Bancos ameaçam cortar empréstimo a frigoríficos ligados a desmatamento

Federação que representa instituições financeiras discute proposta que exige monitoramento de fornecedores diretos e indiretos para concessão de empréstimos, mas lacunas no texto e falta de cronograma para aprovação frustram especialistas.
Isabel Harari e Naira Hofmeister
 15/09/2022

Se uma nova norma da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) for aprovada, frigoríficos brasileiros só conseguirão empréstimos de bancos se provarem que não há desmatamento e nem trabalho escravo ao longo de suas cadeias produtivas.

Com adoção de medidas inéditas mesmo para os líderes do setor, a normativa condiciona empréstimos e financiamentos para empresas que abatem gado ao monitoramento de fornecedores diretos e também de indiretos. Esse é um passo que vem sendo adiado desde 2009 pelos maiores frigoríficos do país e preocupa consumidores, autoridades e investidores, já que 90% das árvores derrubadas na Amazônia dão lugar ao pasto e a floresta vem batendo sucessivos recordes de desmatamento.

A Febraban representa 119 instituições financeiras (a maioria de um universo de 155 em operação no Brasil), que controlam 97% do patrimônio líquido dos bancos brasileiros. Entre elas, estão os cinco maiores bancos do país e os dois principais credores do setor da carne, de acordo com dados da coalizão Florestas e Finanças: Banco do Brasil e Bradesco, que juntos, emprestaram quase 2 bilhões de dólares desde 2017 para empresas do segmento no Brasil.

“Em um cenário em que o poder público tem sido favorável ao desmatamento, a responsabilidade do setor privado aumenta”, avalia Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon. O pesquisador, entretanto, considera que o cronograma de implantação das regras poderia ser mais ambicioso, já que a nova norma vetaria financiamento a desmatadores apenas em 2025: “É muito longe. O problema está instalado e o desmatamento tem se agravado.”

A estimativa é que 90% das árvores derrubadas na Amazônia dão lugar a pastos (Foto:Daniel Beltrá/Greenpeace)

A Febraban precisa aprovar a minuta logo, para que haja tempo hábil para que os bancos adotem as medidas necessárias para cumprir esta perspectiva de prazo. No entanto, a federação admite que as discussões “ainda estão em fase inicial, são de âmbito interno, com seus grupos técnicos e comitês temáticos”. A íntegra da nota da entidade pode ser lida aqui.

Fosse posta em prática logo, o impacto começaria já no ano que vem.

O texto agora sobre a mesa determina que todos os frigoríficos que atuam na Amazônia Legal (incluindo o território inteiro do Maranhão), de qualquer porte, que tomem crédito bancário, precisarão publicar, até junho de 2023, o plano de monitoramento das fazendas fornecedoras dos animais que abatem e, a partir de 2024, tornar públicos os volumes totais de abate e o percentual que não cumpre com os requisitos socioambientais exigidos. A partir de 2025, nenhuma irregularidade seria admitida.

Atualmente, o rastreamento da origem do gado é feito apenas por empresas signatárias dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC da Carne) formalizados pelo Ministério Público Federal no Amazonas, Acre, Mato Grosso, Pará e Rondônia. O Imaflora, organização da sociedade civil que monitora o setor da carne, contabiliza quase 50 plantas excluídas do compromisso. E nem todas que aderiram tornam públicos os resultados de suas análises e auditorias.

Além disso, o monitoramento não estará restrito apenas aos fornecedores diretos – a última propriedade pela qual passa o gado – mas inclui aqueles que são intermediários, também chamados indiretos. Esse é o elo mais fraco da cadeia e onde reside a maior parte do desmatamento associado à pecuária. Recentemente, os três maiores frigoríficos do Brasil (JBS, Marfrig e Minerva) anunciaram metas de desmatamento ilegal zero para essa parcela dos fornecedores, mas há dúvidas sobre se estes controles serão suficientes para exterminar o problema.

As normas da Febraban exigiriam das empresas inclusive mais do que os planos das gigantes da carne prometem. Além de não poderem estar embargadas nem sobrepostas a terras indígenas ou unidades de conservação, nem constarem na ‘lista suja do trabalho escravo’, fazendas indiretas não podem ter sido alvo de desmatamento ilegal desde 2008 – a data de corte adotada para estes fornecedores por JBS, Marfrig e Minerva é 2019.

“Muito positivo trabalhar com a exclusão do desmatamento ilegal cometido após agosto de 2008”, afirma o procurador do MPF Daniel Azeredo, responsável pelo TAC da Carne. Na auditoria mais recente divulgada pela procuradoria do Pará, a JBS obteve 32% de inconformidade entre seus fornecedores diretos justamente por conta da data de corte: enquanto a procuradoria checou desmatamentos ilegais desde 2008, a empresa usava como parâmetro o ano de 2009.

Banco do Brasil lidera o ranking de empréstimos para empresas do setor da pecuária nos últimos cinco anos (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Se fosse aplicada ao crédito bancário brasileiro oferecido no ano passado aos frigoríficos, a norma regularia potencialmente contrapartidas a empréstimos e financiamentos da ordem de US$ 900 milhões, segundo dados da coalizão Florestas e Finanças. Estivesse valendo nos últimos cinco anos, seriam cerca 3,5 bilhões de dólares em jogo.

E a perspectiva é de mais demanda por recursos, já que ao longo da próxima década o consumo brasileiro de carne bovina poderá crescer entre 1,4% e 2,4%, segundo projeções do Ministério da Agricultura e Pecuária – o que exigiria investimentos de até R$ 873 milhões por ano em melhorias na qualidade da pastagem para evitar a expansão do desmatamento, segundo um estudo do Imazon.

“Os investidores têm o dever de fazer a devida diligência [análise de risco de problemas socioambientais na cadeia produtiva]e evitar financiar o desmatamento, conflitos sociais, agrários e violações de direitos indígenas e de comunidades tradicionais. Me preocupa o risco dessa norma se tornar letra morta”, avalia Merel van de Mark, coordenadora Florestas e Finanças.

Autorregulação gera receio

A falta de prazos para concluir a discussão não é o único problema da norma. Há dúvidas sobre se a autorregulação é capaz de colocar na linha os frigoríficos, especialmente porque regras semelhantes que foram instituídas anteriormente por bancos fracassaram. Um exemplo é o BNDES, que desde 2009 possui uma resolução interna que veda investimentos em frigoríficos desmatadores e condiciona os aportes mais relevantes do banco à rastreabilidade completa da cadeia, desde o nascimento do boi até seu abate. Mas isso nunca saiu do papel, embora o banco seja um dos mais relevantes investidores no setor da carne nacional, inclusive sendo acionista da JBS. 

Em outubro do ano passado, a Repórter Brasil revelou que o BNDES não rompeu contratos de empréstimo milionários com frigoríficos da Amazônia que abateram animais criados em fazendas desmatadas ilegalmente, embargadas pelo Ibama, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas e que utilizam mão de obra escrava em suas atividades – contrariando a própria regra. Após a reportagem, o BNDES passou a exigir relatórios semestrais de auditoria independente em suas operações para reduzir a exposição ao problema.

Tampouco há na minuta uma explicação sobre como os bancos serão responsabilizados caso ocorra um crime ambiental vinculado ao financiamento. Os contratos de empréstimo do BNDES com frigoríficos desmatadores, por exemplo, eram intermediados por bancos comerciais como Itaú, Banco do Brasil e Bradesco, aos quais competia averiguar se os beneficiários dos recursos estavam de acordo com a norma – e eles parecem ter fracassado na tarefa. Outra iniciativa do setor que também não trouxe resultados visíveis foi o “Pacto para a Amazônia”, assinado em 2020 por Bradesco, Itaú e Santander, que prevê o “desmatamento zero no setor de carnes”.

O BNDES manteve contratos com frigoríficos ligados a desmatamento ilegal e trabalho escravo. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

“A auto regulação sem supervisão não funciona. A Febraban tem que  ter estrutura para garantir que os bancos estão cumprindo as normas”, explica Luiz Macahyba, pesquisador do Observatório Sistema Financeiro, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. 


De acordo com uma matéria da Folha de São Paulo, ficaria a cargo do cliente – frigorífico ou matadouro – informar o banco caso ocorra alguma ação ilícita.

Para Merel van de Mark, fica difícil acreditar que esse sistema dará certo quando o maior dos frigoríficos brasileiros, a JBS, sequer sabe quantos fornecedores indiretos precisa monitorar para atingir sua meta de acabar com o desmatamento ilegal em sua cadeia até 2025 – e ainda assim, recebe recursos bancários.

“Ao financiar um frigorífico que não sabe dizer quais são os seus fornecedores indiretos, o banco não sabe se está financiando o desmatamento. Os bancos lavam as mãos”, lamenta.

A diretora-executiva do Imazon, Ritaumaria Pereira, também menciona que a medida “continua estimulando a concorrência desleal e meios de lavagem de gado”, porque o crédito será concedido mesmo para frigoríficos que não assinaram o TAC – essas empresas conseguem comprar animais por um valor mais baixo porque não precisam prestar contas sobre sua origem. “Precisamos cobrar transparência para saber como será feito o monitoramento”, defende.

A norma da Febraban também valeria apenas para empréstimos e financiamentos, conforme esclareceu a entidade à reportagem. Isso significa que um universo de 1 bilhão de dólares em investimentos em ações e bonds estão fora desse controle.

Produtores de fora

Embora a normativa imponha um controle rigoroso aos frigoríficos, a versão preliminar da norma restringe sua aplicação à empresas do segmento da carne – deixando de lado os produtores rurais, que poderão seguir acessando crédito sem estarem sujeitos a todas as verificações que a Febraban fará para frigoríficos, o que é visto como mais uma lacuna da proposta.

“Em última instância quem está sujeito diretamente a legislação ambiental é o produtor. É preciso ter todo mundo nas mesmas regras do jogo”, pondera o procurador Daniel Azeredo, do MPF.

Documento da Febraban deixou produtores rurais de fora da discussão ((Foto: João Laet/Repórter Brasil e The Guardian) )

Azeredo também estava no grupo de procuradores que, em 2011, ingressou com duas ações civis públicas contra o Banco do Brasil e o Banco da Amazônia por financiarem o desmatamento. Em ambos os casos, o crédito era fornecido para as propriedades rurais e seus gestores, e não para frigoríficos.

No caso do Banco do Brasil, o MPF levantou mais de R$ 8 milhões de créditos concedidos pelo banco a fazendas que foram desmatadas ilegalmente ou flagradas com trabalho escravo. Em 2017, a Justiça Federal em Redenção (PA) julgou o caso improcedente por não entender que havia relação direta entre o financiamento e o crime. O MPF apelou contra essa decisão ao TRF-1 e aguarda julgamento. 

O processo do Banco da Amazônia ainda aguarda sentença. 

“Tem que pensar na cadeia como um todo quando se faz um investimento. Desmatar custa caro e alguém paga por isso”, observa Azeredo, do MPF.

Mais recentemente uma outra denúncia mostrou a relação entre ilícitos ambientais e o setor financeiro. Em fevereiro a Repórter Brasil revelou que fazendeiros com terras embargadas na Amazônia conseguiram empréstimos com o BNDES para comprar máquinas agrícolas. 

Após a denúncia, o senador Randolfe Rodrigues (Rede) e deputados do PT protocolaram um pedido no TCU, pedindo que o caso fosse analisado e os empréstimos suspensos.  Questionado pela reportagem, o tribunal disse que ainda não há decisão formada (a íntegra está aqui). 

Fortalecimento estatal

Os casos de compra de maquinário agrícola por produtores com terras embargadas revelados pela Repórter Brasil podem estar ferindo o que determina o Manual de Crédito Rural, que barra o acesso a crédito rural caso haja sobreposição do empreendimento com terras indígenas e unidades de conservação e a existência de embargos por desmatamento ilegal na Amazônia.

Por isso, quem acompanha as relações entre mercado financeiro e meio ambiente defende que antes de haver autorregulação seria preciso fortalecer os mecanismos estatais já existentes de restrição de crédito, como o Manual de Crédito Rural, editado pelo Banco Central do Brasil.

O Plano Safra é um programa do governo federal que concede crédito a pequenos e médios produtores. (Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

“A regulação estatal é o ponto de partida, já a autorregulação complementa e fixa parâmetros comuns para que o setor tenha atitudes convergentes. Nos casos que eventualmente fiquem dúvidas ou questões operacionais, esse é o espaço para o auto regulador atuar”, acredita Luiz Macahyba, do Observatório do Sistema Financeiro. 

Merel van der Mark também defende o fortalecimento da regulação do Banco Central em contraposição à auto regulação do setor, encabeçada pela Febraban, que na sua avaliação tem uma série de “fraquezas”. 

O Banco Central afirmou que iniciativas de autorregulação são “benéficas” desde que sejam em consonância com a regulamentação existente e que “não interfere nas iniciativas de autorregulação dos seus regulados”. (Leia na íntegra)

O órgão público diz que está aprimorando suas medidas de monitoramento, com rotinas de cruzamento em tempo real com bases de dados governamentais” com vistas a bloquear a concessão do crédito rural” para desmatadores, segundo informou à Repórter Brasil. O banco ainda disse que outros cruzamentos estão em fase de implementação, como a concessão de crédito rural em terras indígenas e quilombolas.



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