão, dono do maior escritório de advocacia de Itaituba. O advogado lamentou que a comitiva não foi recebida pelos representantes do governo após pressão do Ministério Público Federal (MPF). “Nada democrático isso”, disse Brandão.
Ao saber da visita programada para 19 de abril, Dia do Índio, o MPF enviou recomendação aos órgãos públicos para não recebê-los. “A comitiva não representa o interesse da maioria da etnia Munduruku, e sim apenas o interesse de mineradores ilegais que aliciaram e financiam o grupo minoritário”, dizia a recomendação assinada por 14 procuradores.
O MPF afirmou que os integrantes da comitiva querem seguir usando maquinário pesado dentro das TIs; que tentaram invadir o Igarapé Baunilha (porta de entrada para a bacia do rio Cururu), mas mesmo armados, foram impedidos por guerreiros Munduruku. Os procuradores mostram também que esse grupo teve envolvimento no incêndio e destruição à sede da Associação de Mulheres Wakoburun, em março, e outras associações indígenas que resistem ao garimpo. E que são financiados por um grupo de empresários (leia mais abaixo).
Para Brandão, contudo, os indígenas são donos das terras e “a maioria esmagadora deles são miseráveis, dependentes de esmolas, sendo proprietários legítimos de uma área riquíssima”. Para ele, é incoerente que eles vivam dessa forma. Um discurso semelhante ao do presidente Jair Bolsonaro. “O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”, disse Bolsonaro, em abril de 2019.
É o mesmo discurso usado para aprovação de outro projeto, o PL 490, que já passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e aguarda votação do plenário. O projeto modifica toda a legislação de demarcação dos territórios e favorece setores do agronegócio e da mineração. Durante a votação na CCJ, os indígenas acamparam na Esplanada dos Ministérios e prometeram um novo protesto no dia da votação na Câmara, prevista para agosto.
Peso político
O lobby para acelerar o PL 191 tem várias camadas. Começa pela cooptação de indígenas, pelos políticos locais, pelo corpo técnico com advogado, engenheiro e antropólogo, por empresários e chega nos políticos com maior peso, que fazem a costura com os ministérios e estruturas do poder central.
Um dos principais políticos articuladores deste lobby é o ex-senador Flexa Ribeiro, derrotado na última eleição. Quando cumpria seu mandato, em 2017, Ribeiro comandava a comissão mista do Senado que analisou a medida provisória que propunha a redução da proteção da Flona Jamanxim, no Sudoeste do Pará, uma área vizinha das terras indígenas cobiçadas pelo garimpo. O intento gerou reação da sociedade civil, com uma carta assinada por dezenas de organizações contrárias à redução, além do apoio de celebridades, como Gisele Bündchen.
Flexa também foi o relator da Medida Provisória que alterou o Código Mineral e deu poder aos garimpeiros. A Repórter Brasil tentou contato com o ex-senador procurando o diretório paraense do partido dele, o PSD, mas sem sucesso.
A derrota de Flexa Ribeiro, contudo, não deixou os garimpeiros do Tapajós sem um aliado no Senado. Zequinha Marinho (PSC) foi eleito para uma das vagas do Pará e também é apontado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração como um dos integrantes do lobby. “Vários se manifestaram, mas quem tem sido abertamente favorável são o deputado Joaquim Passarinho e o senador Zequinha Marinho”, conta o advogado Fernando Brandão, quando perguntado sobre os políticos que mais defendem a aprovação do PL 191.
Marinho já discursou contra o Ibama, reclamando das ações de fiscalização que queimam máquinas de garimpo e defendendo garimpeiros. Em novembro de 2019, Marinho relatou no plenário do Senado que levou prefeitos, vereadores, deputados federais, estaduais e garimpeiros para um encontro com os ministros Onyx Lorenzoni e Bento Albuquerque (Minas e Energia) e solicitou a mudança de várias leis. No entendimento do deputado, contudo, sua atuação não configura lobby. “Se existe lobby, desconheço”, afirma.
Para Marinho, a Constituição assegurou à população indígena o direito de decidir sobre o uso da terra. Questionado sobre os malefícios do garimpo, ele diz que a regulamentação não obrigará a população indígena que não quiser explorar minérios em sua terra. “A necessidade de regulamentar o que dispõe nossa Constituição é justamente para pôr fim às tensões sociais e aos crimes ambientais decorrentes de ações criminosas e ilegais”, acredita o deputado a despeito do entendimento de grande parte dos Munduruku e do MPF.
Os braços políticos do lobby mapeado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração englobam ainda um senador e um deputado federal pelo Mato Grosso. O senador Wellington Fagundes (PL-MT) se reuniu com o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, dias antes de o governo enviar o PL 191 para o Congresso, conforme mostrou o Observatório da Mineração.
Outro político mato-grossense aliado aos garimpeiros é o deputado federal José Medeiros (Podemos). Em entrevista, chamou a queima de equipamentos de garimpeiros ilegais pelo Ibama de “resíduo tóxico”. A crítica, aliás, é uma constante em declarações do deputado que é vice-líder do governo Bolsonaro. “O garimpeiro é um ser humano como outro qualquer, é um trabalhador. O meu pai garimpou por muito tempo. Eu peguei essa mania do meu pai, sempre carreguei uma bateia”, disse à Folha de São Paulo, em reportagem antes da posse de Bolsonaro, quando afirmou que o presidente proibiria a queima de equipamentos apreendidos em fiscalizações. Fagundes e Medeiros não responderam ao pedido de entrevista.
As conexões do lobby
O advogado Brandão, assim como o antropólogo Edward Luz, formam um corpo técnico que auxilia políticos e empresários para acelerar a aprovação do PL 191 e legalizar os garimpos nas terras dos Munduruku. Além dos dois, o engenheiro florestal Guilherme Aggens também atua nessa linha, segundo o organograma do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração.
Aggens esteve em Brasília reunido com o ministro Onyx Lorenzoni (DEM-RS), conforme publicou em seu Facebook. Ao lado dele estavam um vereador, um deputado e um empresário que também fazem parte do esquema do lobby. Ao ser procurado pela reportagem, respondeu: “Estou entrando agora para o garimpo. Não vou conseguir responder a tempo”.
O engenheiro é dono da Geoconsult Pará, uma empresa responsável por requerimentos de lavras garimpeiras. Em 13 de maio, Aggens se reuniu com o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em Itaituba. Estava ao lado do vereador Wescley Tomaz (MDB), que disse em seu Facebook que o objetivo da reunião era pressionar para legalização do garimpo em áreas de preservação.
Tomaz se coloca como porta-voz dos garimpeiros e é um dos mais vocais ao defender a legalização da mineração nas terras indígenas. Ele tem bom trânsito entre autoridades federais: nas suas redes há fotos dele ao lado do deputado federal, Rodrigo Maia (sem partido-RJ), quando este presidia a Câmara dos Deputados.
Tomaz está no terceiro mandato como vereador e na última eleição foi o segundo mais votado sob o mote “Vereador do Garimpeiro”. “Vocês precisam conhecer essa realidade antes de venderem uma imagem tão negativa de mais de 100 mil famílias que dependem desta atividade (o garimpo)”, disse ao ser procurado pela reportagem. Contudo, ele não respondeu às perguntas e classificou a mídia como “tendenciosa e que não atua com imparcialidade”.
O parceiro mais atuante de Tomaz é o deputado federal Joaquim Passarinho (PSD-PA). Quando o assunto é modificar a legislação para permitir o garimpo em terra indígena, eles estão sempre juntos. Visitaram garimpos e atuaram para levar energia elétrica para áreas garimpeiras. Passarinho também é autor do Projeto de Lei 6432 de 2019, que quer facilitar a venda do ouro, desobrigando que seja negociado primeiro com uma instituição financeira.
“Nunca tratei de lobby e nem tampouco articulei qualquer reunião com lobistas. Trabalho em favor da legalização da atividade, em áreas legais, permitir a atividade em áreas que possam ter atividade econômica. Dentro de rigores técnicos e licenças ambientais, somente em áreas permitidas”, afirma o deputado. Passarinho também estava na reunião com o ministro Lorenzoni, ao lado do vereador e do engenheiro ambiental.
Tanto o deputado, como o vereador e os indígenas cooptados pelos garimpeiros participaram de uma audiência pública na Câmara Municipal de Itaituba, que ostenta no plenário o painel com a imagem integrando garimpeiro e indígena. A Repórter Brasil esteve presente na audiência, em setembro de 2019.
Os financiadores
Na audiência, impressionou a naturalidade que um empresário discursou no plenário sobre as cifras que o garimpo — em grande parte ilegal — movimenta. “Já vendemos 600 escavadeiras para os garimpeiros”, celebrou Roberto Katsuda, que revende pás-carregadeiras (as PCs como são chamadas) e retroescavadeiras da multinacional sul-coreana Hyundai. As máquinas, que custam entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão cada, são usadas para cavar buracos profundos nas margens dos rios em busca de ouro.
Muitos dos presentes no plenário usavam camisetas com a frase “Garimpeiro não é bandido. É trabalhador”, ladeada pelo desenho de duas PCs. Pelos dados do empresário, os donos de garimpos de Itaituba investiram entre R$ 300 milhões e R$ 600 milhões apenas em maquinário nos últimos seis anos, uma evidência da força econômica da atividade. Estima-se que o faturamento dos garimpos ilegais no Brasil varie de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões anuais, segundo dados do Ministério de Minas e Energia revelados durante audiência pública na Câmara dos Deputados.
Quase dois anos depois da audiência, Katsuda segue interessado na aprovação do PL 191. Ele doou R$ 10 mil para que os indígenas cooptados pelo garimpo fossem a Brasília, na mesma caravana acompanhada pelo advogado Fernando Brandão e pelo antropólogo Edward Luz. O nome de Katsuda é o primeiro da lista de 55 doadores, segundo reportagem da Folha de São Paulo.
Procurado, o empresário não respondeu à reportagem. “Essa pressão toda que está acontecendo dessas ONGs é porque já desmataram o mundo inteiro e querem jogar a conta em cima de nós brasileiros”, disse Katsuda durante a audiência há quase dois anos. À época, em entrevista à Repórter Brasil, ele atribuiu a ilegalidade da atividade à lentidão do governo para autorizar a abertura de garimpos.
Katsuda se filiou ao PSL em abril de 2020 e foi cotado para ser candidato a vice do prefeito de Itaituba Valmir Climaco (MDB), o que não se confirmou. O prefeito também estava na audiência pública e defendeu a regulamentação da atividade garimpeira em terra indígena. Procurado, ele se diz contrário ao PL 191. “Não é interessante para nós que não somos índios dar opinião sobre isso”, afirma.
Em abril, o jornal O Globo teve acesso a áudios enviados pelo político incentivando que os moradores desempregados de Itaituba fossem trabalhar nos garimpos e incentivou a ida de mulheres solteiras, pois “além de cozinhar e lavar as roupas para garimpeiros, têm grandes chances de ganhar um dinheirinho extra” — uma sugestão para que atuassem como prostitutas, algo comum na atividade.
Procurado, Clímaco disse que a sugestão foi referente aos garimpos legais, localizados fora das terras indígenas. “Qual o problema da mulher ir trabalhar cozinhando para os garimpeiros? Se ela for bonita pode ganhar um dinheiro na boate também”, afirma. No entendimento do prefeito, o responsável por incentivar o garimpo em área índigena é o presidente Bolsonaro, de quem ele se diz opositor.
Clímaco já teve o afastamento do cargo pedido pelo MPF por ter dito que receberia “à bala” servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) designados para fiscalizar sua fazenda. A propriedade, reivindicada pelos Munduruku, foi a mesma onde a Polícia Federal encontrou 583 quilos de cocaína. O prefeito nega envolvimento com a droga e diz que uma pista abandonada da fazenda foi usada pelo tráfico sem o conhecimento dele. Diz também que tem os documentos que atestam a posse da propriedade.
Além de Katsuda, outro empresário se alinha aos políticos: trata-se de Dirceu Frederico Sobrinho, dono da F.D’Gold, uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM) — empresa do sistema financeiro que tem autorização para aquisição do metal, que declarou lucro líquido de R$ 32,8 milhões em 2020. As DTVMs são fundamentais para o esquema de lavagem do ouro ilegal, conforme revelou a Repórter Brasil com a reportagem HStern, Ourominas e D’Gold: as principais compradoras do ouro ilegal da TI Yanomami.A empresa de Sobrinho, inclusive, faz parte desse esquema, segundo a Polícia Federal.
Sobrinho foi candidato a 1° suplente do ex-senador Flexa Ribeiro e declarou uma fortuna de R$ 20,3 milhões. Além das empresas que compram ouro, ele tem 32 permissões de lavra garimpeira, sendo 29 em Itaituba e outras três em Jacareacanga. Sobrinho também preside a Anoro (Associação Nacional do Ouro) e já esteve com o vice-presidente Hamilton Mourão, com os ministros Onyx Lorenzoni, Augusto Heleno e o então ministro Ricardo Salles, sempre defendendo a expansão dos garimpos para as terras indígenas.
Procurado, Dirceu Sobrinho pediu que a assessoria da Anoro enviasse uma nota para a Repórter Brasil. A associação diz ser “absolutamente contrária a prática de garimpo ilegal” e que as audiências com órgãos do governo federal têm o objetivo de combater o garimpo e o comércio de ouro ilegal. Foram mais de 40 audiências desde 2017, segundo a Anoro (leia a íntegra da nota).
O garimpeiro e empresário já foi foi secretário de Meio Ambiente de Itaituba e é réu na Justiça por danos ambientais a uma área de preservação ambiental. Na audiência na Câmara Municipal, em 2019, foi tratado com deferência pelo prefeito, por vereadores e por todos que discursaram no plenário.
Os articuladores
Outro importante personagem no lobby pró-garimpo é Vilélu Inácio de Oliveira, um garimpeiro que já atuou em Mato Grosso e hoje garimpa em Moraes de Almeida, um distrito de Itaituba. Foi ele o responsável por articular um protesto que reuniu mais de 200 garimpeiros em setembro de 2019.
Passados quase dois anos do protesto, a influência de Vilela, como é conhecido, cresceu. Ele comanda hoje cerca de 30 grupos de Whatsapp e é peça chave na articulação entre políticos, garimpeiros e no aliciamento dos indígenas. “Em abril levei dois ônibus cheios de índio para Brasília, 130 munduruku”, conta. Na foto do seu perfil do Whatsapp ele está sentado ao meio de dezenas de indígenas que seguram bordunas (uma arma indígena, parecida com uma lança).
Vilela transita com desenvoltura entre aldeias, garimpos e pelos gabinetes de Brasília. Ele lembra de reuniões que participou com Rodrigo Maia, quando este era presidente da Câmara e com diversos deputados e senadores. “Eu sou uma liderança. Não corro disso”, afirma.
Ao defender o garimpo nas terras indígenas, Vilela também critica as ONGs. “Estão de olho nas riquezas do Brasil e usam os índios como massa de manobra para segurarem áreas ricas em madeira, água e minério”, afirma. Ele diz também que o azougue (mercúrio) não faz mal para saúde. “Já queimei dois quilos de ouro por dia, ficava branquinho, cheio de fumaça e não tenho nada”. O garimpeiro também entende que a atividade não é responsável pelo desmatamento. “Só jogar semente de açaí nas valas depois que acabar o ouro”, sugere.
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Durante meses a reportagem esteve infiltrada em um desses grupos de Whatsapp coordenado por Vilela. Além de alertas sobre os movimentos dos veículos da fiscalização do Ibama e ICMBio, eles alinhavam o discurso para levar aos gabinetes em Brasília. Um dos principais interlocutores de Vilela é José Altino Machado, que está há 54 anos atuando como garimpeiro na Amazônia.
Machado se apresenta como delegado da Associação dos Mineradores de Ouro do Tapajós (Amot), mas foi também fundador da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal (Usagal) e chegou a liderar 350 mil garimpeiros. No início da década de 1990 ficou conhecido por comandar invasões de garimpeiros em terras Yanomami e teve uma frota de 410 aviões. Ele contou sobre sua história em entrevista recente para a série de reportagens “Ouro do Sangue Yanomami” da Amazônia Real em parceria com a Repórter Brasil.
O discurso de Machado exalta o garimpo, que, segundo ele, conquistou o Brasil. “Nós devemos a ele o território que temos”, entende. Elogia o presidente Bolsonaro classificando como “o melhor que já apareceu” e atribui os problemas do Brasil aos ambientalistas. “Profissão que ganha dinheiro usando a boca”, define. Para Machado, os ambientalistas têm discursos “lindos e emocionantes”, mas atacam uma realidade que não ajudaram a construir.
O discurso alinhado com o do presidente Bolsonaro ajuda a abrir portas em Brasília, principalmente com o núcleo militar do governo. Altino se reuniu diversas vezes com o vice-presidente, o general Hamilton Mourão e também com o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno.
No organograma do lobby feito pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração Machado é classificado como “veterano do movimento garimpeiro”. Está ao lado do geólogo e ex-deputado federal pelo Amapá, Antônio Feijão, que preside a Fundação Instituto Amazônico de Migração e Meio Ambiente (Finama).
Ambos se reuniram secretamente com o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), quando ele presidia o Senado. O encontro também contou com a presença do ex-senador Flexa Ribeiro e do presidente da Anoro, Dirceu Sobrinho, conforme revelou o Intercept.
Feijão e Altino foram convidados pelo deputado Joaquim Passarinho para uma audiência pública na Comissão de Minas e Energia. O ex-deputado também participou de live com o senador Zequinha Marinho para discutir mineração em TI. Quando presidiu o extinto DNPM (hoje Agência Nacional de Mineração) no Amapá foi condenado por inserir informação falsa em documento. Procurado, Feijão se recusou a responder as perguntas, que classificou como “antropocentristas e fortemente maniqueístas”. “Nunca expressei minha opinião pessoal sobre a vida e destino das sociedades indígenas”, disse.
Portas abertas
O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, foi procurado pela reportagem, mas não respondeu os questionamentos sobre o impacto dos garimpos nas terras indígenas. Contudo, o ministério de Minas e Energia enviou uma nota dizendo que 13% do território nacional corresponde a terras indígenas homologadas ou em processo de demarcação e que a maioria dessas áreas está na Amazônia Legal e defendeu a normatização que: “permitirá ao Estado um melhor conhecimento destas áreas, para uma melhor gestão territorial, considerando que atualmente os trabalhos de mapeamento geológico em terras indígenas não estão sendo realizados”.
Já o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, não respondeu às perguntas enviadas e se limitou a informar, via assessoria de imprensa, que o inciso XVI do artigo 49 da Constituição aborda o tema e que, no momento, o PL 191 está em tramitação no Congresso.
A Repórter Brasil procurou todos os outros integrantes do governo federal que abriram as portas de seus gabinetes para os citados nesta reportagem. O vice-presidente, general Hamilton Mourão; o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles; o secretário-geral da presidência, Onyx Lorenzoni, e os ex-presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia. Eles não responderam.
Nota da redação: a reportagem foi atualizada às 10h57 de 16/07/2021 com um link para a íntegra do posicionamento da Anoro