A EMPREITEIRA Nova Engevix e a BBF (Brasil BioFuels), empresa de grande porte que atua na produção de biodiesel a partir do óleo de palma, compraram produtos derivados de madeira de uma serraria que submeteu seis trabalhadores a condições análogas à escravidão em 2019.
As duas primeiras companhias foram parceiras na construção da usina termelétrica Baliza (UTE Baliza), em São João da Baliza (RR), criada para produzir energia a partir de fontes renováveis.
Os seis empregados foram resgatados em fevereiro de 2019 após uma fiscalização do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) na Fazenda Estrela ZII, localizada no mesmo município de Roraima. Eles realizavam a derrubada de árvores nativas e, com trator, o arraste das toras até o local de carregamento em caminhões.
A extração de madeira era realizada pela Madeireira Roraima, que foi responsabilizada como empregadora da mão de obra. Por conta do caso, a empresa foi incluída na Lista Suja do trabalho escravo em outubro de 2022. A companhia esteve na lista por dois anos até a mais nova atualização, no último 7 de outubro.
A Nova Engevix ficou nacionalmente conhecida porque era uma das empresas investigadas pela operação Lava Jato. A companhia era citada por supostamente pagar propina ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. No dia 29 de outubro, o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a anulação de todas as condenações de Dirceu no âmbito da operação Lava Jato.
Lista Suja
Atualizada semestralmente, a Lista Suja é um cadastro mantido pelo MTE que torna públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas administrativamente pelo crime de submissão de trabalhadores à condição análoga à escravidão. Dois anos é o período previsto para que um empregador, flagrado pelo crime, permaneça no cadastro, segundo a legislação.
Diversas empresas brasileiras se comprometem publicamente a restringir relações comerciais com empregadores inseridos na Lista Suja. A BBF adquiriu da Madeireira Roraima sarrafos e resíduos florestais entre outubro de 2022 e outubro de 2023, quando a empresa já havia ingressado no cadastro.
Já a subsidiária da Nova Engevix em São João da Baliza comprou diversos lotes de ripas, sarrafos e madeira serrada entre novembro de 2021 e maio de 2022 – ou seja, após o flagrante de trabalho escravo, mas antes da entrada na lista.
Questionada pela reportagem, a BBF afirma que em 3 de agosto de 2022 firmou um contrato com a Madeireira Roraima para a aquisição de biomassa – conhecida como pó de serra – para utilização na caldeira de geração de vapor de sua fábrica em São João da Baliza.
“Como de praxe, em todos os contratos celebrados pelo Grupo BBF, é parte integrante e fundamental a cláusula 2.4 que obriga o fornecedor a não utilizar na execução do contrato mão de obra em condição análoga à escravidão”, diz a nota.
Ainda segundo a BBF, o fato de o acordo ter sido fechado antes da entrada da madeireira na lista suja do trabalho escravo [em 5 de outubro de 2022] fez com que esta estivesse apta na checagem de fornecedores realizada pela companhia de biodiesel.
O contrato, portanto, não foi reincidido, pois, durante sua vigência, até 2024, “não houve a implicação de novos casos de trabalho análogo à escravidão relacionados a este fornecedor que tenham sido divulgados”, diz a resposta enviada à reportagem. A nota completa pode ser lida aqui.
A Nova Participações, grupo que controla a Nova Engevix, respondeu que “a última relação comercial com a Madeireira Roraima foi em maio de 2022, sendo excluída da lista de fornecedores assim que as denúncias citadas vieram a público”. Disse também que não “compactua” com qualquer atividade ilícita praticada por seus fornecedores e que tem como um dos valores o “respeito incondicional aos direitos dos trabalhadores”. Veja a nota completa aqui.
A UTE Baliza, “primeira usina híbrida a combinar óleo vegetal e biomassa”, entrou em operação em 2023. A BBF afirma que seu modelo de produção evita a emissão de milhares de toneladas de carbono anualmente na atmosfera. Segundo a empresa, foram empregados consideráveis esforços para que a usina influenciasse positivamente os municípios diretamente afetados.
Condições degradantes
Segundo o relatório de fiscalização do MTE, acessado pela reportagem, os seis trabalhadores resgatados “estavam submetidos a situações de vida e trabalho que aviltavam a dignidade humana e caracterizavam condição degradante de trabalho”, critério suficiente para configurar a relação trabalhista como exploração de trabalho análogo à escravidão.
O alojamento e área de vivência dos empregados era um barraco improvisado de aproximadamente 13×4 metros, chão de terra batida, com cobertura de lona plástica e aberto nas laterais. Portanto, o local não tinha isolamento contra intempéries, animais peçonhentos, insetos ou outros animais.
O lugar de preparo das refeições era contíguo ao barraco, e não havia água limpa para a lavagem de mantimentos e utensílios domésticos. Não havia energia elétrica ou gerador, e os alimentos eram guardados em três caixas de isopor. A água para beber, cozinhar, lavar louça e tomar banho era retirada de cacimbas – buracos no chão – feitas pelos próprios trabalhadores, e apresentava coloração esbranquiçada.
Também não havia banheiros ou locais adequados para banho. Os empregados utilizavam vasilhas com água para se lavar. “Não havendo sanitários, os trabalhadores tinham que usar o ‘mato’ próximo ao barraco para satisfazerem suas necessidades fisiológicas, sem qualquer privacidade e dignidade”, diz o relatório do MTE.
Além disso, a fiscalização constatou que não havia fornecimento de EPIs (equipamentos de proteção individual ) e que a jornada dos empregados da Madeireira Roraima era em geral por 12 dias ininterruptos. Após esse período, iam até Rorainópolis (RR) – a cerca de 90 km de distância -, onde os pagamentos eram feitos.
“Ou seja, [os trabalhadores resgatados] laboravam de segunda-feira até a sexta-feira da semana seguinte, inclusive aos sábados e domingos, e depois folgavam no sábado e domingo da segunda semana de trabalho, retornando ao trabalho na segunda-feira seguinte. Todos declararam que recebiam apenas os dias que eram trabalhados, informação corroborada pelo próprio empregador”, afirma o relatório de fiscalização.
A Madeireira Roraima, além disso, tem um histórico de multas por desrespeitar a legislação ambiental. Entre 2018 e 2020, por exemplo, a empresa foi autuada ao menos 12 vezes pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Os valores das multas, somados, chegam a aproximadamente R$ 130 mil. Em fevereiro de 2019, a madeireira teve suas atividades embargadas pelo órgão ambiental após a constatação de que ela havia apresentado informações falsas nos sistemas de controle ambiental para o comércio de produtos florestais. No ano seguinte, a empresa voltou a funcionar após obter uma liminar judicial.
Procurada pela reportagem, a Madeireira Roraima não comentou o caso. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
Disputa fundiária com comunidades
A BBF foi fundada em 2008 em São João da Baliza “com o objetivo de descarbonizar a região Amazônica e mudar a matriz energética da região Norte do Brasil”, diz seu site.
Além do plantio e produção do óleo de palma, a empresa possui 25 UTEs (usinas termelétricas) na região Norte do Brasil e planos para se tornar a primeira companhia brasileira a produzir combustível de avião a partir do dendê.
Cercados por plantações de dendê, fruto que dá origem ao óleo de palma, moradores dos quilombos Nova Betel, Alto Acará Amarqualta e da terra indígena Turé Mariquita afirmam vivenciar uma situação de conflito fundiário desde que a BBF se instalou na região, situada a 200 km da capital Belém.
Reportagem da Repórter Brasil de agosto de 2022 mostrou que quilombolas e indígenas reivindicam territórios aos quais os cultivos estão sobrepostos. Como reação às ocupações realizadas pelas comunidades, forças policiais e de segurança privada da empresa têm sido acusadas de atuar com violência extrema.
Em resposta à reportagem na época, a BBF afirmou que “não existe sobreposição de áreas com os territórios das comunidades tradicionais”, negou ter cometido qualquer violência contra quilombolas e indígenas, e os acusou de invadir suas terras para roubar o dendê.
Em agosto de 2023, três indígenas da etnia Tembé foram baleados em Tomé-Açu (PA). Representantes da Associação Indígena Tembé Vale do Acará acusaram a PM de intervir de forma truculenta na comunidade, “acompanhada de seguranças fortemente armados da empresa Brasil BioFuels (BBF)”.
Em nota, a BBF afirmou na ocasião que sua equipe de segurança havia agido para “conter a ação criminosa” de “30 invasores armados” que tinham entrado na sede da empresa.
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