AO MENOS 18 EMPRESAS autuadas nos últimos anos por submeterem seus trabalhadores a condições análogas à escravidão receberam R$ 1,1 bilhão em isenções fiscais do governo federal em 2021, único ano cujos dados de benefícios foram divulgados pelo Ministério da Fazenda.
O levantamento de O Joio e O Trigo mostra como o orçamento público vem sendo distribuído a empresas acusadas de não cumprir integralmente a legislação trabalhista.
Entre essas empresas estão as gigantes cervejeiras Ambev e Heineken que, em 2021, viram fiscais do trabalho libertarem 23 motoristas terceirizados que atuavam em condições degradantes para uma de suas prestadoras de serviço. Naquele mesmo ano, as multinacionais receberam R$ 62,5 milhões em renúncias fiscais do governo federal – R$ 45,6 milhões para a Ambev e R$ 16,9 milhões para Heineken.
As cervejarias dizem que tomaram medidas para punir os responsáveis pelo caso e garantir indenizações aos trabalhadores assim que souberam da situação (veja notas ao fim da matéria).
Criada como uma forma de incentivo à economia nacional, a política de isenções vem sendo alvo de críticas por gerar gastos ao governo e não exigir contrapartidas das empresas beneficiadas.
No levantamento constam também empresas menores, como a Usina São José que em uma operação do Ministério do Trabalho e Emprego de 2019 aparece como responsável por manter 45 cortadores de cana em situação análoga à escravidão no interior de Pernambuco. Dois anos depois, a usina foi beneficiada com isenção de R$ 3,7 milhões. A usina afirmou em nota que a acusação não tem fundamento e que o caso foi arquivado sem punição.
Ao todo, 1.028 trabalhadores foram resgatados em 15 operações nas empresas premiadas com renúncia fiscal ou em seus fornecedores, situação em que a lei prevê que as empresas contratantes também sejam responsabilizadas. Uma das beneficiadas, a multinacional de produtos químicos Basf, foi autuada duas vezes em 2023.
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Como fizemos
O Joio teve acesso a relatórios de operações contra o trabalho escravo do Ministério do Trabalho e os comparou com a lista de isenções fiscais publicada pelo Ministério da Fazenda em 2024, que mostra dados relativos ao ano de 2021. Para esse cruzamento, foram considerados apenas benefícios e autuações relacionados ao mesmo CNPJ, o que exclui corporações que foram autuadas e beneficiadas em CNPJs diferentes.
Se fossem consideradas todas as empresas de um mesmo grupo, seriam 38 pessoas jurídicas, incluindo uma das maiores recipientes de isenção fiscal naquele ano, a Vale, que foi autuada por trabalho escravo em um CNPJ (33.592.510/0044-94) e recebeu R$ 19,2 bilhões em outro (33.592.510/0001-54).
Uma política surreal
O economista José Luís Oreiro, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, afirma que “existe lógica” por trás da ideia de conceder benefícios fiscais para empresas ou setores da economia que o governo considere estratégicos ou que estejam passando por dificuldades. Mas, ao analisar os dados levantados pela reportagem, o economista disse que eles mostram o estado “surreal” da política de isenção fiscal no Brasil.
“Você está dando R$ 1 bilhão de isenção para empresas que sequer estão cumprindo a legislação trabalhista. Isso é surreal”, afirmou. “Acredito que empresas que não cumprem a lei e, mais grave ainda, a lei trabalhista, uma vez autuadas, têm que perder automaticamente a isenção.”
Críticos do programa de incentivo afirmam que o governo federal deveria rever os critérios e as condições para uma empresa justificar o recebimento da ajuda.
“É necessário desenvolver no Brasil uma sistemática e periódica avaliação dos custos e benefícios da isenção fiscal”, disse Oreiro. “O que a isenção está trazendo de retorno para a sociedade em termos de criação de renda e de emprego, de aumento de exportações ou de redução de importações? Porque, se não [está trazendo nada], é dar dinheiro de graça pra empresário botar no bolso. E tem alguns que são mais gananciosos que outros que, além de botar dinheiro no bolso, ainda exploram o trabalhador. Isso é um absurdo.”
Sem isenções Brasil poderia ampliar em três vezes o Bolsa Família
Em seu segundo mandato, a partir de 2007, o presidente Lula concedeu uma série de renúncias fiscais para promover o crescimento econômico, e o governo deixou de arrecadar R$ 102,1 bilhões. Essa política foi aprofundada nos anos seguintes, quando o Brasil sofreu os reflexos do estouro da bolha do mercado imobiliário norte-americano em 2008. A ideia era deixar de cobrar impostos para que as empresas investissem esse dinheiro em produção, criassem novos empregos e aumentassem salários.
As desonerações explodiram durante o governo Dilma Rousseff, que deixou de arrecadar R$ 277 bilhões em 2015. Mais tarde ela se diria arrependida da ampliação da política.
As isenções seguiram durante os governos Temer e Bolsonaro, com novos setores sendo agraciados, mesmo sem comprovação de que o benefício de fato gerava impacto positivo na economia.
Ao analisar as contas do governo de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) calculou que o país renunciou a R$ 519 bilhões em impostos no ano passado. O ministro Vital do Rêgo argumentou que, se tivesse cobrado esse valor das empresas, o governo poderia ampliar em até três vezes o Bolsa Família ou acabar com o déficit da Previdência. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem criticado as isenções e buscado formas de limitá-las para aumentar a arrecadação do governo.
Lista suja do trabalho escravo não prevê punição a empresas
Em 2010, o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central proibiram que bancos públicos ou privados concedessem crédito rural a empregadores que constem no cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho escravo (popularmente conhecido como Lista Suja). Mas, quando se trata de renúncias fiscais, não há regras.
Antes de beneficiar uma empresa com isenção fiscal, o governo não verifica se ela foi condenada por manter trabalhadores em condição análoga à escravidão. Até hoje não há normas prevendo bloqueio comercial ou financeiro às empresas e pessoas listadas na Lista Suja, criada em 2003.
Quando os fiscais descobrem trabalhadores nessa situação, eles autuam o empregador, que pode se defender em um processo administrativo que percorre duas instâncias. Se o empregador for condenado na última instância, ele entra na Lista Suja, onde fica por dois anos.
Foi o que aconteceu com a Cervejaria Kaiser, marca que pertence ao Grupo Heineken, denunciado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, depois que 23 motoristas da transportadora Sider, de Limeira (SP), foram resgatados em condições análogas à escravidão. A Sider tinha como clientes principais a Heineken e a Ambev, razão pela qual as multinacionais foram consideradas responsáveis por garantir os direitos dos motoristas terceirizados.
Os trabalhadores resgatados eram venezuelanos e haitianos, e a maioria havia sido contratada pela Sider em Roraima, porta de entrada no Brasil para estrangeiros que buscam ajuda humanitária. Eles eram então levados a São Paulo, onde trabalhavam no transporte de bebidas da Ambev e da Heineken. Ao chegar, eram surpreendidos com a notícia de que o salário seria variável e dependia de cálculos feitos pelos empregadores. Eles também não tinham direito a hospedagem, o que obrigava muitos a morarem na boleia do caminhão.
Os motoristas tinham que cumprir jornadas exaustivas, com pouco ou nenhum descanso entre viagens, o que os fiscais constataram ao analisar mensagens trocadas entre os estrangeiros e outros funcionários da Sider. Em um dos áudios transcritos no processo, um motorista venezuelano é pressionado a seguir viagem após uma longa jornada na estrada e responde que não continuaria trabalhando sem descanso.
Após a autuação, a Sider assinou um termo de ajustamento de conduta. A Heineken e a Ambev se comprometeram a pagar a verba rescisória devida aos trabalhadores. Após o processo tramitar em todas as instâncias, a Sider e a Heineken entraram na Lista Suja. Já o processo da Ambev foi suspenso por decisão judicial.
Cervejarias dizem ter punido responsáveis por trabalho degradante
Procuradas pela reportagem, a Ambev e a Heineken afirmam que tomaram medidas contra a transportadora Sider, responsável pelo contrato dos motoristas estrangeiros terceirizados. A Heineken disse que bloqueou os créditos que a Sider tinha até que a empresa pagasse as indenizações acordadas com o Ministério Público do Trabalho.
“A partir desse caso específico, a organização compreendeu a necessidade de avançar ainda mais na checagem do cumprimento dos parâmetros presentes em seu Código de Conduta, não apenas para transportadoras, mas para todos os fornecedores que fazem parte da cadeia de suprimentos como um todo”, disse a companhia em nota.
Depois que a Heineken apareceu na Lista Suja do Trabalho Escravo, em outubro de 2023, a empresa acionou a Justiça e conseguiu uma liminar que garantiu a supressão de seu nome das listas seguintes.
Já a Ambev disse que rompeu o contrato com a Sider assim que soube da operação dos fiscais do trabalho. “A atuação dessa transportadora, à época, representava menos de 1% de nossa operação logística e apenas para serviços esporádicos”, disse a multinacional, também em nota. “A transportadora fez um acordo para pagamento de cada um dos funcionários objeto da autuação.”
As duas cervejarias também afirmaram que, depois do caso, implementaram e reforçaram medidas de controle para garantir que seus fornecedores respeitem a legislação trabalhista e promovam o trabalho digno a seus funcionários. Elas dizem prever punição para empresas parceiras que não cumprirem os requisitos.
Procurada, a transportadora Sider não retornou aos pedidos de contato com a reportagem.
Cortadores de cana não tinham água; usina recebeu R$ 3,7 mi
Entre as empresas beneficiadas com renúncias fiscais está a Usina São José, que afirma produzir açúcar em Pernambuco desde o século 18. Segundo os fiscais do Ministério do Trabalho, 45 cortadores de um engenho que fornecia para a Usina São José eram submetidos a jornadas de até 10 horas diárias sob o sol forte e, expostos a fumaça, poeira e fuligem, não recebiam adicional de insalubridade. A empresa também não fornecia equipamento de proteção individual, água ou alimentação.
No canavial não havia posto de primeiros socorros, local para descanso, nem banheiro: os trabalhadores precisavam fazer suas necessidades básicas no chão. Eles não eram registrados e recebiam apenas um salário variável de acordo com a produção: ganhavam R$ 12 por tonelada de cana cortada.
A autuação foi feita em 2019 no Engenho Cumbé de Cima, que tinha contrato de exclusividade para fornecimento de cana à Usina São José. Um processo administrativo foi aberto no ano seguinte. De acordo com o Ministério do Trabalho, esse processo foi anulado judicialmente. Em 2021, a Usina São José recebeu R$ 3,7 milhões em isenção fiscal.
Ao Joio, a Usina São José disse que seu nome foi envolvido indevidamente na operação do Ministério do Trabalho e afirmou que seu fornecedor jamais submeteu trabalhadores à condição de escravos.
“A Usina São José foi envolvida, de maneira indevida, em uma autuação pelo Ministério do Trabalho, vez que, de forma discricionária, o fiscal do trabalho, atribuiu à empresa uma suposta situação de trabalho análogo à escravidão, sem acontecimentos e fundamentação adequada”, escreveu em nota. “Nem mesmo o fornecedor, que era o detentor do imóvel inspecionado, teve envolvimento ou responsabilidade nas acusações que foram imputadas.”
A Usina São José disse que tem “compromisso com o cumprimento das leis trabalhistas e a manutenção de um ambiente de trabalho digno e respeitoso para todos os nossos colaboradores”.
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